Cena do espetáculo "SPon SPoff SPend", em cartaz na 24a. Edição do Festival de Teatro de Curitiba (2015) | (Foto — Cacá Diniz)

Festival de Teatro de Curitiba: Avant, Van-Garde ou A vã, vanguarda!?

Rômulo Zanotto
10 min readJan 24, 2017

Desde a década de 1970, o termo vanguarda foi muitas vezes associado a Curitiba. Materializado principalmente em políticas urbanas, como transporte coletivo, coleta seletiva, parques lineares e no calçadão da XV, as soluções cosmopolitas dos anos 1970 e 1980 viraram referência para outras cidades e motivo de orgulho para os curitibanos.

No início da década de 1990, pegando carona neste ufanismo vanguardista, Leandro Knopfholz realizou o primeiro Festival de Teatro de Curitiba, colocando a capital paranaense em mais uma vertente da vanguarda: a cultural.

26 edições depois, o que mudou no cenário do Festival e no contexto cultural ao seu redor? Conversamos com Knopfholz, o diretor do FTC, com a antiga curadoria do evento — à frente dele por mais de uma década — e com artistas locais.

Afinal, ainda permanecemos na vanguarda cultural ou, como nos outros meios, ela também é uma lembrança vã?

O Festival de Teatro de Curitiba (FTC) abriu suas cortinas — se não for o oposto da vanguarda falar assim — em 1992, idealizado por Knopfholz, desde sempre diretor do evento. Nesta primeira edição, reuniu 14 espetáculos e contou com as participações de Zé Celso Martinez Corrêa, Antunes Filho, Gerald Thomas, Cacá Rosset e Gabriel Vilela. Todos ícones e referência de vanguarda àquela época — e ainda hoje.

Para marcar a criação do Festival, a Prefeitura construiu a Ópera de Arame. Projetado pelo arquiteto Domingos Bongestabs, o teatro transparente foi erguido e inaugurado em tempo recorde: 75 dias. Aberto ao público com o clássico Sonhos de uma Noite de Verão, de Shakespeare, numa montagem inédita do Grupo Ornitorrinco (Cacá Rosset), na abertura do Festival, o local viria a se tornar um dos mais conhecidos cartões-postais da nossa cidade. Pouco usado durante todo o restante do ano, mas popularmente conhecido. Afora o texto shakespeariano da montagem, tudo novo. Como se vê, ousadia, precursão e vanguardismo estão na história do Festival desde o início: na proposta do evento, na arquitetura do teatro novo, na linguagem do grupo, na montagem inédita. “A primeira edição nos mostrou que poderíamos fazer história no teatro brasileiro”, aponta Knopfholz. E assim foi feito.

De lá para cá, o Festival já reuniu mais de sete mil espetáculos em mais de 25 mil sessões, com a participação de cerca de 20 mil artistas e mais de quatro milhões e meio de espectadores na plateia, em 200 espaços da cidade.

A chamada Mostra Oficial — principal evento da grade, que abriga os principais espetáculos da programação — possui curadoria especial e sempre reúne estreias nacionais, grandes espetáculos internacionais e as principais produções do teatro brasileiro.

Já o Fringe existe desde 1998 e caracteriza-se pela reunião de vários espetáculos e mostras especiais, sem curadoria, abrindo espaço para centenas de produções de todo o país. Tornou-se a vitrine mais democrática e concorrida do teatro brasileiro fora do eixo Rio-São Paulo. Foi a partir dele que o Festival se viu inchar, criar uma relevância e abrangência maior — tanto no meio artístico e crítica especializada quanto para o público em geral — e chegar aos megalomaníacos que temos hoje.

