Masterchef

Rogério Nuno Costa
7 min readAug 9, 2019

--

CULTURA DE MASSAS

Ravioli ampliado com um ícone pop lá dentro

Depois de lermos os livros certos e abandonarmos a velha dicotomia que separa high de low culture, podemos entregar-nos sem preconceitos à confecção deste prato que pode ser uma entrada, mas também pode ser outra coisa qualquer. Tudo depende do contexto, como é evidente. Afinal de contas, já estamos a viver no futuro. É comum dizer-se que as latas de sopa Campbell’s são a máxima personificação da cultura (arte) pop associada ao universo da comida; é mentira. O ícone pop culinário por excelência é o ovo. Conferir, a este respeito, estudos sobre a semiótica do ovo, ou então o episódio 3 do Masterchef Portugal. Esta receita usa ovos de pato, porque são grandes. Já um ravioli ampliado é um ravioli visto através dessa lupa que é o olhar pós-moderno: para ver melhor, é preciso ver de perto. Faz-se polvilhando 200 gramas de farinha com sal em cima de uma superfície de trabalho bem seca. Abre-se um buraco no monte de farinha e colocam-se lá dentro 4 gemas de ovo e 1 colher de chá de azeite. Quebram-se as gemas e começa-se a moldar a massa começando sempre pelo perímetro do monte de farinha para o interior onde estão as gemas, sempre com os dedos e ao som de uma colectânea em mp3 de italo disco a tocar em loop. Os ingredientes estarão devidamente homogeneizados quando a mistura for densa e maleável. É então que se dá à massa a forma de um rectângulo com cerca de 1,5 centímetros de grossura, cobrindo-a com um pano e deixando-a repousar durante 30 minutos. Nesse tempo, prepara-se o recheio: 1 chávena de requeijão, raspa de 1 laranja média (de Amares, de preferência), um ramo de salsa bem picado, uma colher de sopa de queijo da Ilha ralado e uma pitada de pimenta preta. Mistura-se tudo com um garfo e reserva-se. Corta-se a massa em duas metades iguais, achatando-as com a ajuda das mãos (molhar os dedos em água no caso da massa se mostrar muito seca). Depois passa-se cada metade na máquina de estender massa umas 5 a 6 vezes, até a mesma ficar bem maleável e com a grossura de uma folha de cartolina. Estendem-se as duas metades na mesa enfarinhada e fazem-se 4 quadrados iguais. No centro de dois dos quadrados, coloca-se uma porção do recheio de requeijão, abrindo uma concavidade para nela introduzir uma gema de ovo de pato. Molha-se a extremidade de cada quadrado com água e cobre-se com o outro quadrado de massa, fechando os raviolis com a ajuda de um cortador. Guardam-se os dois raviolis ampliados no frigorífico. Entretanto, prepara-se um molho do tipo Food Network com manteiga derretida, na qual se fritam folhas inteiras de salva e amêndoas previamente reduzidas a pó. Termina-se com algumas gotas de sumo de laranja de Amares e uma pitada generosa de parmesão ralado. Quando o molho começar a ficar ligeiramente bronzeado, retira-se do lume. Levam-se os raviolis a cozer em água fervente com sal durante 3 minutos. Retiram-se e escorrem-se com cuidado. Leva-se novamente o molho ao lume com duas colheradas da água onde cozeram os raviolis, até ficar com uma consistência cremosa. Coloca-se o molho no fundo de um prato, depois o ravioli ampliado e uma folha de salva frita por cima. Termina-se com um golpe subtil de azeite. Ao abrir o ravioli, a gema de pato tem que estar líquida, de forma a misturar-se levianamente com o molho de manteiga. Só assim a alta e a baixa cultura poderão viver felizes para sempre. Acompanha muito bem o ensaio “Sobre a televisão”, de Pierre Bourdieu, reserva 1997.

