Maria Luisa Mendonça, em cena de "Um Bonde Chamado Desejo", de Tennessee Williams (Dir.: Rafael Gomes), em cartaz na última edição do Festival de Teatro de Curitiba | 2016| (Foto: João Caldas Filho)

Um Bonde Chamado Maria Luisa Mendonça

Crítica à montagem de Rafael Gomes para "Um Bonde Chamado Desejo"

Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto
6 min readNov 12, 2016

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Tennessee Williams foi o principal dramaturgo do Realismo Psicológico do Teatro Norte-Americano das décadas de 1940 e 1950, ao lado do também norte-americano Arthur Müller (último marido de Marilyn Monroe).

Sua obra-prima é Um Bonde Chamado Desejo, estreada na Broadway em 1947 com Jéssica Tandy e Marlon Brando nos papéis principais, e eternizada no cinema quatro anos mais tarde pelo mesmo Marlon Brando, desta vez com Vivian Leigh no papel de Blanche.

Williams tem como traço mais característico o realismo psicológico de seus personagens, mas conseguiu efetivar também a criação de uma atmosfera dramatúrgica determinada sempre pela natureza da afetividade da protagonista. Foi assim que construiu Blanche, uma das personagens clássicas — clássica na acepção dramatúrgica, da jornada do herói e da curva da personagem — e fetichizadas da história do teatro.

Frágil, repleta de nuances sutis e ao mesmo tempo explícitas, Blanche é um prato cheio para qualquer grande atriz clássica. Clássica na acepção psicológica do termo.

Acontece que, digam o que disserem as atrizes que já a interpretaram, a personagem nasceu para Maria Luisa Mendonça, antes da própria Maria Luisa Mendonça ter nascido.

Maria Luisa Mendonça | "Um Bonde Chamado Desejo" (Dir.: Rafael Gomes) | (Foto: João Caldas Filho)

Dona de um estilo de interpretação muito peculiar, com resultados muito próprios e muito característicos, a atriz chegou à televisão com tudo em 1993, insinuando a que vinha. Interpretou a hermafrodita Buba, da novela Renascer. Chamou atenção do público e da crítica com sua interpretação visceral e rascante, de um estilo obviamente diferente, raramente visto em televisão.

Cinco ou seis anos mais tarde, foi a vez de vê-la no cinema, ao lado de Xuxa Lopes, em Coração Iluminado, de Hector Babenco. E tanto lá no cinema quanto cá na TV, Maria Luisa interpreta com um grau de dramaticidade e exagero que a colocam sempre no limite do over, do brega, do excessivo. Mas termina sempre um passo antes, e torna tudo instigante, bem acabado, elegante. Uma interpretação elegante.

Na televisão, só Mariana Lima atinge resultados semelhantes. No teatro, além delas, Patrícia Selonk (do Grupo Armazém, do Rio de Janeiro) e Olga Nenevê (da Obragem Cia. de Teatro, de Curitiba). Mas faltava ainda, para mim, o deleite de vê-la no palco. E no último Festival de Curitiba, eu fui.

Um Bonde Chamado Desejo é um espetáculo, na melhor acepção do termo. E Maria Luisa Mendonça, um espetáculo à parte. A densidade e a plasticidade da encenação, o bom gosto da montagem, dirigida por Rafael Gomes, são diretamente proporcionais à interpretação da atriz.

"Um Bonde Chamado Desejo"| Fresnéis, travelling e "3 Tabelas" evocam a um set de filmagem | (Foto: Lenise Pinheiro — Blog Cacilda)

Situado no centro de uma arena, o cenário evoca a um set de filmagem. Fresnéis, travelling, e meia dúzia de “3 Tabelas” (como são chamados aqueles caixotes de madeira com alças em baixo relevo presentes nos sets de filmagem). Como na dramaturgia da peça, tudo em cena gira. Tudo em cena se move.

Além da alusão ao cinema, os trilhos do travelling que circulam o centro do palco evocam também a outra peça de Tennesse Willams: Esta Propriedade Está Condenada, que se passa entre um casal de adolescentes andando e conversando sobre os trilhos, às margens de uma propriedade condenada.

Desde esse primeiro instante, a cenografia já evoca também, então, e se apropria, do significado e da simbologia desta outra peça. Fica claro, desde o início, que aquela propriedade também está condenada. E, assim como os jovens na outra peça, Blanche também retorna de alguma forma aos recônditos de sua adolescência ao desembarcar ali, naquela propriedade. Frágil, desamparada, devaneosa. É o retorno a um lugar em que nunca esteve.