Inspirado no Festival de Edimburgo — o mais importante evento de artes cênicas do mundo — , fringe significa margem ou franja, traduzindo, com isso, a essência da mostra: apresentar aqueles que estão nas bordas ou à margem. À margem do mainstream da Mostra Oficial, à margem da visibilidade dos principais grupos de referência, à margem das vertentes estéticas e de linguagem que refletem a tendência da produção contemporânea (ilustradas pela programação da Mostra Oficial). As companhias teatrais que formam a programação do Fringe participam do evento por iniciativa própria. Por isso, sua programação sempre reserva grandes surpresas e muitas produções originais.

Pergunto ao diretor do Festival, Leandro Knopfhoz, se há algum artista que ele já tenha querido trazer nestas 26 anos e que tenha ficado de fora. Sempre focado no intuito geral do Festival, o objetivo de ser visto como uma panorama de tendências da cena contemporâneas, Knopfholz esclarece que o foco da curadoria sempre foram as produções, e não os artistas. “Nossa missão é a de organizar um mostra anual de todas as linguagens e expressões teatrais, montando um mosaico democrático e amplo da cena teatral brasileira”, explica. “Assim, todos os artistas que nós gostaríamos de ter nos palcos do Festival, nós tivemos.”

Marco Nanini, em cena do espetáculo "Beije minha Lápide", em cartaz na 24a. Edição do FTC (2014) | (Foto — Divulgação)

Mudaram as estações, nada mudou?

Desde 1992, tão certo quanto o outono, chega março e, com ele, em Curitiba, o Festival. Na edição de uma revista curitibana que circula no outono — a estação do ano que fala de recolhimento e transformação, à época em que o Festival se realiza — sob o tema vanguarda, não poderíamos deixar de investigar as mudanças do evento e as mudanças culturais na cidade decorrentes dele ao longo destes 26 anos de realização.

Conversamos com vários representantes do Festival e da classe artística, diretamente para esta matéria ou matérias complementares da edição, e apresentamos um panorama do que o Festival representa hoje, em termos artísticos e comerciais. O consenso é unânime: tudo mudou.

Se às outras questões da vanguarda associadas às políticas urbanas de que falamos no início desta reportagem se sobrepõe outros fatores — como criminalidades, áreas verdes, zoneamento e coleta de lixo (colocando a visão de vanguarda em cheque no quesito desenvolvimento urbano) — , também em relação ao Festival pode-se concluir que ele não é mais, apenas, um precursor de linguagens e tendências, como foi no início. É, desde sempre e para sempre, um marco emblemático na divisão de águas do panorama da produção e projeção cênicas brasileira, bem como um divisor de águas no panorama da cultura curitibana. Não apenas no que concerne ao teatro, mas também às outras ramificações artísticas. Tudo por estar sempre conectado com o seu tempo e com o seu contexto. Não só artístico, mas também político, social e econômico.

Um Panorama do Teatro Brasileiro em Curitiba

Para começar, não precisamos ir tão tão longe. Podemos ficar no presente. A atual recessão econômica é fator suficiente para ilustrar que o Festival, ainda que por meios e motivos adversos, estará sempre oferecendo sua grade como o mais fidedigno panorama da realidade da cena e da produção teatral brasileiras. A crise econômica chegou também ao Festival em 2015 — como chegou ao restante da produção teatral brasileira — , reduzindo pela primeira vez, naquele ano, o avanço contínuo no número crescente de espetáculos que a Mostra Oficial vinha tendo. Aquela edição trouxe 29 espetáculos contra 38 de 2014. A diminuição refletiu, por si só, a redução da produção teatral brasileira. Quer seja pela diminuição de verbas subsidiadas, quer seja pela diminuição do número de espectadores.

Knopfholz parece amenizar a ausência de grandes nomes pela visibilidade outorgada ao próprio Festival. Em entrevista recente, justifica que traz trabalhos menos vistos exatamente para que ganhem a projeção merecida. Mas a projeção e a visibilidade sempre foram fatores preponderantes no Festival, mesmo em outros tempos.

