A Maureen é Phoda
A primeira vez que vi a Maureen Miranda, ela era um menino.
Não, Maureen não é transexual nem nada do gênero, com o perdão do trocadilho. Maureen é atriz. E como toda boa atriz, se inventa toda, se transforma em outras. Ou outros até, como no caso do menino.
Era uma peça para crianças. O ano era 2001. David, o personagem de Maureen, tinha seis anos e lutava contra os Gigantes Golias, típicos desta idade: os medos, as curiosidades, as primeiras responsabilidades, o namorico pré-escolar. No mais, qualquer coisa que eu diga sobre a peça empobrece a experiência de quem a viveu como plateia. E, pelo jeito, de quem a viveu em cima do palco também. “O Menino Rei foi o espetáculo mais marcante da minha vida”, diz ela. “Fico até emocionada.” E chora.
São poucas as atrizes que podem dizer — como a Maureen diz — que têm uma peça para crianças como mais marcante espetáculo de sua carreira. E não é por falta de opções. Maureen trabalha para diretores fodas, com atores fodas, em espetáculos fodas, de companhias fodas. Companhias com representatividade não apenas em Curitiba, mas também no batido eixo Rio-São Paulo.
“A primeira vez que eu morei por um tempo seguido em São Paulo foi em 2004, para uma Temporada da Gripe”, espetáculo de Felipe Hirsch, conta ela. Outro trabalho que marcou sua vida. “Eu morava em São Paulo e me suicidava de quarta à domingo. Foi tenso o período”, brinca, ressuscitada às segundas e terças, Maureen Miranda. Mas estávamos a falar dela e de seu Menino Rei…
Quando se fala em teatro para crianças (não se usa o termo teatro infantil), as pessoas torcem o nariz, imaginam peças escolares, toscas e mal enjambradas. Quem já assistiu aos espetáculos da Regina Vogue Produções, especialmente aqueles dirigidos por Maurício, Vogue também, sabe que, aqui no Paraná — risos — não é bem assim. Já estamos acostumado com a inteligência, a beleza, a sensibilidade, a delicadeza, a profundidade e a excelência destas produções, que não são apenas para crianças nem mesmo na primeira fila.
Se você ainda não assistiu nenhuma, vá. Neste final de semana. Não precisa ser pai nem mãe. E se precisar de uma criança como pretexto para a sua criança crescida esquecer que ela é avó, empreste por algumas horas um sobrinho, afilhado, um filho de um amigo, a petizada da vizinhança, e vá! Eu fui. E foi assim a primeira vez que eu vi a Maureen Miranda. Ela era um menino.
I Love Maureen Miranda
E última vez que eu vi a Maureen, foi no Paço da Liberdade, em Curitiba, mas parecia uma novela. Não I Love Paraisópolis, a novela que ela fazia, às sete, na Globo. Mas Carrossel, em sua primeira versão, no SBT. Não a novela em si, mas a terra encantada cantada na abertura: embarque neste carrossel, onde o mundo faz de conta a Terra é quase o céu. Eu sei que é meio irreal, surreal, ou apenas meio confuso para quem vive muito com a cabeça no lugar dos pés: a terra. Mas é assim que é.
Entro no Paço, e a liberdade me acompanha. Entre duendes e fadas, a atriz convidada, espera por nós. Abre o seu coração, na mesma canção, em uma só voz. Estou na correria do cotidiano, com a cabeça em outro universo, imerso num mundo de palavras velhas para o fechamento de outra matéria. Ligo. Aviso que vou atrasar. Dez minutos.
Passam-se os dez, eu chego. Uma saudação emitida por ela, “hey”, me tira daquela outra realidade e me põe no universo dela. Aquele dos duendes e fadas, onde a terra encantada espera por nós. Um mundo tão palpável e irreal quanto o nossa. E foram apenas dez minutos entre elas.
Dez minutos, um passo, a liberdade.
"Hey." Uma saudação emitida por ela me tira da realidade e me põe no seu universo.
A Volta ao Paço em 80 Mundos
Entre aquela primeira e esta última vez que eu vi a Maureen, muitos mundos se passaram. Afinal, foram quantos dez minutos mesmo? Mas Maureen, agora uma mulher com um ano a menos que quarenta, continua parecendo um menino. É serio. Você olha para a Maureen e ela parece ter 22. “A minha criança foge de dentro de mim”, deixa escapar a atriz.
