Qual de seus olhos está com a razão?

Se você prefere a visão da esquerda, vai odiar o que escrevo, se prefere a direita, vai odiar também. Porque escrevo sobre compreensão, amor, compaixão e inclusão. E esses têm sido historicamente os maiores alvos do ódio.

Rogério Lupo
10 min readDec 25, 2015
Foto: arquivo pessoal

Será que você se interessou em ler esse texto pela promessa de que poderia odiar o que escrevi? Talvez seja mais fácil cativar pela promessa de ódio do que pela de amor… por isso há tanta audiência aos programas policiais e aos vilões das novelas.

Estamos assistindo no Brasil a um teatro de opostos, acirrando suas polarizações. Ambos os lados se julgam “certos”, e julgam “errado” seu oponente. Mas ambos agem com igual intolerância. Ambos caminham cada vez mais para os extremos de suas posições.

Recentemente Chico Buarque foi hostilizado na rua. Posições e opiniões imediatamente se formaram. Seja qual for a posição tomada, hostilização é a regra. Se os agressores verbais de Chico desejam que ele se vá do país, os defensores dele desejam que os agressores se vão também. Os mais exaltados não escondem seu desejo de que seria melhor se uns ou outros fossem expulsos do país ou da vida. Tanto Chico como seus agressores agora devem ser expulsos, conforme os ataques de ambos os lados.

É o mesmo tratamento que as crianças se dão na escola.

“Minha panela contra a deles”.

“Vamos fazer conspiração na diretoria contra eles”.

“Vamos fazer uma intervenção, expulsar os indesejados e a escola será nossa”.

Isso está em todos os âmbitos. Políticos estão agindo assim, empresários, artistas, jornalistas… diagnosticam a doença e a querem eliminar. Raríssimos desconfiam que a doença é exatamente… diagnosticar. Julgar que a sociedade está doente é a própria doença. Não há nada errado com os seres e com as ideias. O que dói no indivíduo é sua paixão por ideias, sua paixão pelo ataque às ideias opostas, o que dói é o julgamento inclemente. E essa dor é a que procura alívio, querendo extravasar em agressão.

Mesmo quando eventualmente se consegue expulsar alguns daqui ou dali, começam a ocorrer os “rachas” internos dentro da mesma ideologia, a intolerância vai se refinando: “já expulsamos os fascistas/comunistas, agora vamos expulsar os de centro-direita/centro-esquerda”.

Isso se torna um vício, o vício de odiar, reclamar, encontrar culpados, alvos, combustíveis para nossa faísca. Adoramos nos sentir “certos”. Mesmo que isso nos faça cometer várias atrocidades (mesmo verbais) nada certas dentro de uma sociedade que deveria ser de iguais.

É o caminho fácil, diagnosticar, xingar, condenar, executar. Nunca vi qualquer um desses extremistas ficar satisfeito depois de conseguir o que almejava.

Seja qual for o “lado” em que se encontram, os indivíduos não percebem que são escravos de ideias, de julgamentos, e que estão agindo como robôs de ideais, como sempre foi, e isso em toda a história humana.

O que aprendemos com a história? Seguramente aprendemos apenas a continuar cometendo os mesmos erros, por pura falta de reflexão acurada.

Ainda não vi ocorrer a alguém essa ideia iluminada, e mais conciliadora, de que não existe um lado certo e outro errado, mas que a melhor posição a assumir nesse ou em qualquer embate é a de transcender o certo ou errado, mesmo porque nossa visão é limitada demais para julgar com supremacia. A posição mais - digamos talvez - justa, é a de estar nem de um lado nem de outro, mas de ambos e de nenhum ao mesmo tempo, e nem sequer no centro…

Como isso pode ser possível?

Há exemplos na história. Mas nós olhamos muito pouco para os bons exemplos históricos, tentamos demais consertar os erros e nos esquecemos de espelhar os acertos da história. Precisamos estudar as biografias dos grandes. É produtivo lembrar dos erros, mas o sucesso só advém de focar no acerto. Olhar apenas erros é focar no alvo que se quer evitar.

Se há alguém que foi um dos grandes exemplos desse comportamento neutro e equânime na nossa história humana recente (e, por ser recente, documentada com certa precisão), esse alguém é Nelson Mandela. Uma figura de inteligência e coração iluminados e inspirados.

Mandela precisou lutar pela sua liberdade e a de seus companheiros, pelo fim do apartheid na África do Sul (o regime de segregação pesada que procurava eliminar os negros da proximidade dos brancos em qualquer espaço), e precisou lutar até para manter sua credibilidade junto a alguns de seus próprios companheiros, que como costumeiramente acontece, julgavam que ele já estava divergindo do caminho que eles julgavam ideal.

Ele conseguiu todos os seus objetivos. Não sem manter a sinceridade, e jamais se ajoelhando ou ‘lambendo botas’, mas usando o dom de esperar (muito pacientemente, 27 anos de prisão) o momento certo, e agir quando a hora era ideal.

