Não, jornalismo nunca é "gratuito"

Rosiane Correia de Freita
9 min readJan 9, 2017

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Escrevo este texto com o único intuito de me poupar de ter que escrever de novo e de novo os mesmos argumentos num looping interminável de discussões de Facebook.

Pois bem, a pessoa vai lá e tasca que acha as paywalls (ou, pra leigos, o bloqueio de acesso a conteúdo de jornal para não assinantes) um saco, uma bobagem, um sinal do apocalipse. Que pagar por notícia é uma coisa superada, que tem muita coisa grátis por aí, etc.

Daí junta meia dúzia de pessoas pra dizer que basta usar navegação anônima pra se livrar da paywall (no caso específico das paywalls permeáveis, ou seja, aquelas que permitem acesso a um número limite de notícias sem assinatura por mês), o que é verdade, mas também é, pra dizer o mínimo, roubo.

Roubo? Sim. Se eu vendo doces e você arranja um jeito de obter meus doces sem pagar, é roubo. Se eu vendo conteúdo e você pega esse conteúdo sem pagar, é roubo também (abraço família tradicional brasileira, gente de bem etc).

Mas vamos ao problema principal: é um saco querer ler algo e, pá, vem um pop-up e te diz que você tem que pagar. Mas antes de largar textão em rede social, vem comigo:

