Maria Alice Vergueiro | Ensaio do espetáculo "Why the Horse?" (Dir.: Maria Alice Vergueiro) | Teatro da Reitoria | Festival de Teatro de Curitiba | 2016 (Foto: Lex Kozlik)

Maria Alice Vergueiro está morta

Viva Maria Alice Vergueiro!

Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto
6 min readNov 9, 2016

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"Morreu” no Teatro da Reitoria, durante o Festival de Teatro de Curitiba, Maria Alice Vergueiro. Foi “velada” ali mesmo, em duas sessões do espetáculo Why the Horse?.

Mentira! As aspas, neste texto, são teatro. O que Maria Alice fazia sendo "velada" "morta" ali no palco da Reitoria, era teatro. E assim vai ser, até o dia que não seja. Até o dia em que a morte venha sem aspas. Maria Alice quis morrer em cena, ensaiar a morte, lidar com ela antes que ela chegasse, para não ser pega de surpresa.

“Gostaria de morrer em cena”, dizia ela para os amigos. “Vai ensaiando que você consegue”, respondiam.

Com sorte, de tanto que encena, pode ser que morra em cena. Se não, estará de volta no dia seguinte.

Afinal, tudo é teatro, somente teatro, nada mais que teatro. Se morte for o caso, ela é somente uma encenação. Depois que o pano fechar, a gente levanta, sacode a poeira, tira a máscara e a vida continua.

Fabio Furtado, dramaturgo do espetáculo, conta que dois motivos corroboraram com a vontade de Maria Alice fazer o espetáculo: o falecimento do irmão dela e as internações pelas quais ela passou. Se Fábio não perdeu as contas, foram cinco em três anos.

Em relação ao irmão, Maria Alice chegou a confessar que estava com medo. Impressionada, quis investigar este temor que passou a sentir.

Fabio conta que, quando surgiu essa necessidade de Maria Alice investigar a morte, sugeriu que montassem Fim de Partida, de Beckett. “Eu achava que poderia ser antológico”, revela ele. Maria Alice, entretanto, não se entusiasmou. “Ela repetia que queria algo diferente. Que a questão da morte estava presente para ela de outro jeito e que nós não entendíamos por ser mais jovens.”

Foi aí que enveredaram por um caminho diferente, que partia das especificidades de cada um em relação ao tema. “A ideia era que cada um se relacionasse com a morte através dela", explica Fábio.

Tudo é teatro, somente teatro, nada mais que teatro. Se morte for o caso, ela é somente uma encenação. Depois que o pano fechar, a gente levanta, sacode a poeira, tira a máscara e a vida continua.

O afeto transparece em cena. O resultado é impressionante. De uma teatralidade delicada.

Encenando suas limitações — a atriz tem Parkinson e sofreu princípio de AVC durante os ensaios — , Maria Alice entra em cena caminhando, de mãos dadas com Alexandre Magno e Luciano Chirolli, colegas de cena.

Maria Alice Vergueiro reverencia a plateia em cena do espetáculo “Why the Horse?”, no Festival de Teatro de Curitiba, ao lado dos colegas Alexandre Magno e Luciano Chirolli | Rômulo Zanotto ao fundo, na plateia (fileira superior, esquerda para direita, segundo espectador) | Teatro da Reitoria | 2016 (Foto: Fábio Furtado)

A entrada já é o grand finale. Maria Alice é reconhecida e carinhosamente aplaudida por cada uma das três plateias que reverencia — além da plateia do teatro, outras duas são montadas nas laterais do palco. É uma vida que se aplaude ali, não um espetáculo. Uma vida que não se separa do teatro.

Cercada de lápides por todos os lados, Maria Alice reverência os nomes inscritos nelas: Shakespeare, Gorky, Millôr Fernandes, Blanche, Sartre, Stanislavsky, Genet, Ésquilo, Kusnet, Isadora Duncan, Chaplin, Mário de Andrade, Simone de Beauvoir, Amália Rodrigues, Goethe, Moliére, Dulcina, e outra centena de artistas, pensadores, personagens e intelectuais. As lápides, em oposição à ovação da plateia, lhe redarguem a reverência com o silêncio, como é próprio da morte e dos que já se foram.