Marisa Luisa Mendonça | "Um Bonde Chamado Desejo" | (Foto: João Caldas Filho)

As cenas se instauram rapidamente, ágeis. A dramaticidade e o uso circular do espaço também se estabelecem logo de cara e, a partir daí, tudo — marcações, cenário, desenho de luz, trilha sonora — faz passar as duas horas do espetáculo como se fosse uma música de cinco minutos.

Tal como Blanche— que para não mostrar as imperfeições da sua pele vive sempre na penumbra — , Maria Luisa Mendonça permanece sempre fora do foco. O restante do elenco também, remetendo à ideia de que há sempre algo oculto ou a ser escondido naqueles personagens.

Eduardo Moscovis interpreta um Stanley menos previsível que o de Marlon Brandon no filme, com nuances menos óbvias (ouso dizer isso para desespero de José Wilker, que disse numa ocasião que uma cena do filme em que Kowalski se olha por oito segundos no espelho, é a melhor aula de interpretação da vida).

O ator cede ao personagem características mais complexas e sutis. O Stanley de Moscovis não é naturalmente tão rude quanto o de Brando, por exemplo, mas parece reforçar este personalidade para atrair ou provocar Blanche. O que se desenha na forma como ele se relaciona com a cunhada e na forma como se relaciona com os outros.

Eduardo Moscovis, em cena de "Um Bonde Chamado Desejo" | (Foto: João Caldas Filho)

Um Bonde Chamado Desejo é excelente exemplo de como um texto, de início datado ou localizado, tem sua montagem justificada por uma encenação inventiva, elegante e alinhada à linguagem teatral de seu tempo.

Fosse num teatro convencional, com a bidimensionalidade de uma relação palco-plateia, e aquele realismo psicológico todo das interpretações, pareceria teatrão. Mas, pela pluralidade de ações e marcações acontecendo, pela proximidade entre atores e plateia — evocando a uma intimidade e um voyeurismo incômodos — e pela presença constante dos personagens em cena o tempo inteiro, nos tornamos cúmplices. Não só dos personagens, mas dos atores também.

Se a construção psicológica dos personagens é realista, a construção estética de Maria Luisa, ao contrário, beira o expressionismo. Se a atriz é realista na maior parte do tempo — tanto quanto possa ser realista a interpretação de Marisa Luisa Mendonça — , na outra parte a alma grita e se expressa através do corpo, em psicologismos que se revelam físicos . Corpo tensionado em significado, voz gutural, animalesca, grave, masculina.

A trilha sonora, pop, inclui Amy Winehouse, Radiohead e Beirute — muito bem colocados — e divide espaço com músicas instrumentais, dando ares de trilha sonora. Nestas horas, a atmosfera cênica evoca à realejo, carrossel, contos de fadas, parques de diversão, caixa de música.

No palco, tudo gira e roda. Estamos física e emocionalmente próximos de Blanche. Crescemos em desespero e angústia junto com ela, e também com as dificuldades e as angústias da atriz no exercício de sua função: a respiração, o cansaço, o desgaste emocional.

No final, o único momento em que Blanche é iluminada, como se finalmente pudesse ser vista. Não por ela, mas pelos outros. Maria Luisa Mendonça é rodopiada embaixo de um foco de luz, no centro do foco, girando e girando e girando, igual a uma bailarina em desespero, presa numa caixa de música.

Virginia Buckowski (Stella) , Maria Luisa Mendonça (Blanche) e Eduardo Moscovis (Stanley) | "Um Bonde Chamado Desejo" | (Foto: João Caldas Filho)

Diva moderna que é, Maria Luisa cumpriu seu papel de diva e não foi, claro, ao encontro entre os artistas e a imprensa que o Festival promoveu durante todos os dias de evento. Desta forma, não pude fazer a pergunta que tanto queria: "por que montar O Bonde hoje em dia?"

Para minha sorte, descobri por aí, depois, já tinham perguntado. A resposta, foi que Maria Luisa montaria O Bonde exatamente para descobrir porque montar O Bonde.

O motivo é claro: Maria Luisa nasceu para isso. Esperamos que tenha feito a descoberta.

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Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto

Escritor e jornalista literário. Autor do romance "Quero ser Fernanda Young". Curitiba.