  1. Assinatura digital de jornal é um negócio barato. A Folha de São Paulo custa R$ 29,90/mês. A Gazeta do Povo sai por R$ 19,90 e a minha amada Folha de Londrina vale R$ 9,90. Se você faz textão pra ensinar a roubar um negócio que custa 30 pila por mês é porque você é um ladrão bem baratinho, né não?
  2. Jornalismo custa dinheiro. Jornalismo de qualidade, jornalismo investigativo, de interesse público, relevante custa MUITO DINHEIRO. Vamos pegar um exemplo local: os processos movidos por juízes de todo o Paraná contra a Gazeta do Povo e seus repórteres custou bem mais de um milhão de reais ao jornal só em valores pagos aos advogados. Tudo para que você pudesse ler quanto nossos juízes (que são funcionários públicos, não custa nada lembrar) ganham.
    Aconteceu o mesmo com a Folha de São Paulo e a Elvira Lobato quando noticiaram o esquema por trás da compra e aparelhamento da Record pela Igreja Universal.
    Custa caríssimo mandar uma equipe cobrir in loco o massacre de presos no Amazonas (só por baixo: você gasta com passagens, transporte, hospedagem, conexão de internet, alimentação etc com pelo menos duas pessoas — repórter e fotógrafo).
    Sabe quando você diz: a mídia não mostra X, Y ou Z? Sabe uma das razões pra isso acontecer? Dinheiro.
    Nos últimos anos os maiores veículos do país fecharam sucursais fora do eixo Rio-São Paulo e reduziram o tamanho das sucursais que ficaram. O resultado? Uma cobertura ainda mais centralizada em São Paulo e desconectada da realidade do restante do país. Aconteceu o mesmo nos veículos regionais, que fecharam sucursais no interior do estado.
    "Ah, mas os veículos não têm interesse em mostrar …" Ok, pode acontecer. Mas a pressão financeira aumenta as chances de um assunto, tema ou região inteira serem excluídos da pauta de um jornal.
  3. Existem algumas formas de se financiar/ viabilizar economicamente jornais/sites. O problema é que elas também moldam como o jornal se comporta, se pauta, se apresenta.
    Há também espaço para muita experimentação, mas empresas grandes e tradicionais dificilmente arriscam testar o que quer que seja. O provável é que elas esperem alguma startup emplacar algo pra daí tentar investir.
    Mas a moral da história é que a receita das empresas jornalísticas, com raríssimas exceções, vem da audiência, seja pagando diretamente, seja indiretamente. Não existe almoço grátis.
  4. A lógica de receita pode ser perversa. De todas as opções de financiamento de um jornal, a que é mais comprometida com o público é a venda de assinatura, porque estabelece uma relação direta entre quem paga e quem presta o serviço.
    Mesmo antes da internet, a venda de publicidade representava um ambiente cheio de conflitos de interesse nos veículos jornalísticos. É fácil de entender isso. Se eu pago para o meu anúncio aparecer num jornal, estou pagando pelo jornal em si e uso meu poder financeiro para influenciar o que se noticia ou não.
    No Brasil temos aí um complicador extra: os governos (e suas empresas) em todas as estâncias são os maiores anunciantes do país. Ou seja, o(a) presidente, governador(a), prefeito(a) são "donos" de um orçamento fantástico de publicidade enquanto o jornal tem a responsabilidade de investigar e cobrar essas mesmas pessoas. Só que o investigado pode, numa canetada, cortar uma receita relevante do jornal. Isso sem falar em outras pressões possíveis, como a revisão de débitos com o governo, o cancelamento de licenças etc.
    Além disso, o jornalismo impresso (falo do impresso porque, com raríssimas exceções, é de onde vem o jornalismo mais bem feito no país e também porque é daí que vem — tb com exceções — o conteúdo dos grandes portais de internet) brasileiro é diferente do americano, que cresceu em cima da ascensão do blue collar worker (trabalhadores de chão de fábrica). Aqui o jornal sempre foi um produto da elite (também com exceções).
    Ou seja, como não era um produto de massa, o jornal impresso cresceu à sombra do dinheiro da publicidade, cuja origem é, em geral, os cofres públicos e as grandes empresas. Consegue ver o problemão que isso representa?
    E isso mudou com o surgimento da internet? Não. Algumas mudanças de fato ocorreram. No governo federal, o ex-presidente Lula mudou a política de gastos com publicidade e incluiu veículos de pequeno porte no orçamento da União, o que teve boas e más consequências (não vou nem entrar no mérito disso porque esse texto já tá longo). No Paraná, o ex-governador Requião retirou verbas de publicidade de grandes veículos (outra medida complicada que não vou discutir aqui).
    Mas no fim do dia, a publicidade continua sendo fonte de conflitos de interesse para os jornais. Só que temos um probleminha extra na era da internet: como a publicidade digital depende de ter MUITO PÚBLICO, a lógica do negócio acaba sendo a de atrair cliques a qualquer preço. É aí que o interesse público dá lugar ao interesse DO PÚBLICO. E não falo do interesse no sentido relevância. Falo do interesse imediato, superficial. O tipo de interesse que nos faz clicar para ver fotos de celebridades na praia ou a tal foto do vestido que pode ser de uma cor ou outra.
    Nessa lógica, a relevância social e o interesse público ficam LÁ TRÁS. O que vale é que você clique, seja no que for. É por isso que os jornais acabam investindo em textos que refletem mais o que você quer ouvir do que o que você precisa ouvir. (Sabe aquele texto que explica porque mulheres que bebem cerveja são mais inteligentes? Então, não tem nada de científico nisso, mas você compartilha para poder se chamar de inteligente de um jeito que não fica muito cretino).
    "Ah, mas dá para fazer clickbait e jornalismo sério ao mesmo tempo". Na realidade, não. Se o que traz dinheiro é o clickbait, você coloca toda sua equipe para fazer clickbait e pronto. Ainda mais se sua equipe não para de diminuir de tamanho.