A partir daí, o que se vê é um desbunde de teatralidade.

O único limite completamente estabelecido é o limite entre a vida e a morte. Todos os outros, o da vida e o do teatro entre eles, não.

Ao encenar as limitações, Maria Alice transcende todos os limites, menos o da morte. Mas se não pode transcendê-lo, pode pelo menos encenar até a morte. Encenar até à morte.

“A ideia de morrer no palco também é uma metáfora de morrer fazendo aquilo que você gosta”, argumenta o dramaturgo.

E Maria Alice, em Why the Horse?, se revela ali, inteira, presente. Responde com precisão às deixas, ri de si mesma, “finge” não saber o texto. O que é teatro e o que é realidade? O que é fingimento? Quem sopra o quê? Quem não fala o quê? O que é verdadeira limitação o que é só encenação da limitação? O que é linguagem, o que é metalinguagem?

As cenas, quase todas, aludem às dicotomias da vida e às agruras da morte: a juventude e a velhice, o eu e o outro, a gentileza e a selvageria, o absurdo que é nascer, o absurdo que é morrer, e, ao mesmo tempo, a beleza que é poder viver e morrer fazendo teatro.

"Quem? Não? Ela?"

Já que está viva, é da própria boca que Maria Alice escuta que está morta. Numa referência metalinguística que alude à trajetória artística e de vida de atriz, no final entra em cena um televisor com imagens da boca de Maria Alice ainda jovem, recitando um texto, surpresa, ao saber da morte de alguém.

A grande ironia não é apenas Maria Alice ouvindo a notícia da morte por ela mesma, mas sim referindo-se a si em terceira pessoa. “Quem!? Não!? Ela!?”, pergunta-se incrédula a boca de Maria Alice ao vê-la morrer. E quem é que nunca imaginou o próprio velório, não?

A peça acaba como acaba a vida: sem aplausos, com consternação, num velório. O grand finale foi no começo, lembra?

Maria Alice Vergueiro entra em cena, de mãos dadas com Alexandre Magno e Luciano Chirolli | Espetáculo "Why the Horse?" | Festival de Teatro de Curitiba | Teatro da Reitoria | 2016 (Foto: Fábio Furtado)

O resultado é impressionante. De uma teatralidade delicada.

Mas, afinal de contas, por que o cavalo?

Quando ensaiava o espetáculo Matamoros, com direção de Beatriz Azevedo, “Maria Alice cismou que queria aparecer em cena dando o texto em cima de um burrinho”, conta Luciano Chirolli. “E encomendou o tal burrinho por conta própria para o aderecista.”

Quando a atriz chegou com ele, a diretora do espetáculo não quis. Maria Alice, então, tirou o cavalinho da chuva — ou seria da peça? — e levou para casa, onde morava com a mãe, quase centenária, que reunia as amigas para um chá de quinze em quinze dias.

“A Maria Alice tinha deixado o burrinho na sala. A mãe entra, estranha a presença do burrinho e pergunta para Maria Alice, tranquilamente curiosa: Maria Alice, por que o cavalo?", como se o burrico na sala fosse a coisa mais normal do mundo. Como se a mãe não fosse ficar surpreendida se Maria Alice dissesse que o tinha convidado para o chá.

“Aos 96 anos de idade”, completa Luciano, rindo muito “a mãe não ficou indignada com a presença de um cavalo na sala. Perguntou com serenidade, como se, a determinada altura da vida, nada mais espantasse. É uma serenidade que se instala. Esse espetáculo fala um pouco disso: de uma serenidade que se instala, e nada mais espanta.”

Maria Alice não conseguiu usar o burrico na peça original, mas satisfez seu desejo na “hora da morte”, digamos assim.

Um cavalo está em cena, junto com ela, no ato final.

Mas quem é que precisa saber por quê?

Há só serenidade ali.

Nada mais espanta.

Se morte for o caso, ela é teatro, somente teatro, nada mais que teatro.

Maria Alice Vergueiro (Foto: Lex Kozlik)

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Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto

Escritor e jornalista literário. Autor do romance "Quero ser Fernanda Young". Curitiba.