Àquela altura, já vi as fotos tiradas pela atriz na sessão de fotos do dia anterior — olha a faca! — e sei que o departamento de arte não terá trabalho nenhum para tratar aquelas imagens. Nem comecei ainda as perguntas, mas já tenho a primeira resposta: viver neste universo circense de mundo encantado e abertura de novela em que a atriz vive é uma fórmula melhor que o photoshop para se ter para sempre vinte e poucos anos. “Minha vida é lúdica”, define Maureen. “Não sei se ela é ou é a forma que eu vejo”, volta atrás, prudente, ponderada, realista. “Mas está bom assim como está.” Conclui, libertando-se para outros pensamentos.
Maureen Five
Além de phoda, Maureen é five: atriz, figurinista, artista plástica, ilustradora e escritora. Perambula por todos elas, todos os dias. Quando eu falei com ela, Maureen estava no ar em I Love Paraisópolis, criava os figurinos para uma peça curitibana, ilustrava o cartaz para uma outra produção carioca, expunha em dois ou três lugares — o Estúdio D, do Projac, era um deles –, desenhava a capa da nossa edição, lia quatro livros ao mesmo tempo — “sempre faço isso, ler quatro livros ao mesmo tempo: um autoconhecimento, um espiritualidade e outros dois romances” — e publicava outros dois: um com ilustrações dela para colorir e o outro um “ensaio sobre a cegueira”, longe do niilismo de Saramago.
“A cegueira sempre me incomodou”, revela ela. “Tenho agonia desde criança”.
Big Eyes
Talvez por causa disso Maureen desenhe criaturas de olhos tão grandes. São todas, como sua criadora, seres ávidas por olhar, sedentas para sorver o mundo com as vistas, como quem come sua fome através dos olhos.
Investigo o que você, que conhece os traços da Maureen e o universo cinematográfico de Tim Burton, também deve se questionar. Se teriam, os olhos grandes dos desenhos da Maureen, a ver com os olhos grandes da artista norte-americana Margaret Keane, referenciada por Tim Burton e popularizada por ele através de seu mais recente filme?
A resposta é não. Como a maioria de nós, brasileiros, Maureen nem conhecia a obra de Keane até o filme de Burton. “É um defeito que eu tenho, um defeito anatômico, fazer os olhos grandes. Foi completamente intuitivo”, conceitua a atriz, que acha os olhos a parte mais linda do corpo humano, por causa da cor, independente dela.
Figuras de Nós Mesmos
Maureen desenha o que gostaria de ver, mas seus olhos não enxergam. O quê a realidade não abarca através do olhar. Desenha tudo aquilo que, por mais que arregale os olhos — seus ou das suas criaturas –, nunca viveu, nem nunca verá.
“Quando perguntam o meu grande sonho, eu não digo que é trabalhar na Globo, fazer tal peça, viajar para um lugar ou ter determinada peça de roupa. Meu sonho é ver uma fada”, desenha. “Eu acredito em seres elementares, que a energia esta aí, que elas se materializam, e eu ainda não vi uma. Minha irmã, que é uma pessoa em quem eu confio, em que eu acredito, disse que já viu. Eu perco horas olhando para as árvores, mas ainda não vi.”
Antes de arriscar os traços e as tramas que desenha hoje, Maureen desenvolvia uma linguagem mais sombria, nostálgica, pesada, “quase diabólica”, nas palavras dela. Era uma tristeza que não havia nela, a não ser num cantinho. E aquele cantinho vinha. “Eu desenhava uma menina morta e achava chique, achava bonito”, escandaliza-se Maureen que, quando criança, meio gótica, meio artista, gostava de passear no cemitério com seu avô. “Agora eu mudei, mudei total”, canta para subir.
Talvez isso aconteça porque a artista desenhe Figuras de Nós Mesmos. O título é o nome de uma das coleções da versão artista plástica da atriz. Curiosamente, tal exposição ia se chamar Ciclone, mas por uma sugestão do esposo, mudou. Nunca ficamos imunes quando uma tempestade tropical ou um ciclone passam. Nestes casos, sempre começamos a transformar a imagem de nós mesmos. Assim, a Maureen transforma inseto em flor que voa.
Os Monstros
“Borboleta é flor que voa e flor que voa é fada que passeia. Eu tenho este ditado”, conta Maureen, que também desenha frases e também sempre gostou de insetos, por causa das borboletas. “Inseto é fada que não virou gente”, continua ela, desenhando.
“Os insetos sempre vieram até mim. Quando eu decidi fazer a coleção sobre eles, chamada Os Monstros, eu só expus, na galeria, insetos que vieram até mim”, conta ela, os olhos grandes e brilhantes como dos seus desenhos.
A atriz conta ainda que tem uma caixa, guardada desde a época desta coleção, com insetos que vieram até ela, como se soubessem do trabalho dela e quisessem se fazer vistos. Como se dissessem: “Hey, eu estou aqui! Me perceba, me pinte, me desenhe!”
