Apontamentos de “Guerrilha”

Rossandro Aranha B. Filho
10 min readNov 28, 2018
@italomarsili

Há cerca de 2 meses, minha namorada me fez a indicação de um médico para que eu pudesse seguir no Instagram. Não apenas isso, foi bastante veemente em reafirmar que eu deveria acompanhar as respostas que ele dava nos stories do Instagram dele. Fui relutante, mas acabei cedendo e segui o dr. Ítalo Marsili. Não posso negar meu estranhamento no início. O doutor falava sobre umas questões meio esquisitas: falava sobre a importância da suplementação e da terapia hormonal em sua prática clínica (o que anteriormente, na minha visão, não era nada menos que um absurdo para um psiquiatra); falava um pouco sobre a importância do servir sem reclamar; criticava atos de preguiça velada como o famoso “perfeccionismo”; ressaltava a importância da religião, em vez da mera “espiritualidade”… Enfim, uma série de coisas das quais nós podemos concordar ou discordar, mas ditas com uma sinceridade visceral e com a certeza que transparecia a segurança de anos a fio que ele havia se “debruçado” sobre as questões que se manifestava.

Acompanhar os stories se tornou parte da minha rotina diária. As respostas dadas pelo dr. Ítalo aos seus seguidores consistiam naquilo que ele mesmo batizou de “Terapia de Guerrilha”: uma sucessão de soluções práticas e simples para questões que todo ser humano haveria de se confrontar em algum momento da vida. Soluções práticas e simples — com as quais, por vezes, não sabemos lidar por nos negarmos a acreditar que a vida é simples e não o mar de complexidades no qual imaginamos estar imersos. Tudo o que ele dizia não passava do banal e esquecido por nós no dia a dia pós-moderno. Dar esmola, servir, não reclamar, rezar diariamente, dar o seu melhor, não esperar nada em troca: nada além dos ensinamentos que nossos pais e avós tentaram colocar nas nossas cabeças durante anos — mas, como dito, que nos recusamos a aceitar. “A vida tem que ser mais complexa do que isso!”, pensamos. A maturidade consiste em aceitar que a experiência adquirida através do tempo não deve jamais ser ignorada em favor dos “novos tempos”, como se tudo de novo trouxesse necessariamente melhorias (e como se tudo o que é mais complexo fosse obrigatoriamente mais factível para a vida prática).

Nessa perspectiva, um dos stories me levou a ter uma ideia de tentar “sintetizar” parte daquilo que consegui aprender com o doutor Ítalo. Não será possível abarcar tudo aqui, nem mesmo sei se compreendi plenamente aquilo que ele tentou transmitir. Mas, de antemão, aviso que há aqui um esforço genuíno em tentar interpretar aquilo que foi ensinado — e, como diz o professor Olavo de Carvalho, saber expor em uma ordem determinada aquilo que foi aprendido é uma característica necessária para aquele que pretende seguir em uma empreitada de auto-educação. Passo, a partir de agora, a comentar brevemente algumas das “máximas” do nosso professor psiquiatra, numa tentativa de “pôr em ordem” algumas dessas ideias.

“Acorde cedo, tome banho frio”

Lembro-me de diversas vezes minha mãe me contando que, quando criança, achava estranho o hábito do meu avô de não tomar banho antes de ir ao trabalho. Entretanto, segundo ela, após crescer um pouco acabou por descobrir que meu avô acordava muito cedo, num horário que ela quando criança dificilmente acordaria: 5 da manhã. Após acordar, ia tomar o seu banho, para se alimentar e depois passar por mais um dia de trabalho. Ora, a cidade que a minha mãe viveu por boa parte da vida — e na qual eu vivi durante dez anos da minha — foi a cidade de Boa Vista, no Cariri paraibano. Com clima seco, característico da caatinga: pouca umidade do ar, chuvas escassas (no máximo uma vez por ano ou a cada dois anos, durante períodos muito curtos) e uma característica de noites frias. No interior nordestino, marcado pela seca, é comum o tempo diário de manhãs quentes e noites frias, devido à baixa umidade do ar e, consequentemente, pouca capacidade de reter o calor no período noturno.

Também me recordo com muita clareza dos tempos nos quais eu estudei em um colégio municipal em Boa Vista. Acordava cedo pela manhã e ainda sentia o resquício do frio noturno (cerca de 18º C). Embora não seja um frio antártico, é uma temperatura consideravelmente abaixo do ideal para tomar um banho à “temperatura ambiente”. Meu avô, consequentemente, acordando ainda mais cedo, submetia-se a um banho capaz de acordar qualquer um para a realidade e colocar em uma situação pronta para suportar um dia de trabalho.

