Uma alucinação coletiva de Rogério Nuno Costa

I.
Finn’issage
(Sai.)
Pano.
II.
Real Idade
(Cantando.)
Ai destino, ai destino. Ai destino que é o meu. Ai destino, ai destino. Destino que Deus me deu. O amor bateu à porta, e eu deixei-o entrar. Parecia tão diferente, confiei e fui em frente e com ele quis casar. Infortúnio do destino esse meu passo infeliz… Fui amante atraiçoado, fui marido mal-amado, sem saber que mal eu fiz. O amor tem destas coisas: no princípio tudo bem. Quando se vê a verdade, p’ra voltar atrás é tarde, p’ra recomeçar também.
(Dá meia volta e fica no mesmo lugar.)
III.
Acto de Contrição
(De joelhos, cabisbaixo, mão direita sobre o peito.)
Vivi acima das minhas possibilidades conceptuais. Fiz sempre tudo por fora, para fora. De fora. A dar o fora. Fui exotérico. Já pedi desculpa a Portugal por todo o mal que lhe fiz. E àquele crítico que prometeu destruir-me. E à dívida pública. E aos Grandes Outros. E a todos os gatekeepers que sempre me avisaram que se não tenho cartão, não entro. A todos os dress codes que não cumpri. À tese que não escrevi. Às rectaguardas que não lambi. Àquele novo notável que me humilhou em praça privada. E àquele outro que me confundiu comigo próprio. Peço desculpa todos os dias ao ne-putismo lisboeta. Aos que ignoraram e aos que se esqueceram. A todos os que com excelsa dedicação me chamaram de pretensioso, wannabe, fundamentalista-com-a-puta-da-mania-não-é-de-confiar. Pedi desculpa àquela outra porta que me chamou de burro. E àquela oportunidade perdida. E àquele cartaz vandalizado. Amanhã, se ainda tiver coragem, pedirei desculpa à bruxa, por ter fugido dela. E à colega. E à irmã. E à namorada conceptual. E à fag hag. E à companheira de batalha. E a todas as carapuças, sobretudo as encapuçadas. Vou pedir desculpa às causas perdidas. Se as encontrar. E vou-te pedir desculpa a ti, que me estás a ler, por mais uma vez te ludibriar com a cantiga de escárnio e maldizer camuflada de amor e amigo. Peço desculpa aos amigos. Todos. Tenho-vos a bater cá dentro, no ceguinho que é o meu coração, nos sonhos por dormir, nos buracos por nascer, nos dias por ocupar, sempre na mesma tecla, sempre na mesma tecla, sempre na mesma tecla: DELETE. Aos deuses todos das colinas que profanei, um por um, sem misericórdia. Contratos rasurados, comunhões de mal, manifestos passadistas, todos os foi-sem-quereres. Peço desculpa aos idiotas das congregações neo-feudalistas cujas cartas de admissão rasguei: a invasão de privacidade, os tortos de autor, a palavra EU graffitada nas vossas costas moles, sem espinha. Desculpem ter-vos desmascarado o óbvio. Juro que não foi por mal, juro que estava mesmo ali, espetado no nariz, à espera do dedo apontado ao olho, a boca fechada para não deixar entrar ar, as orelhas cravadas na testa. E a estatueta que te pus na mão para depois “Olha, que ridículo, tens uma estatueta na mão!”. Desculpa ter-te amado tanto… Não tens vergonha?
Desculpem(-me). Por ser do Norte™ e confundir “premiável” com “permeável”: pedra pomes jamais será esponja. Por não saber falar baixinho, não escrever direito por linhas horizontais. Desmontar-vos a mais insistente e desinspirada teoria da conspiração: less, perdoem-me, é mesmo só less. Já pedi desculpa ao dinheiro. E à falta de noção. E ao Beuys, porque somos todos artistas o caralho! E às twink’le twink’le little stars que vieram depois, por lhes ter deixado um mundo sem fundo para colorirem com os seus ténis da moda, depois do sol se pôr e a escuridão esconder os erros de racord e as assimetrias de casting e a ausência total de est(ética). Desculpem não vos ter feito saber que o espectáculozinho já havia terminado para poderem bater palmas. Desculpem ter-vos amado tanto, tanto, tanto, ao ponto de vos chamar ridículos. E não ter querido jogar quando as regras até corriam de feição, e a maré me empurrava, confiante, para a frente. Por não ter conseguido vencer-vos, não ter sido melhor, nem sequer necessariamente bom. Pela dislexia grave que é também um subtipo nórdico de daltonismo e uma evidente falha na minha formação cultural — não sei distinguir “descoberta” de “invenção”. Não sei, pronto, foram vocês que copiaram primeiro! Sois ridículos… Ter-vos aberto as portas todas quando já só queriam que acenasse, da janela, metade do corpo escondida para não dar nas vistas, um aquecedor nas costas e um Papa qualquer para me benzer o talento com um proto’colinho onde me sentar e redimir da vergonha alheia. É a mesma que sinto quando me olho todos os dias ao espelho: “Estou quadradamente enganado!” Fade Out. Entraste na universidade, perguntas-me. Não, entrei na particularidade, respondo-te. Andamos a medir pilas desde 1143, não é? Precisamos de lutar afincadamente por um assento no anfiteatro do Clube Disney, não é? Amo-vos tanto, tanto, tanto, mas não, não é o que o Aqui me deu; é o que o Aí me tirou.
(Faz uma diagonal ao Sucesso, middle finger em riste, rezando: “Perdoa-lhes, Senhor, que eles sabem o que fazem”.)
Rogério Nuno Costa, Helsínquia, Fevereiro 2017
Texto publicado no n.º 15 (Ódio) da Flanzine, com edição de João Pedro Azul