Ele foi o maior exemplo do que se pode chamar de líder. Nos momentos que antecipavam as eleições às quais concorria contra o governo que mantinha o apartheid, a violência explodiu em seu país. As polarizações se acirraram, de um modo muito mais extremo do que o que vemos hoje no Brasil (por enquanto). Havia mortes massivas de negros e brancos, ataques atrozes de ambos os lados.

Mandela foi à TV em pronunciamento ao seu povo. Ele foi contra os ânimos e contra a “razão irrefutável” de toda uma nação. Ele dizia: “Um líder é aquele que sabe o caminho certo, e sabe quando seu povo está errado e deve dizer. E eu devo dizer a vocês agora que vocês estão errados. Nós não temos que vencer com violência, temos que vencer nas urnas”.

Aquilo foi um balde de água gelada sobre os ânimos de seu povo, mas ele sabia cativar as pessoas com sua oratória. Todo o poder de persuasão que Hitler usou com péssimas intenções sobre seu povo, Mandela possuía também e usou com as mais sublimes intenções. Ele pacificou seu povo e venceu as eleições.

Mandela alcançou o poder e se tornou presidente. Aqui em nossas terras, insufladas atualmente pela intolerância, a maioria defenderia que ele expulsasse sumariamente os antigos governantes, os instituidores da segregação e praticantes de violência contra seu povo. A “vingança” seria o próximo passo, na visão dos extremistas brasileiros de hoje, ou mesmo na visão do povo de qualquer nação ou época. Entretanto, não foi a atitude de Mandela. Ele sabia que se quisesse acabar com uma era de discriminação, não poderia agir de modo igualmente discriminador. Talvez chegasse a se envergonhar de ser tão pouco criativo e inteligente se o fizesse…

Ele convocou os seus antigos oponentes, alguns dos quais o haviam subjugado e eventualmente o destratado, e os convidou a fazer parte de seu governo. “Estão dispostos a me ajudar na reintegração da nação?”, disse ele. Eles toparam.

Realiza, amigo leitor…

Mandela dizia: “as crianças não nascem odiando, sua natureza é amar. As crianças são ensinadas a odiar e a discriminar”.

Isso é o que os brasileiros aprendemos muito bem, talvez?

Esse é o verdadeiro líder, o conciliador, o humanista. Aquele que não guarda rancores, não se orgulha, que busca o que há de bom em cada pessoa (porque acredita no bem dentro do outro), que sabe extrair de cada um o melhor, e que sabe oferecer de antemão o apoio que deseja que lhe ofereçam. Por não se achar em posição superior digna de subjugar ou condenar, Mandela se eleva (elevar = tornar-se leve).

Ninguém disse que é fácil. Antes de ser capaz disso, é preciso resolver muita coisa em âmbito pessoal, saber perdoar (e o verdadeiro perdão é chegar a agradecer a oportunidade e o desafio do “mal” que recebeu), saber conciliar opostos dentro de si mesmo, viver com a diversidade interior… depois disso se torna mais fácil fazer o mesmo com o outro. Enquanto esteve dentro de uma prisão, Mandela teve quase três décadas para refinar e aprimorar tudo isso que já sabia. Não foi tempo perdido.

Alguns hão de pensar: mas como ser tolerante com a intolerância?

Alguém tem que dar o primeiro passo, e foi o que Mandela fez. Ele tolerou intolerantes em seu governo. Foi a única forma de lhes mostrar com seu exemplo, bem de perto, que o melhor caminho é a aceitação da diversidade e não sua eliminação.

No Brasil atual, alguns tendem a achar-se irrefutavelmente corretos, ‘pois eles lutam contra agressões intolerantes’ por motivos religiosos, políticos, de orientação sexual, etc. Mas acreditam que estarem certos justifica agressões verbais e morais violentas aos intolerantes, atos que simplesmente os igualam a tudo isso que tanto condenam. Atos que, além de não surtir efeito algum, só deixam o outro ainda mais convicto de sua posição.

Pobre sabedoria, sempre disponível, sempre ignorada.

No fim, são linchamentos bilaterais. Quem poderia estar “certo” numa guerra ‘sangrenta’ no jardim da infância?

Para que um defensor da liberdade e diversidade comece a aceitar um intolerante, é preciso que seja capaz de compreender integralmente a posição do outro. Sentir realmente como o outro sente. Do contrário são ambos apenas crianças brigando pelo chiclete mastigado. Uma briga absolutamente sem sentido. Um dos dois precisa de fato amadurecer o debate e compreender a mentalidade limitada do outro. Sem desprezar essas limitações, reconhecendo também as próprias, sem complexo de inferioridade disfarçado de superioridade. Alguém precisa ser capaz de acreditar que o outro pode ampliar sua capacidade de aceitação.