“O Festival nasceu para ser uma grande vitrine do teatro brasileiro”, diz Celso Curi, um dos curadores do evento até 2015, em entrevista exclusiva cedida à Revista One pela curadoria naquela ocasião. Naquela época — meados dos anos 1990 até início dos anos 2000 — poucas montagem circulavam pelo Brasil, principalmente reunidas em um único evento, analisa ele. Com o Festival, a tão sonhada visibilidade almejada pelos criadores brasileiros tornava-se realidade.

Lucia Camargo, outra das três antigas curadoras, complementa: “Poucos espetáculos podiam ou tinham condições econômicas para se deslocar de suas sedes de origem. O Festival sempre propiciou que grupos e montagens pouco conhecidos fora do eixo Rio-São Paulo ampliassem seu público”.

Hoje em dia, pela própria mudança da economia e das políticas de subsídio cultural — basta lembrar que o Festival nasceu em 1992, junto com os primórdios da Lei Rouanet — , este panorama mudou. “A estreia em Curitiba deixou de ser um chamariz”, continua Knopfholz na mesma entrevista. “De uns dez anos para cá, as peças são subsidiadas, já estão pagas antes de estrear, não dependem mais de bilheteria. Diretores que estreavam um espetáculo por ano, hoje estreiam quatro.”

Seja como for, o Festival marcou história para sempre neste quesito. Voltando ao curador Celso Curi, é ele quem define, de forma eloquente e contextualizada, a mais valia histórica de Curitiba e do Festival no contexto geral desta vanguarda: “O olhar atento e generoso para as novas propostas cênicas, somadas ao encantamento que todos tinham pela cidade modelo de modernidade e cidadania, floresceu e até hoje devolve ao resto do país frutos importantes.” Sendo estes frutos, principalmente, o aumento da produção e da circulação de produções brasileiras — pontualmente em recessão, mas em franca ascensão desde meados dos anos 90.

A Triangulação do eixo Rio-São Paulo

Há controvérsias, mas outro importante fator de contribuição da existência do Festival de Curitiba foi a triangulação do eixo Rio-São Paulo. “O Festival de Curitiba trouxe algo muito novo no que diz respeito à política teatral nacional: a contribuição decisiva para o tensionamento do eixo Rio-São Paulo”, defende Tania Brandão, a última dos três antigos curadores a entrar na conversa. “Criou-se uma terceira margem. Viabilizou-se mesmo o crescimento teatral do Paraná.”

Não esquecer que o Festival é um dos responsáveis pela criação e perpetração do mito da exigência artística curitibana. Até 1992, estávamos por fora do circuito de peças teatrais, o que denota uma certa falta de intimidade com aquela linguagem, especialmente no que se refere às vanguardas que seriam trazidas. Desta forma, reações lacônicas e narizes torcidos eram comuns ao final dos espetáculos, por absoluta incompreensão. Estas reações foram vendidos ao mundo como pompa, elitismo e distinção, numa atitude tipicamente curitibana. Nascia, assim, mais um mito da então cidade modelo, tendo como protagonistas seus cidadãos, herdeiros igualmente merecedores do título de habitantes modelo: a exigência e o refinamento do público curitibano, sempre tão exigente!

Lucia Camargo corrobora com a opinião: “durante décadas, o teatro de Curitiba, em particular, e do Paraná, em geral, sofreram um verdadeiro anonimato cultural. Não por falta de matéria-prima, mas principalmente por falta de uma política de incentivo à produção local”, comenta ela. “O Festival, sem dúvida, tem sua parcela de responsabilidade sobre este salto.”

Para frisar essa repolarização e o fomento às produções locais, Knopfholz cita o elenco de novelas e filmes nacionais, encabeçados cada vez mais por nomes curitibanos. Para além do estrelato, o diretor do Festival mencionada também as boas companhias de teatro estabelecidas na cidade. Na opinião dele, é incontestável que Curitiba ocupa a terceira colocação nacional na produção teatral. “É claro que o Festival não é o único responsável, mas tenho certeza que contribuímos, sim, para este movimento.”