Borboletas no Estômago
Em parceria com uma marca de roupas, Maureen lançou também a grife Borboletas no Estômago, que vende camisetas com estampas de seus desenhos. Assim, colocou sua obra não só nas corredores do Estúdio D, numa exposição que fez no Projac, retratando os personagens da novela, mas também entre as estrelas que circulam por ele.
Maria Casadevall, Nicete Bruno e Letícia Spiller, acabaram sendo expoentes muito maiores das obras da artista, do que as próprias paredes da firma, como Maureen diverte-se chamando a Rede Globo.
“É um defeito que eu tenho, um defeito anatômico, fazer os olhos grandes. Foi completamente intuitivo.” (Maureen Miranda)
Babalú
A amizade com Letícia Spiller, aliás, é um dos patrimônios herdados por Maureen com I Love Paraisópolis. Durante todo o mês de junho, ela esteve com a atriz em Portugal, rodando o curta-metragem Atira-te ao Rio, no qual Maureen é a protagonista.
O filme é dirigido pela também curitibana Carla Bohler, que esteve à frente do set de I Love Paraisópolis, dirigindo as duas. Além de Letícia, Maureen também contracena no filme com Miguel Thiré e Simone Spoladore, amiga de velhos tempos.
Entre uma tomada e outra, Maureen também aproveitou a estadia europeia para expor seus desenhos em Londres e Portugal. Terminadas as gravações, ela e Spoladore seguiram para Yorkshire, na Inglaterra, onde escreveram, juntas, à quatro mãos, o livro Miosótios e Alcaçuz, assinado pelas duas, a ser lançado pela editora Genoma.
A atriz aproveitou ainda sua passagem em Portugal para fechar uma parceria com uma empresa local, transformando sua obra em estampas de papel de parede. “Vou espalhar meus desenhos pelas paredes da Europa inteira”, diverte-se a atriz, atualizando sua vida comigo pelo Facebook, um ano depois de nosso encontro no Paço, em Curitiba.
“Meu sonho é ver uma fada. Eu fico horas olhando para as árvores, mas ainda não vi.” (Maureen Miranda)
No Espelho
Voltando ao Paço, o relógio bate às doze. É meio-dia, porque é fada. Se fosse Cinderela, seria meia-noite. É hora de dar um passo, dois passos, sair do Paço, pegar um táxi, saltar no espaço. “Ex-Paço”, penso.
Saímos pela porta traseira, atravessamos o largo, passamos as flores e chegamos ao ponto. Perdi meu tempo olhando mais tempo entre as flores e os galhos das árvores. Estes espaços vazios entre as existências, que a mente preenche conforme crê ou cria. Queria dar à Maureen alguma coisa além desta entrevista, algo que seus olhos quisessem crescer para crer. Não vi. Continuei andando.
Borboletas reviravam meu estômago, oitenta mundos passavam pela minha cabeça e meu coração estava à flor dos olhos. A atriz entra no táxi e eu não vejo nada, como se tivesse os olhos bem pequenos. Só que, aí, o inesperado acontece. Enquanto a atriz batia a porta do carro e um transeunte me perguntava se “era a moça da novela”, eu vi: uma pontinha da asa ficou pra fora.
“Não. É uma fada”, respondi ao transeunte. E ele, interessado em novelas e indiferente às fadas, foi embora, desapontado. Enquanto eu ficava ali, tendo uma epifania e entendendo tudo.
“Maureen”, voltei-me correndo para contar a ela o que eu vi, “se olha No Espelho!” No Espelho é o nome da editoria da revista impressa da qual Maureen participou. Mas era tarde. O táxi já tinha virado a esquina e eu não parava de pensar em todas as coincidências daquela hora de conversa: o título da editoria, a flor que voa, a fada que não tinha asas, a borboleta que não virou gente, desenhar o que não se vê. Mas lembrei, sobretudo, dos insetos que não viraram fadas e se apresentavam à Maureen como quem diz “me escreva”.
“Hey”, é a saudação que ela dizia ouvir deles ao ser interpelada.
“Hey”, foi a saudação que ouvi quando entrei no Paço aquele dia.
Eu não sou a irmã dela, talvez a Maureen não acredite em mim, mas ao contrário da atriz, que desenha o que imagina, eu sou um repórter. Só escrevo o que eu vejo. E meninos… eu vi!
Ao contrário da Maureen, que só desenha o que imagina, eu sou um repórter, só escrevo o que eu vejo. E meninos, eu vi! A Maureen é fada!
“Parem as rotativas!”, bradei eu, com a cabeça na outra matéria que falei no início. “É fada! A Maureen é fada”, liguei para a redação, anunciando o título da matéria. Alguém, no prelo, entendeu errado.
Foi foda!