ESPECTÁCULO DE TEATRO

Uma cabidela a querer ser fine cuisine, ou uma cabidela-ficção

É importante começar por matar a galinha, com determinação e sem medo de ser humilhado publicamente pela Sociedade Protectora dos Animais ou outro organismo qualquer que gosta de comer carne sem lhe ver o sangue. Não é concebível a confecção de cabidela sem uma galinha criada no campo, de preferência pela própria pessoa que a vai cozinhar; de outro modo, não será uma cabidela, será “sangue cozinhado”. Existem várias técnicas para degolar uma galinha, sendo que a mais eficaz é a que introduz a cabeça do animal numa espécie de funil de plástico, assim permitindo aproveitar todo o sangue. Este é de imediato misturado com vinagre de vinho tinto e colocado num recipiente fechado, longe da luz e do calor. A galinha é depois carinhosamente depenada e escaldada. Parte-se o bicho em “rações”, que se limpam de peles. Para esta receita, aproveito só os peitos do animal e as miudezas (o resto congelo). Faz-se um refogado forte com cebolas, alhos, colorau, louro e azeite, no qual se cozinham as partes do frango até que fiquem douradas. Salga-se e apimenta-se. Molha-se com vinho verde de Amares, reduz-se o lume e tapa-se, deixando cozinhar durante mais 20 minutos. Retira-se o frango da panela, desfiando os peitos e picando as miudezas. Reservam-se. Retira-se a folha de louro da calda onde o frango cozinhou e tritura-se tudo com a varinha mágica. Acrescenta-se dois a três copos de caldo de galinha morno, até se conseguir uma mistura líquida, mas aveludada. Faz-se aqui um pequeno intervalo no espectáculo para tomar um café e esticar as pernas. A segunda parte é mais emocionante, porque é nela que a galinha portuguesa vai querer voar mais alto do que a tradição lhe permite. Numa outra panela, refoga-se meia cebola picada em partes iguais de azeite e manteiga, juntam-se 4 chávenas de arroz arbóreo e deixa-se crepitar durante alguns minutos, mexendo sempre. Quando o arroz abrir, molha-se com um copo de vinho verde de Amares e deixa-se evaporar. Coloca-se a calda de frango novamente no lume brando, aquecendo-a. A partir deste instante, vão-se adicionando conchas de calda ao arroz, nunca parando de mexer até que o líquido evapore e a mistura peça mais, mas sempre com bastante delicadeza pós-dramática. Quando faltarem duas conchas de calda, mistura-se o frango desfiado e as miudezas picadas no arroz, mexendo bem. Uma concha de calda depois, juntam-se 3 colheres de sopa bem cheias de queijo mascarpone e envolvem-se no arroz. Por último, coloca-se o sangue avinagrado e deixa-se que o mesmo dê uma acentuada cor acastanhada ao risotto. Testa-se a consistência do bago e, se ainda precisar de mais algum tempo de cozedura, coloca-se mais calda. Caso contrário, retira-se do lume e deixa-se descansar durante 5 minutos, tapado. Entretanto, misturam-se 2 colheres de sopa de queijo parmesão com 1 colher de chá de farinha e outra de sangue avinagrado, até se conseguir uma pasta ligeiramente granulosa, que se leva a derreter numa frigideira anti-aderente até se conseguir a forma de um pequeno crepe, que se aloura dos dois lados. Retira-se imediatamente do lume e, com a ajuda do rolo de cozinha, dá-se-lhe a forma operática de um cilindro. Deixa-se arrefecer, até se transformar num crocante. Coloca-se uma porção do risotto de cabidela num prato fundo, decora-se com o crocante-farinhato e termina-se com uma chuva contida de salsa picada. É muito importante dar este prato a provar sem explicar rigorosamente nada; é que os espectáculos são como as salsichas: é melhor não sabermos como são feitos! Este risotto-ficção é bom para comer sentado no sofá a ver o Masterchef.

BRITNEY SPEARS vs. LADY GAGA

Uma sobremesa que é uma verdadeira indústria criativa

No filme de 2007 do realizador brasileiro Marcos Jorge (“Estômago”), conta-se a história de como um vagabundo acabado de chegar do campo à cidade se transforma num chef de cozinha. Durante uma das aulas, o tutor explica-lhe o porquê da cozinha ser considerada uma arte, dando para tal o exemplo do pintor que gasta 100 reais em tintas, para depois vender o quadro por 100 mil. “Isto é arte!”, diz ele entusiasticamente. E continua, afirmando que na cozinha acontece exactamente a mesma coisa: o célebre “Romeu & Julieta” (queijo Minas com goiabada Cascão) transforma-se em “Anita & Garibaldi” com a simples substituição do Minas por um Gorgonzola. E é assim que um doce de “boteco” se transforma numa sobremesa sofisticada, permitindo ao dono do restaurante poder quadruplicar o preço sem grandes traições morais. Não se trata aqui de vender gato por lebre, trata-se sim de fazer ascender o gato à categoria de lebre, o que é bastante diferente. Inspirando-me nestes pressupostos, decido agarrar em dois produtos massificados da cultura pop contemporânea que competem arduamente pelo pódio (assim se anulando dialecticamente), para criar uma sobremesa que vive no atrito simbiótico de um amor impossível entre duas coisas que na verdade são uma só. Mas como o que importa na gastronomia (tal como na arte) é a assinatura, então não mudo rigorosamente nada à receita, só o invólucro exterior (título + legenda). Assim sendo, “Britney Spears vs. Lady Gaga” são 3 discos de goiabada e 3 discos de Gorgonzola de dimensões o mais idênticas possível e sobrepostos em torre. Assinado por baixo: Rogério Nuno Costa. Mas sendo isto uma receita-readymade, gosto de lhe adicionar um último elemento disruptivo e irónico: arranco a coroa a uma Nossa Senhora de Fátima de plástico e coloco-a em cima da torre. Caberá agora ao espetador/comensal decidir quem é o queijo e quem é a goiabada. Comer ao som de um mashup qualquer. Só assim a arte poderá um dia ascender à categoria de gastronomia.

©MC Ró, 2011

Receitas publicadas no perfil do concorrente “Rogério” (Masterchef Portugal, RTP, 2011).

--

--