Carmen Jorge | Teatro Guaíra | Foto: Lex Kozlik

Nas entranhas do Guaíra

Carmen Jorge poderia ser mais uma a encarnar a figura da “pobre bailarina obsessiva que, por mais que se esforce, nunca chegará à Primeira”. Mas, felizmente, preferiu entrar para a história de Curitiba como a coreógrafa que subverteria o Teatro Guaíra.

Rômulo Zanotto

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2016

“Foi aqui que sentei quando cheguei em Curitiba pela primeira vez, costurando minhas sapatilhas”, narra Carmen em nosso encontro, apontando para um banco na praça Santos Andrade, em frente ao Guaíra. “Era audição da escola de dança, em 1988”, finaliza.

Dito assim, seco, com ausência de indicação sobre o tom, entre aspas e sem introdução da personalidade de quem as preenche, é fácil imaginar um tom saudosista para a fala acima. Mas não há saudosismo, nem apego aos sonhos, nem arrivismo juvenil embutido ali. Há apenas o tom preciso e assertivo de quem sabe citar situar a sua própria trajetória, o seu tempo, sua vida.

Aliás, com o primeiro parágrafo deste texto assim, fora de contexto, daria para imaginar uma versão curitibana do filme Cisne Negro, com Letícia Sabatella no papel título e direção de Aly Muritiba. Esqueça. Carmen está muito mais para ovelha do que pra cisne.

Se — partícula condicional que muitas vezes muda o destino das coisas — Carmen tivesse escolhido o clássico como linguagem e filosofia para se expressar (e pela personalidade dela, arrisco a dizer que nunca o faria, embora nunca seja muito tempo), por sua obsessão e perfeccionismo não há dúvidas de que teríamos tido uma Primeira Bailarina impecável como protagonista do “nosso Municipal”. Carmen certamente teria rodado pliés memoráveis no centro do palco do Guairão.

Mas a história do Teatro — talvez

por intermédio de Kronos, Deus do Tempo, que alinha a coerência das coisas com ele — lhe reservava protagonismos maiores. Carmen Jorge não queria nem o plié, nem o centro, nem o palco. A coreógrafa entraria para a história como aquela que subverteria o Guaíra, colocando o teatro em sincronia com seu tempo. Isso, do clássico, era França, século XVII, Rei Sol, inverno, milênio antigo.

Agora era 2011, Curitiba, verão, terceiro milênio, século XXI. Era hora de levar o balé pra rua e o público à (luz da) lua. Já que plateia tinha perdido o acento — era 2008 ainda quando isso aconteceu — que perdesse também o assento, em sintonia com seu tempo.

Se tivesse escolhido o clássico como linguagem e filosofia para se expressar, não há dúvidas de que teríamos tido uma Primeira Bailarina impecável como protagonista do “nosso Municipal”. Mas a história do Guaíra lhe reservava protagonismos maiores.

Carmen Jorge, nas escadas helicoidais do saguão do Guaíra | Foto: Lex Kozlik

2011 — Coreografia para ambientes preparados

Situando a questão: em 2011, Carmen Jorge foi convidada pela Direção Artística do Guaíra para ser a coreógrafa do balé anual apresentado pelo corpo de baile do Centro Cultural à cidade. O pedido era por um “espetáculo aplaudido em pé”, em palco italiano (tipo de palco com relação frontal palco/plateia). Aplaudido em pé, foi. Em palco italiano, nunca.

De acordo com a paulista radicada em Curitiba desde aquele 1988 das sapatilhas, o intuito foi dar ao público, com a coreografia, a sua definição do que é um Centro Cultural. “Eu havia acabado de voltar de uma temporada em Nova York”, conta Carmen, que frequentemente intercambia artisticamente com outros países da Europa e dos Estados Unidos, “e estava muito embebida do que eu tinha vivido lá, onde tudo acontece na rua. Quando você chega num Centro Cultural, as portas se abrem para você. Você fica o dia todo: vai na piscina, na biblioteca, assiste um espetáculo, vê um show… Essa é a função de um Centro Cultural. E o que nós temos aqui!? Um lugar onde ninguém entra. Não se oferece nada. Aluga-se os espaços para shows, e peças, e só. De quem é este Centro Cultural e a serviço de quem ele está?”

Em outros tempos, por volta daqueles da costura da sapatilha no tal banco da praça, Carmen afirma que o Centro Cultural ainda oferecia alguma vida interna, possibilidade de convívio e troca com o público. Alugavam-se salas de ensaio para companhias de teatro, havia os ensaios e as audições da escola de dança e uma cantina, onde a classe artística se encontrava e nasciam obras curitibanas. De lá para cá, “ao invés de ampliar, o Centro Cultural atrofiou, fechou as portas e não ofereceu mais nada.”

Com esta percepção, a ideia inicial de Carmen, que rapidamente evoluiria para algo completamente genial e subversivo, foi de levar a conhecimento do público, durante o espetáculo, imagens das entranhas do Guaíra, dos recônditos onde nem público nem artistas costumam entrar. Isso se daria através de projeções de vídeo-dança, a base da poética que Carmen vinha desenvolvendo esteticamente em sua pesquisa há 12 anos. “A gente foi filmar no teto, no porão, atrás da maquinaria”, conta a coreógrafa. “Já que o público não podia entrar, a ideia era mostrar para fora o que havia lá dentro. Fazer respirar”.

Mas, por enquanto, Carmen imaginava apenas usar o que filmasse projetado no palco. Mas onde? Sob que pretexto? Nas suas montagens, “projetar por projetar” nunca fora opção. Sempre foi preciso que a própria projeção obtivesse sentido e significado. Foi aí que veio o insight: “Se a ideia era mostrar a arquitetura do lado de dentro, por que não projetar essas imagens na arquitetura do lado de fora, já que o assunto era arquitetura (os ambientes preparados)?” Vinha à tona CPAP — Coreografias para Ambientes Preparados. O balé mais inesquecível que as entranhas do teatro já viram. Ou não viram, já que ficaram de fora.

