O papel da literatura romântica na perpetuação de estereótipos femininos.

Letícia Rosa
8 min readApr 12, 2019

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por Letícia Rosa Machado

A compreensão sobre as diferenças corporais sexuais, que (re)significam a existência do ser humano enquanto ser feminino ou masculino, homem ou mulher, abriu margem para a formulação de ideias e valores que estabeleceram as chamadas representações de gênero. Neste viés, a forma como a sociedade cria e configura os diferentes papéis sociais, seus comportamentos e funções, é correlacionado ao gênero.

A partir dessa correlação, criaram-se padrões do que é próprio (ou não) para o feminino e para o masculino, moldando condutas e modos de se viver de acordo com a natureza sexual, apresentando-os como se fossem preceitos orgânicos do ser humano. Estabelece-se, portanto, uma ligação direta das formas de organização da sociedade, sua moral, suas aspirações, valores e comportamentos com base no gênero, formulando uma intrínseca construção — e perpetuação — de estereótipos ligados aos sexos.

Essa questão levanta as mais variadas interpretações acerca de como a sociedade conduz e impõe relações, que se propagam e se refletem nos mais diversos âmbitos da sociabilidade. E, ao pensar em promover uma investigação em campos de representação social para analisar esses cânones, é quase instintivo pensar em usar a literatura como parâmetro, uma vez que através dela pode-se observar — e, ao mesmo tempo, questionar e criticar — o desenvolvimento e as oscilações da existência do ser enquanto homem ou mulher. Mas principalmente enquanto mulher.

Durante muitos séculos, a representação da figura feminina nas páginas literárias foi confinada e sequestrada por aqueles que detinham o poder de ditar regras e orientar olhares sociais. É através disso que é possível perceber que os estereótipos femininos não são uma questão exclusiva da pós modernidade, mas que, na verdade, vem sendo (re)feitos e (re)construídos ao longo de toda a história. Assim, tracejando um caminho permeado por uma constante “batata-quente” ao qual a projeção da figura feminina é submetida: sendo passada de mão em mão com inconstância e rapidez, entregues à própria sorte, enquanto são negadas ao direito de serem concebidas e recebidas pelas próprias mãos e vozes daquelas que verdadeiramente deveriam fazê-lo, mas que, por tal despeito, já não pertencem nem a sí mesmas.

Ao fazer um recorte para compreender melhor o desenvolvimento da figura feminina no universo literário, sendo ele um reflexo direto da disposição do papel da mulher na sociedade, pontuemos então a infância feminina no século XVIII, na qual desde cedo as meninas aprendiam a se comportar segundo as regras impostas pela sociedade. As mulheres eram restringidas ao ambiente doméstico, tendo o dever de aprender a cozinhar, a cuidar das roupas e de sua aparência, sendo instruídas através da religião, da literatura, do francês e das aulas de piano e canto. Tudo isso para que pudessem se preservar e se educar, com o propósito de serem suficientemente impressionantes para atrair pretendentes e potenciais futuros-maridos. Afinal, o casamento era o único objetivo promissor que poderia ser oferecido a elas, enquanto aos homens, bacharelados na Europa, cargos importantes e inúmeras terras eram algumas das opções viáveis além do casamento.

Importante destacar que essas realidades não eram aplicadas ao todo feminino-masculino, mas sim às pessoas que se encontravam dentro de uma classe social média/alta, de maneira que as pessoas que não estavam presentes dentro dessa esfera, enfrentavam essas problemáticas de maneira hiperacentuada, uma vez que as questões ultrapassavam a fronteira do gênero e somavam-se à desigualdade econômica, política e racial.