Claro que aquele que aceita a diversidade está mais próximo de aceitar o intolerante do que vice-versa. Ele apenas tem que lapidar sua aceitação. Portanto o primeiro passo tem que ser dado pelos personagens mais óbvios, nesse caso.

Muitos pais tentam ensinar seus filhos a não bater no irmão e fazem isso batendo no filho agressor. O efeito disso é como o da bomba nuclear, em que cada núcleo de átomo que sofreu fissão libera energia para que outros átomos sofram fissão igualmente. O irmão não só não aprende nada como descobre formas de bater com mais violência.

Essa é a guerra verbal que se instala no país. Ambos os lados estão se ensinando melhores e mais apuradas formas de violência. Com ânimos um pouco mais exaltados, e com as massas se reunindo, a tendência é que a ignorância reine, pois já se sabe que o indivíduo em meio a massas faz coisas que jamais seria capaz de fazer individualmente. Daí vêm as depredações e os roubos a caixas eletrônicos durante manifestações de rua. As quebras de vidros caríssimos de prédios públicos de Brasília, durante protesto contra os excessivos gastos públicos… A massa unida potencializa a ignorância e a cegueira.

Escrevo isso para mostrar uma escolha a mais: a de que não é preciso escolher de que lado se está, assim como não é preciso saber qual dos nossos olhos enxerga a realidade corretamente. Ambos são necessários para que se tenha a visão um pouco mais ampla e completa. Cada olho vê apenas duas dimensões, mas juntos ambos são capazes de ver uma dimensão extra, a terceira, que muito apropriadamente se chama profundidade.

Isso quase não é uma metáfora filosófica, é praticamente uma realidade quando espelhada no mundo das ideologias. Não se pode abrir mão da visão do adversário. A presença do oposto nos faz refinar, clarear e aprofundar melhor nossa própria visão de mundo. Mesmo quando a do outro é uma visão aparentemente deplorável do mundo.

Quanto mais desafiadora a situação, mais refinado nosso mecanismo de solução. Não é fácil lidar com pessoas que são violentas ao defender suas ideias, mas elas nos mostram que talvez estejamos agindo de forma igualmente violenta, por isso o caldeirão ferve. Uma das saídas em situações assim é justamente começar compreendendo como o outro se sente exatamente. E abordar o problema a partir dessa compreensão, da quase comunhão com tais ideias. Pois daí vem o equilíbrio que o outro pode alcançar também.

Assim como a metáfora dos olhos, a das asas também funciona muito bem. Mas ambos os lados acreditam realmente que podemos voar com apenas uma asa. Isso é uma tremenda falta de sabedoria, e isso já é sintomático na história, em milhares de anos documentados.

A violência denota medo. Quem está seguro em seus calcanhares não precisa agir com brutalidade. O primeiro passo para buscar a conciliação com os violentos é reconhecer que eles estão apavorados por algum motivo, e é preciso detectar esse motivo. Também é preciso perceber quais são nossos próprios medos quando estamos precisando reagir com violência.

O que quer que sejamos capazes de ver no outro, tem que ser visto em nós mesmos igualmente. Se fôssemos capazes de fazer essa reflexão, perceberíamos mais facilmente que os defeitos que vemos no outro são antes de tudo nossos (do contrário sequer os veríamos). Isso torna mais fácil compreender o outro, pois deixa claro que para cada dedo que ele nos aponta, três outros apontam de volta a ele próprio. Os egos inflamados sempre falam apenas de si mesmos, ainda que pensem falar do outro. Mas esse não é apenas o caso “deles”. É o caso de todos nós e de nosso ego.

Sejam quais forem as situações que se apresentem, tomar posição violenta igual à do oponente não vai levar senão a uma dança de opostos, com cada um ora no poder, ora fora dele, e no fim aos mesmos sentimentos frustrados de sempre. Mas é preciso reconhecermos quando estamos sendo tão idiotas quanto aqueles que ofendemos. Temos que estar atentos ao que sentimos e decidir se gostamos de nos sentir assim. E depois buscar novos olhares e perspectivas.

Os nazistas tentaram expulsar os judeus que tanto temiam… de seu país, de seu continente, se pudessem até de seu planeta. Os judeus não fizeram jamais o gesto oposto de armar uma ofensiva bélica para tentar expulsar o fascismo e o antissemitismo do mundo. Não seriam tão idiotas.

Acostumados à perseguição histórica milenar, continuaram simplesmente fazendo seu trabalho e exercendo suas paixões, e “deram o troco” angariando bilheterias milionárias nos cinemas, por exemplo. E com isso sensibilizaram muitos à sua própria causa. Muitos judeus são hoje amados e celebrados como criadores.

Os judeus apenas continuaram seu trabalho espalhando amor. “Nem todos”, alguém dirá… Claro, alguns fizeram e fazem guerra, criam conflitos, mas esses não são os que vencem.

A guerra sempre se perde, mesmo quando se vence. O amor vence, mesmo quando perde tudo. Não é um clichê, é um fato.

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