Esse curto preâmbulo serve apenas para ilustrar a questão colocada para a Guerrilha sobre os benefícios do ato de levantar cedo e tomar um banho frio: põe-nos “face a face” com a realidade do dia que está por vir (do trabalho a ser realizado e das situações a serem vividas) e tira de nós uma espécie de “auto-piedade” que nos paralisa, numa tentativa de ascender pelas camadas da personalidade a partir do domínio do nosso corpo. O dia que se seguirá não terá pena de você, pois ele é neutro — a posição na qual você o encara é que fará toda a diferença no seu desenrolar.

“Reze um Pai-Nosso”

Tendemos a criar situações espirituais impraticáveis. Independente da religião que se professe, é comum esquecermo-nos no decorrer do nosso cotidiano dAquele a quem todas as coisas se ordenam — e a quem toda a realidade está submetida. Colocamos o relacionamento com o divino em um ambiente separado: ou em um patamar impraticável, que apenas pessoas com graus elevadíssimos de espiritualidade são capazes de alcançar (e, portanto, não vale a pena sequer tentarmos empreender algum esforço nesse sentido); ou em um ambiente secundário nas nossas vidas, sem qualquer influência direta (indo à Igreja apenas nos momentos de “obrigação”, ou mesmo que frequentemente, mas apenas como forma de manter algo estável, sem real envolvimento com aquilo).

O erro daqueles que põem a relação com Deus como algo altíssimo e impossível é que isso exige um esforço à altura, um esforço que na maior parte das vezes não empreendemos — ou que jamais seríamos capazes de empreender. Por outro lado, há períodos nos quais nos sentimos particularmente tocados pelo divino e sentimos a necessidade de corresponder a isso em intensidade. Estes períodos costumam a ser seguidos de situações de “piedade” constantes e, posteriormente, uma culpa irremediável por focarmos nos nossos afazeres diários em vez de corresponder a esse amor que sentimos — o que acaba por nos paralisar durante as atividades diárias sob o pretexto de precisarmos nos voltar integralmente para este sentimento, como se isso não disfarçasse, na realidade, uma preguiça de prosseguir com as atividades cotidianas e que também fazem parte da nossa relação com Deus. Quando nos preocupamos com nossas responsabilidades diárias, essa sensação de culpa de não corresponder o amor de Deus não encontra mais espaço, pois servir naquele ambiente no qual você foi colocado e exercer o amor ao próximo é corresponder maximamente à vontade do divino.

Em contrapartida, o erro daqueles que praticam sua religião quase que automaticamente, como uma convenção social, é de não perceberem que há uma relação pessoal para com Deus, porque Ele não é apenas uma ideia abstrata. Deus é pessoal, é Alguém com quem devemos nos relacionar. Manter uma prática diária de relação para com ele é como manter o hábito de telefonar para os pais ou ir visitá-los, mantendo-nos próximos e presentes.

Na minha interpretação, é a isso que se refere o dr. Ítalo ao dizer “reze um Pai-Nosso”: é fazer um mínimo que está ao nosso alcance para corresponder ao amor que gratuitamente nos foi dado. O ideal é voltar todo o seu itinerário para Ele, mas como conseguiremos fazer isso se nem mesmo o mínimo somos capazes de fazer? Rezar regularmente é esse mínimo, é colocar-se na presença do Eterno de maneira a lembrar sempre de sua simplicidade — na posição de tentar aprender e evoluir.

“Trabalhe, sirva, seja útil”

Este conselho eu considero um exercício particular de humildade. “Seja útil” é uma forma de nos recordar que não há nenhum motivo intrínseco pelo qual as pessoas deveriam nos levar em conta. Existem milhões de pessoas no Brasil e, a priori, não há nada em especial a ser considerado em você. Para que os outros vejam algo de valioso em nós, é preciso que forneçamos algo de valioso. Esta “utilidade” é, portanto, uma marca que pode ser deixada por nós nos outros — um motivo, aí sim, pelo qual haverá algo de nós a ser considerado pelos outros, embora este reconhecimento não deva ser o primeiro objetivo do serviço.

Trabalhar, portanto, não é mais apenas uma forma de obter sustento, mas sim uma forma de servir. Caso consigamos transferir essa visão para nossas tarefas diárias, fica mais evidente um olhar humano para com os outros. Exercer a nossa função de trabalho (pela qual nós seremos remunerados) e fazer isso bem não é nada além de uma obrigação — mas, por outro lado, colocar nosso trabalho a serviço do outro é criar uma nova utilidade para aquilo que se faz, ser verdadeiramente útil. Colocando a nossa humanidade à disposição do outro, deixamos de ser “coisas” na vida das pessoas — porque um humano que se apresenta como tal a outro humano jamais passa despercebido. Independentemente de qual exercício profissional esteja em questão, é preciso dar este viés de serviço ao trabalho diário e fazer frutificar — sem segundos interesses, porque ninguém te deve nada.