O Corpo de Baile formado por cerca de 40 bailarinos deixou de lado os passos clássicos do balé e foi dançar literalmente na rua, na praça em frente ao teatro, nos saguões, nas galerias da entrada e, através da vídeo-dança, nas paredes e na arquitetura externa do prédio. Um espetáculo de dança contemporâneo formado por bailarinos, luzes, cores, músicas e público, culminando numa catarse e uma apoteose coletivas. A praça Santos Andrade, o Balé Guaíra e os curitibanos se viram, naquele dia, de um modo como nunca antes (embora nunca, você sabe, seja muito tempo). As entranhas do teatro sendo projetadas de forma lindamente bem resolvida nas paredes de fora. As entranhas nas extranhas. As vísceras na epiderme.

Foto: Lex Kozlik

“Já que o público não podia entrar, a ideia era mostrar para fora o que havia lá dentro. Fazer respirar.” (Carmen Jorge)

1999

Durante 12 anos, de 1999 até chegar àquele 2011, Carmen não parou ininterruptamente de realizar trabalhos com sua companhia de dança. Exerceu sua pesquisa coreográfica continuamente, numa poética que foi evoluindo junto com o seu tempo e agregando à sua estética e ao seu processo artístico as ferramentas modernas e tecnológicas que foram surgindo.

Assim, a coreógrafa começou a utilizar elementos como vídeo e computador para interferir na sua poética. Não de forma simplista, como a mera utilização de projeções em cenários videográficos ou mixagem de trilha sonora através de sintetizadores vocais, por exemplo. Mas sim utilizando estes elementos para compor e interferir diretamente na narrativa visual e na estética do espetáculo, bem como desenvolvendo softwares específicos para seu processo criativo. Com o balé Guaíra, apenas ampliou esta pesquisa.

O convite da direção partiu de uma necessidade de reinventar o corpo de baile do Guaíra. Com a projeção nacional e internacional de Carmen, com sua contundente e continuada pesquisa e a marcante presença da utilização de vídeo em sua linguagem poética (outra diretriz da escolha da coreógrafa era que se produzisse também um material em vídeo-dança, como forma de difundir o trabalho da companhia), foi fácil chegar em Carmem como a coreógrafa indicada para a façanha de desentranhar aquelas entranhas.

Embora dirigir a companhia mais tradicional e estabelecida da cidade nunca tivesse estado nos planos dela (a coreógrafa sempre se identificou mais com o viés da criação libertário da dança moderna, hoje chamada de contemporânea), Carmen aceitou o convite. “Por mais que eu não almejasse, aquilo passa a fazer parte do seu sonho, pois recebi o convite para coreografar a companhia de dança que eu tive como referência quando cheguei. Se a principal companhia da minha cidade estava abrindo espaço para que a linguagem contemporânea entrasse naquele momento, então eu era, sim, a pessoa indicada para fazer essa transformação, porque eu estava fazendo aquilo.”

Em 2011, o balé clássico do Guaíra finalmente encontrou o tempo moderno de Carmen e eles puderam, pela primeira vez de fato, se encontrar. “Todos os meus trabalhos têm um fundo político, um posicionamento como artista. Dança é pensamento, filosofia. Foi um ato de subversão.”

Foto: Lex Kozlik

"Se a principal companhia da minha cidade estava abrindo espaço para que a linguagem contemporânea entrasse, então eu era, sim, a pessoa indicada para fazer essa transformação, porque eu estava fazendo aquilo.” (Carmen Jorge)

1994

Recém-formada, Carmen estava em uma audição para preencher a vaga de atriz num espetáculo para crianças. No meio do texto, perguntou para a diretora se podia coreografar. “Pode”, respondeu a diretora. A partir daí, a bailarina desenvolveu também uma longa, sólida e continuada pesquisa de coreografias para teatro que se mantém até hoje. Um de seus mais recentes trabalhos, é direção coreográfica e a preparação corporal do espetáculo O Grande Sucesso, de Alexandre Nero, de quem é amiga e parceira de longa data.

1988

Curiosamente, o espetáculo aborda exatamente as relatividades do sucesso. Afinal, o que é o sucesso? Para o senso comum, certamente seria chegar à Primeira Bailarina. Isto porque o balé, como quase todo mundo, ainda não conseguiu se desfazer de uma de suas mais clássicas mazelas falidas: “O balé carrega algo que é a necessidade de ser o melhor, competir com a pessoa que está ao lado", descreve Carmen. "O coreógrafo tem um cardápio de bailarinos à mão e escolhe a dedo: você eu quero, você eu não quero”, explica ela, falando da dança, mas parecendo fazer nisto uma metáfora para o mundo.

“E a minha filosofia é: todos são iguais, todos vão criar, todos vão passar pelos mesmos processos e todos nós vamos criar juntos uma dança, onde todos serão detentores de todas as informações e usaremos as características e particularidades do corpo e de movimento de cada bailarino”, finaliza a coreógrafa, dando ao mundo a dica de como passar do clássico ao contemporâneo em apenas um ato.

Foto: Lex Kozlik

“Todos os meus trabalhos têm um fundo político, um posicionamento como artista. Dança é pensamento, filosofia. Foi um ato de subversão.” (Carmen Jorge)

Originally published at www.onecuritiba.com.br.

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Rômulo Zanotto

Escritor e jornalista literário. Autor do romance "Quero ser Fernanda Young". Curitiba.