Resenha do documentário “O Espectro da Esperança”, com Sebastião Salgado.

Letícia Rosa
2 min readNov 26, 2019

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por Letícia Rosa Machado

Sebastião Salgado / Reprodução: El País Brasil.

“Não é bom morrer, Senhor, se nada resta na vida. E, na morte, tudo é possível, exceto pelo que sobrou na vida. Não é bom morrer, Senhor, se nada restou na vida. E, na morte, nada é possível, exceto pelo que alguém poderia ter deixado em vida.” É com a frase do escritor peruano César Vallejo que o documentário “O Espectro da Esperança” se inicia. Sentados na cozinha de uma casa nos Alpes Franceses, o fotojornalista Sebastião Salgado, ao lado do escritor inglês John Berger, folheiam as páginas de um exemplar de “Êxodos” — obra com autoria de Salgado e curadoria e produção feitas por sua esposa, Leila Wanick —, enquanto refletem sobre o peso que a vida e a morte exercem em ombros que mal se apercebem do que sustentam.

O encontro funciona quase como um trabalho de tradução: de um lado, um Salgado com o olhar tomado de preocupação, que discorre a respeito das lembranças fantasmagóricas das cenas capturadas; do outro, um Berger assombrado por uma realidade crua, que derrama toda a sua sentimentalidade ao tentar tecer comentários e fazer citações poético-bíblicas para exprimir, mesmo em frações, o conteúdo de Êxodos. É um trabalho em conjunto, mas é também um processo de luto, como uma busca por sentido e significado em imagens que escancaram as idiossincrasias da miséria, fome, doença, luta e (sobre)vivência.

O livro, fruto das viagens feitas pelo fotojornalista ao longo de 6 anos, ilustra o deslocamento de populações em situação de extrema pobreza, ocasionadas pela falência econômica e política de 43 países. Enquanto conversam, Salgado medita acerca dos efeitos da globalização e dos 100 milhões de indivíduos afetados por uma expansão estelar, mas não justa, desse fenômeno. Fotógrafo e andarilho das estradas, Sebastião advoga fortemente contra a perversidade do capitalismo ao contar sobre as vítimas da desolação registrada. Ao mesmo tempo, Berger o sustenta através de um discurso épico e melancólico, o que ressalta as súplicas salgadianas por ação diante das problemáticas sociais, e não apenas compaixão. “Se as pessoas só sentirem compaixão e pena ao verem as minhas fotografias, o meu trabalho terá sido em vão”, pondera Salgado.

Êxodos recebe este nome por conta das diásporas humanas pelo mundo e, através da sua fotografia, Salgado propõe um manifesto: o reconhecimento e assunção da realidade, cara e cruel. A câmera é usada como um instrumento de promoção da alteridade e Sebastião faz da sua perspectiva uma utilidade pública. Os retratos, então, aparecem como uma forma de exposição das mais diferentes formas de existência e funcionam como um choque em zonas de conforto e bolhas sociais daqueles que os observam.

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