“Dê esmola a um mendigo”

A esmola é um exercício contínuo para se livrar daquilo que a teologia moral reconhece há tempos como “juízo temerário”. Nós, na contemporaneidade, julgamos sermos cientes das verdadeiras necessidades daqueles que nos pedem dinheiro nas ruas da cidade. “Ah, eu dou sempre comida, nunca dinheiro, porque eles podem usar para futilidades”. Por acaso aqueles que te pagam se perguntam se você usará seu dinheiro para futilidades? O que você tem de diferente daquela pessoa que está diante de si, com suas qualidades e defeitos, dotada do mesmo livre arbítrio que todos nós? A esmola serve para o desprendimento, para colocar de lado o nosso juízo prévio e nos colocarmos à disposição também daquele que está na situação vulnerável de pedir.

“Não reclame, não encha o saco”

O ato de reclamar é uma tentativa de fazer o outro se compadecer consigo. “Olhe para mim, olhe como sou injustiçado”. Cada um de nós luta contra nossas próprias injustiças diárias e, como já foi dito, ninguém costuma se importar com as pelejas diárias dos outros — porque cada um já tem seus próprios problemas. O excesso de reclamações é uma forma de se colocar no centro das ações. É evidente que existem situações nas quais dependemos dos outros, mas o ponto não é este. A única pessoa capaz de resolver de frente os seus problemas é você em última instância. E ser um reclamão, que valoriza suas próprias labutas diárias, é diametralmente oposto à ideia do serviço que foi dita anteriormente. Quem serve de boa vontade, sem esperar nada em troca, não pode se sentir injustiçado se nada ocorre — a recompensa é o próprio serviço, é a sua demonstração de humanidade para o próximo.

“Ninguém te deve nada”

O trabalho, o serviço, o “não reclamar”, culminam aqui. A plenitude do exercício da vontade é realizar aquilo que se quer sem necessariamente esperar uma contrapartida. É a receita para a felicidade na vida prática: servir como se sempre devesse algo aos outros, mas agir com a consciência de que ninguém é obrigado a retribuir. “Ninguém me deve nada” evita a frustração de não ser correspondido e eleva a gratidão para com aqueles que retribuem o nosso serviço — como algo que foi feito gratuitamente, mas que é verdadeiramente digno de reconhecimento.

Como um exemplo prático: um bom pai, portanto, não deve nada ao filho adulto, mas o auxilia nos momentos de maior necessidade como se fosse sua obrigação. O filho que tenha uma consciência delicada e madura, que sabe que não está mais sob a responsabilidade dos pais, deve ter claro diante de si o fato de que o pai não lhe deve nada em absoluto: aquilo que faz, o faz por caridade — e, por isso, é digno da maior gratidão; e, aquilo que não o faz, não passa de uma confirmação desse “não dever” (e que não deve nutrir uma decepção, como se fosse uma espécie de “direito”).

Por outro lado, seu serviço aos outros deve sempre simbolizar para si uma obrigação para com o próximo, como reflexo de sua própria humanidade, não como algo que merece pagamento ou retribuição. Assim, não nutrimos expectativas, não existe a possibilidade de decepção (não posso me decepcionar por não receber aquilo que ninguém me deve) e aprendemos a tocar nossas tarefas adiante sem dar demasiada importância a fatos pontuais.

Conclusão: “Não sou seu guru”

Estes apontamentos não são exatamente um “tratado” sobre a Terapia de Guerrilha, tampouco resume tudo o que já foi dito durante a “terapia coletiva” no Instagram do dr. Ítalo. Este conjunto de verdades não é um guia prático para uma vida mais fácil, é justamente o inverso disso: as verdades relembradas aqui são formas de lidar com a dificuldade diária de cabeça erguida e com a confiança de quem sabe aquilo que esperar da vida — e aquilo que nós mesmos podemos fornecer para “amenizar” um pouco o trabalho dos outros em certa medida. São medidas simples e genéricas que podem ser aplicadas por qualquer um e que com certeza surtirão efeito positivos. Não são fórmulas mágicas, são apenas atividades simples que todos conhecemos, mas nunca implementamos no nosso dia a dia, embora causem uma extraordinária mudança para nós e para aqueles que nos circundam.

Existe uma série de pontos importantes que não foram comentados aqui, mas que frequentemente são abordados — suplementação, a importância da saúde hormonal na vida conjugal, a questão do perdão… — pelo doutor no seu Instagram. Tais temas necessitam de explicações mais detalhadas às quais ele dedicou vídeos e cursos inteiros para desenvolver mais completamente — cursos que valem a pena ser adquiridos.

Concluo com uma das frases clássicas: “Não sou seu guru”. Ninguém é seu guia, ou uma espécie de “coach particular”. Sempre que alguém acreditar que a “Guerrilha” é uma espécie de “auto-ajuda”, de “desenvolvimento pessoal” ou coisa do gênero, é necessário relembrar que ela é exatamente o oposto disso: é adquirir uma postura humilde diante da vida, consciente de que não há soluções milagrosas para nossos problemas diários — e de que problemas banais podem ter, de fato, soluções igualmente banais, mas que para serem percebidas precisam de um olhar atento diante da vida. Viva a vida na primeira pessoa, não como um mero espectador.

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