As mulheres, portanto, ficavam a margem desse tipo de educação, agarrando-se a uma postura recatada, elegante, pura e religiosa, embora ignorante. A atribuição de pouquíssima (ou nenhuma) participação e intervenção em espaços públicos e zonas de atividade política ou artística que funcionasse em prol, senão, de uma futura união, se dão em função disso, e, logo, aumentando a visão preconceituosa de sexo frágil. Enclausuradas em casa pela figura patriarcal e, muitas vezes comprometidas com uma futura união desprovida de amor ou paixão, encontravam na literatura romântica um refúgio, uma vez que os romances idealizados nas obras literárias permitiam uma identificação direta com suas situações — e, muitas vezes, a promessa de um final feliz.

Com a ascensão da burguesia e o aumento da alfabetização, a produção e a divulgação de obras do romantismo foram facilitadas. Folhetins eram publicados semanalmente nos jornais, separando as histórias em capítulos, e livros chegavam às mesas das senhoras mais ricas como presentes para que pudessem se distrair enquanto seus maridos não estavam em casa, transformando a literatura romântica no melhor dos passatempos, mas também em uma espécie de manual, mesmo que de forma subjetiva, de comportamento e identificação. A condição feminina apresentada nos enredos era naturalizada ao ponto de não ser problematizada e questionada em larga escala. Assim, reafirmavam-se as condições de submissão e inferioridade através de qualquer pilar que fosse suficiente para sustentar o patriarcado e o machismo.

Eram nesses romances idealizadores, escritos majoritariamente por autorias masculinas, — como os de José Alencar, Castro Alves, Álvares de Azevedo e, internacionalmente, o excêntrico Lorde Byron — que a visão da mulher enquanto figura frágil e inferior era perpetuada, como se essas idealizações dessem significação e sentido para a existência feminina, reafirmando o lugar da mulher enquanto figura a ser conquistada e possuída a partir de lógicas orquestradas por homens. A idealização não se tratava somente de, de fato, obter o amor e a admiração da mulher amada, mas muito também tinha a ver com a realização pessoal da figura masculina ao obter o que almeja, e isso inclui a mulher como admiradora e amante.

O fato da mulher ficar somente atrelada aos afazeres do lar, dificultava a sua inserção no mercado literário, coisa que possibilitaria mudanças no modo como a figura feminina era representada na literatura. Entretanto, é essencial ressaltar que existiam sim obras românticas escritas por mulheres, como as de Mary Wollstonecraft, Nísia Floresta, Maria Firmina dos Reis e as de Narcisa Amália. Todas essas mulheres e autoras foram conhecidas por enfrentarem as consequências de não aceitarem serem reconhecidas como meras donas de casa e abordarem corajosamente sobre questões como os direitos das mulheres e o movimento feminista em sua fase prologal. Contudo, é inquestionável que o número de mulheres escritoras da época que posteriormente ficaram reconhecidas como tal, é ínfimo em comparação com os homens.

O perfil da mulher na literatura se dividiu em três ao longo das diferentes fases do Romantismo, delineando visões aplicadas à figura da mulher de acordo com os acontecimentos na sociedade. Na primeira geração romântica, o nacionalismo, o amor e a lealdade à pátria eram questões centrais, de modo que a figura feminina se assemelhava a como os homens deveriam tratar a pátria. Por isso, nessa primeira fase, a mulher era retratada como uma jovem virgem, pura e inocente, quase como um ser divino, a qual o homem não era digno de conquistar, sequer tocar, sendo a idealização a única maneira para se refugiar e satisfazer seus anseios amorosos. A conexão da mulher com a terra é um dos focos principais, estabelecendo a relação de pertencimento e ligação com a pátria, como é feito no romance Iracema, de José de Alencar.

Já na segunda geração romântica, conhecida como Mal do Século, as questões sociais correspondiam ao desespero causado pelas doenças e, principalmente, a tuberculose, que assolava o mundo. A mulher era representada com particularidades que aludiam à morte através de características físicas, como a magreza, a palidez e a constante representação dos lábios mais vermelhos — remetendo ao sangue que ficava na boca por conta das constantes tosses. Vale destacar que essa fragilidade a qual a mulher era associada fazia com que a dominação e a conquista da sua personificação fosse facilitada para o homem, uma vez que ou ele poderia cuidar dela ao ponto de conquistar seu amor enquanto forma de gratidão, ou buscar pela concretização do amor após a morte, pois não haveriam impedimentos terrenos. É nesse contexto que a sensualidade e a sexualização da mulher começam a se moldar na literatura romântica, ainda que de forma reprimida.