A formação de plateia ao longo destes 26 anos também tem sido destacada com orgulho por Leandro. “As cortesias que distribuíamos aos patrocinadores tinham uma conversão efetiva de apenas 30% em ingressos. Desde 2011, os parceiros começaram, inclusive, a pedir mais ingressos”, conta naquela já citada entrevista. Bem… e se ainda não somos tão exigentes quanto deveríamos, pelo menos, agora, entendemos do assunto.

Cena do espetáculo "Pessoas Imperfeitas" | (Foto — André Stéfano)

O Futuro do Pretérito

E de agora em diante, hein? Quais seriam os rumos do Festival?

Perguntei à curadoria as orientações que permeavam o trabalho deles. Quais os rumos e as diretrizes estéticas que o Festival é orientado a seguir? O que esperar, enfim, para aquele e outros outonos, em março, em Curitiba (estávamos em 2015).

“O FTC não é mais, há tempos, um evento exclusivamente de vanguarda. Apresenta desde criações que já encontraram o seu público, às mais diversas linguagens cênicas que apontem para novos caminhos”, orienta Curi. “Acredito que, com as últimas edições, ele voltou a ter a relevância dos anos em que ousava apresentar os criadores mais radicais, sem esquecer de indicar ao grande público o quê, de grande qualidade, já está consagrado”.

Para Tania Brandão, a Mostra Oficial precisa ser desenhada, ainda e sempre, pelos vários sentidos do novo que marcam a cena teatral brasileira. Novo no que se refere à encenação, ao desenho da produção e ao perfil do homem atual. Ou seja, as diretrizes seriam as mesmas de outrora. Afinal, vanguarda é sempre vanguarda, embora mudem as estações.

E o futuro do teatro enquanto palco? Enquanto cena? O teatro tende a se relacionar com a conectividade, com a multimídia, com a tecnologia? “Este é um caminho previsível em certo sentido”, responde Brandão. “O palco vai sempre responder às demandas sensíveis dos seres humanos. Como em todos os tempos, o teatro vai tratar de se apropriar do que está no ar na sua época”, finaliza. “Inclusive dos recursos tecnológicos.”

“A tecnologia, hoje, aparece frequentemente como elemento de pesquisa e de linguagem cênica”, complementa Curi. Ao que Lucia Camargo endossa: “O teatro está sempre se reinventando. Abolindo, por exemplo, as fronteiras artísticas e interseccionando seus campos, como acontece na interação com o cinema, a multimídia, a música, as novas tecnologias. Este é novo teatro que surge, influindo e sendo influenciado.”

Para finalizar, tento insinuar outros fatores para a redução da grade, para além dos motivos econômicos publicamente aventados por Knopfholz. Pergunto se as grandes produções ainda intentam fazer parte da Mostra Oficial ou se o Festival perdeu o seu prestígio. Celso Curi é categórico: “O Festival de Curitiba, sem dúvida alguma, é o maior evento nacional para as produções. Todos querem fazer parte”, começa. “O único empecilho, realmente, é o orçamento, muitas vezes limitador para maiores ousadias”, conclui, apontando, definitivamente, para questões exclusivamente econômicas.

É… Mudam-se as estações, sobrepõe-se as vanguardas, rompem-se as cenas, falta dinheiro na economia brasileira, sobra prestígio curitibano. O Festival muda, mas permanece o mesmo. Sua força histórica residindo nestes dois fatores: o panorama sempre atual que oferece do que há de mais expressivo e instigante na cena brasileira contemporânea e a criação, ainda que sazonal e com data marcada, de uma terceira via de polarização para o batido eixo Rio-São Paulo.

Felizmente, por muitos tempo ainda, chegará março em Curitiba, e com ele o outono e o Festival.

Era uma vez, para sempre, o FTC.

Originally published at www.onecuritiba.com.br.

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Rômulo Zanotto

Escritor e jornalista literário. Autor do romance "Quero ser Fernanda Young". Curitiba.