    E mesmo que exista jornalismo sério convivendo com jornalismo chinfrim, este último colabora para o aumento do ruído e atrapalha a visibilidade daquilo que é realmente relevante.
  5. Pagar pelo jornal/site é cortar intermediários. Sendo bem direta: se você quer que uma empresa jornalística se importe com o seu interesse e o da sua comunidade, seja um cliente real para ela. Como consumidor de publicidade você vale MUITO POUCO e é extremamente substituível.
    Como assinante você é MUITO VALIOSO. Um assinante não é só alguém que paga todo mês pelo jornal. É alguém que dá relevância para a publicação, que permite que outras pessoas acessem o conteúdo produzido, que faz propaganda positiva da publicação.
    Muitos jornais têm vagas para assinantes/leitores em seus conselhos editoriais. Outros também limitam comentários de notícias a usuários pagos do sistema. Mas as empresas jornalísticas também poderiam adotar práticas de comunicadores independentes da internet, como podcasters que criam grupos de discussão de pautas com a participação de assinantes.
    No fim, se recebe muito por um valor baixo.
  6. Ser assinante te permite assumir responsabilidade como leitor. Comprar uma assinatura de jornal é diferente de comprar um carro, uma televisão. O jornal não serve para te agradar, sabe? Nem para falar bem do teu candidato. Se você votou no prefeito eleito, a obrigação do jornal de fiscalizá-lo e denunciá-lo quando necessário permanece. Não adianta ficar bravinho quando isso acontece.
    No entanto, o leitor deve e pode aprender a julgar a informação e cobrar melhoras no processo de apuração e checagem do jornal. O veículo publicou uma acusação grave sem fonte e sem checar? O jornal avaliou mal uma situação? Deixou de investigar algo relevante? Tratou pessoas diferentes de forma diferente (mostrou a cara do acusado de roubo pobre, mas não deu o nome do acusado de assassinato rico, por exemplo). Cobre, reclame. (Não precisa ser assinante para fazer isso, mas quando a gente se compromete a pagar por algo é natural que a gente dê mais atenção para ele)
  7. O jornalismo é importante demais para ficar na mão dos anunciantes. Você viu o discurso da Meryl Streep no Globo de Ouro? Então, ela cobrou que a imprensa continue a "hold the powerful accountable" (algo como responsabilizar os poderosos). É isso que a imprensa TEM QUE FAZER (e não noticiar com quem o Neymar está namorando).
    O jornalismo é uma necessidade fundamental do ser humano. Nós precisamos de informações sobre nossa comunidade e o mundo. É o que nos ajuda a construir o senso de comunidade e também a tomar decisões baseadas em informações e fatos (ou seja, ser cidadão).
    Note o uso da palavra PODEROSOS acima. Não estamos falando só dos governantes. Estamos falando das grandes empresas, dos ricos, de qualquer pessoa cujas ações afetam outras pessoas (padres, pastores, professores, médicos).
    Num mundo ideal nós mesmos poderíamos nos informar por conta própria, não é? A internet tá aí, é só fuçar, não? Só que as pessoas trabalham, têm famílias, estudam. E investigar algo é um trabalho EXTREMAMENTE DIFÍCIL, demorado, complexo.
    É aí que entra o papel do repórter. Ele dedica TODO SEU TEMPO a fuçar, investigar, estudar. É um trabalho árduo que, muitas vezes, não dá em nada. O repórter também precisa questionar o próprio trabalho o tempo todo e se manter longe de conflitos de interesse, além de resistir a pressões de todo tipo.
    Um bom jornalista precisa de tempo e estrutura para fazer seu trabalho. E isso custa dinheiro.
    Quando você diz que não quer pagar por conteúdo, dá uma cusparada grande na cara de quem já foi ameaçado de morte, agredido, processado, desrespeitado para tentar manter a DEMOCRACIA QUE VOCÊ USUFRUI. Essa pessoa que você despreza ganha pouco (o piso de jornalista no Paraná tá em quase R$ 3 mil, mas é raro que alguém já com anos de carreira ganhe muito mais que isso — a não ser que assuma funções de chefia e largue a reportagem), sofre diariamente com todo tipo de agressão, do covarde que anonimamente te xinga e agride via internet ao poderoso que ameaça o jornal e pede sua demissão e gasta boa parte do (pouco) dinheiro que ganha estudando para se tornar um jornalista melhor. E a sua atitude é só mais uma agressão entre tantas outras (porque desprezar o trabalho alheio é agressão, sabe).
    Mas daí você vai dizer: "ah, mas eu to falando do dono do jornal que ganha dinheiro com isso". Sim, darling, mas o dono do jornal vai ganhar dinheiro com o jornal bem feito assim como com o portal clickbait feito nas coxas e cheio de conteúdo plagiado. Aliás, capaz dessa última opção dar mais dinheiro e menos dor de cabeça porque clickbait não incomoda ninguém nem gera processo.
    Agora o jornalista, esse só tem o conteúdo que produz para viver, sabe? E quando as pessoas começam a dizer que não vão pagar, isso coloca o profissional numa situação complicada. As empresas para as quais ele pode trabalhar passam a valorizar um monte de coisas que NÃO TEM NADA A VER COM A QUALIDADE DO TRABALHO JORNALÍSTICO. Daí você acaba vendo que aquele colega medíocre que é especializado em "viralizar" ganha mais espaço que você enquanto aquele projeto de investigação super relevante continua na gaveta.
    Mas você me diz: tem muito conteúdo ruim mesmo em jornal pago. Verdade. Há muita mediocridade e incompetência. E também muita falta de maturidade e ignorância nas redações (uma vez que os profissionais mais competentes e maduros acabam indo trabalhar em outras áreas melhores remuneradas). Mas você não PRECISA assinar o jornal que é ruim. Tem inúmeras opções boas por aí. Patrocine projetos independentes (entre no Catarse e fuce. Tem muita coisa lá), como a Pública, o Livre.jor, o Congresso em Foco.
    Não quer assinar a Gazeta? Que tal assinar a Folha de Londrina? Ou o Zero Hora? Você vai poder continuar a acessar conteúdo "gratuito" mesmo assinando um pago, sabe? E tudo isso sem ofender o meio de sustento de alguém. Não é legal?

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