Na terceira geração romântica, a ideia da “divindade” da figura feminina que antes impedia o homem de merecê-la, é afastada. O homem passa a assumir uma representação de que é suficientemente capaz de realizar seus desejos e exercer suas liberdades e vontades a qualquer custo, inspirados pelo Iluminismo, a Revolução Francesa e a busca pela renovação social. No Brasil, por exemplo, é o período de movimentação pela declaração da República, de modo que os sentimentos revolucionários estão inflamados. Com base nisso, observa-se uma crescente na ânsia pela concretização dos desejos carnais com a figura feminina, de modo que, se ele é capaz de retirar a mulher desse altar de virgindade e pureza, então ele está pronto para enfrentar qualquer outra coisa. E é justamente nesse período que a carnalidade é concretizada.

Isso nos permite estabelecer um paralelo de que o papel social da mulher era, na realidade, transfigurado pelos homens de acordo com a sua vontade de encarnar anseios, vontades, deveres e obrigações sociais sobre a figura feminina, objetificando-as através do sexo e da moral, pois a sua imagem e sua função mudavam de acordo com o contexto que eles, homens, precisavam. Deste modo, utilizando-as como um espelho para as coisas com as quais eles precisavam lidar em sua masculinidade e existência social. E esse é um traço que permanece até os dias atuais, nos quais podemos observar como o papel da mulher é transmutado da glória e salvação para a culpa e o dolo em questão de minutos, perpetuando o caráter reflexivo que estas possuem na visão masculina. Estabelecendo uma rápida comparação para ilustrar esse argumento, pensemos no homem que, estressado por conta do trabalho, resolve descontar em sua mulher todas as suas frustrações rotineiras.

Com o passar dos anos, a mulher passou a conquistar seu espaço e assumir a posição de interlocutora de sua própria figura, embora ainda enfrente inúmeros percalços para combater a imagem romântica, recatada, resguardada, frágil, medrosa, controlável, incapaz, doméstica e passiva a qual foram conectadas. E, para tal, foi necessário que elas tomassem a frente e passassem a desafiar estes estereótipos construídos e perpetuados ao longo dos anos, mesmo que isso tenha sido feito de grão em grão. Além das autoras citadas anteriormente, foram necessárias Anas, Clarices, Adélias, Simones, Carolinas e Marias para desconstruir estereótipos femininos dentro da literatura e da sociedade como um todo, edificando o reconhecimento da autoria feminina como igual e expondo as mais diversas existências da feminilidade em múltiplas realidades sociais.

“Eu antes era uma mulher que sabia distinguir as coisas quando as via. Mas agora cometi o erro grave de pensar” Um Sopro de Vida, de Clarice Lispector.

Bibliografia

ABIAHY, A. C. Ruídos na representação da mulher: preconceitos e estereótipos na literatura e em outros discursos: A narrativa de Clarice Lispector desestabilizando os estereótipos. ST UFPB, 2006. Disponível em: <http://www.fazendogenero.ufsc.br/7/artigos/A/Ana_Carolina_Abiahy_13_A.pdf>. Acesso em: 2019 abr. 2019

REZENDE, Jussara. Mulheres escritoras no Brasil romântico. 2012. Disponível em: <https://jussaraneves.com.br/2012/03/mulheres-escritoras-no-brasil-romantico.html>. Acesso em: 2019 abr. 2019

SILVA, A. P. A Mulher na literatura brasileira: Revisitando a condição social feminina. Disponível em: <http://www.itaporanga.net/genero/4/gt07/06.pdf>. Acesso em: 2019 abr. 2019.

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