Hidroxicloroquina e a pandemia da desinformação: o que podemos tirar de lição?

Ricardo Petraco
11 min readApr 13, 2020

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Ricardo Petraco MD PhD, cardiologista e pesquisador da Imperial College London

A pandemia e o tedio nos ensinam algo sobre a incapacidade de análise crítica de informaço.
Photo by engin akyurt on Unsplash

Misture a crise do COVID-19, o tédio da quarentena e a internet. O resultado é a maior criação de novos especialistas em epidemiologia viral da história, graduados nas últimas semanas no curso de Achismo Empírico da WhasApp University. Dentre os muitos ciclos de opiniões rodando as redes sociais, o mais interessante é centrado no apoio ao uso da HCQ em pacientes com COVID-19. Alguns defendem o uso indiscriminado da medicação, e outros preconizam até como prevenção, em indivíduos sem a doença. O argumento comove e convence: pessoas estão morrendo, devemos tentar salva-las! O nível de entusiasmo está alto. A sensatez das discussōes nem tanto. Eu tomo a liberdade então, de usar essa novela e criar uma curta aula de estatística e ciência popular, no estilo perguntas e respostas. O público alvo é o público leigo — mas alguns médicos e cientistas poderiam se beneficiar de ler as respostas 9–10.

Eu sou médico cardiologista formado pela UFCSPA de Porto Alegre, com doutorado em fisiologia cardiovascular pela Imperial College London e atualmente trabalho como professor e cardiologista nesta mesma instituição. Então, como as pessoas me fazem muitas perguntas sobre o assunto HCQ (mesmo que eu seja somente cardiologista) eu resolvi respondê-las aqui com o meu chapéu de cientista. Como pesquisador, eu e meus colegas passamos boa parte do nosso tempo discutindo como desenhar estudos para demonstrar para a comunidade médica a utilidade de testes diagnósticos, ou o benefício de terapias clínicas. Infelizmente, no Brasil, o ensino de métodos científicos, estatística e análise crítica de informação é quase inexistente em escolas e até universidades, então acho que nunca faz mal ler mais sobre o assunto — ainda mais durante essa estafante quarentena. Eu espero que as lições aprendidas com a novela da HCQ possam ser úteis no futuro, ja que o passado nos ensina que mais pandemias virão.

A Hidroxicloroquina funciona?

Eu não sei. Eu acho que não. Ninguém sabe.

Vocês estão usando aí em Londres?

Estamos usando em pacientes hospitalizados como medida pragmática na ausência de outro tipo de tratamento útil, mas somente como uma estratégia temporária até estudos sérios serem publicados.

Mas já não têm estudos sérios demonstrando que a HCQ funciona?

Não, os estudos circulados até agora na rede social são metodologicamente pobres e cheios de problemas técnicos (que nos chamamos de vieses). Eles não confirmam ou excluem que a droga seja útil.

O que são vieses?

Vieses são erros metodológicos presentes em estudos, que não permitem que o efeito da droga (HCQ nesse caso) seja testado de maneira confiável. Vieses em estudos tendem a favorecer a droga sendo avaliada porque permitem que o time de pesquisa e o paciente (que normalmente querem que a droga funcione) afete o resultado do estudo. Estudos perfeitamente desenhados e executados funcionam porque isolam os resultados do estudo de qualquer influência do paciente e do time de pesquisa na coleta e análise de dados, e na intepretação dos achados. Uma lista de tipos de vieses com explicações acessíveis pode ser encontrada aqui.

Vieses não podem ser corrigidos durante ou após o termino do estudo. Portanto, a única maneira de evita-los é através da implementação cuidadosa e antecipada de estratégias que limitem a interferência do paciente e do time de pesquisa nos processos de coleta e analise de dados.

Mas então qual é esse tipo de estudo ideal? Como eu posso saber se o estudo que recebi de amigos é confiável, sem vieses?

O estudo ideal para a avaliação de terapias se chama Estudo (ou Ensaio) Clínico Randomizado (ECR). ECR são ideais porque comparam o uso da droga (HCQ) com um tratamento chamado “controle” (ou seja, um grupo de pessoas que não usa a droga). Importante, ECRs tem que ser prospectivos, ou seja, os pacientes são incluídos depois do investigador decidir fazer o estudo. E, muito importante, o termo randomizado significa que a medicação sendo testada foi distribuída aleatoriamente entre os pacientes (por exemplo 100 pacientes recebendo HCQ e 100 um tratamento controle).

A randomização é essencial porque remove do pesquisador o papel de decidir quem recebe a droga ou não — um computador randomiza os pacientes e não a equipe do estudo.

Portanto, estudos retrospectivos, não randomizados e sem o chamado grupo controle são inúteis para demonstrar o efeito de uma terapia em uma doença.

Inúteis.

O que significa que o estudo é cego ou duplo cego?

A “cegueira” se refere ao tipo de grupo controle e demonstra se o médico e/ou o paciente sabem que tipo de terapia o paciente recebeu. O estudo é chamado de cego quando somente o paciente não sabe a qual grupo de tratamento ele foi alocado e duplo-cego quando ambos o paciente e o time de pesquisa não sabem. De forma geral, a única maneira de fazer um estudo ser duplo-cego é oferecer ao grupo controle uma terapia que parece exatamente igual a terapia ativa (no nosso caso HCQ), que chamamos de placebo. Placebo pode ser um medicamento ou até mesmo um procedimento cirúrgico falso que simule o original, como os fizemos recentemente aqui com stents cardíacos.

O estudo tem que ter placebo para ser confiável?

Depende. Quando o desfecho do estudo (o que está sendo medido como comparação no final) for somente o número de pacientes que morreram pela doença, estudos sem um grupo placebo são aceitáveis, porque morte é um desfecho (quase) impossível de ser manipulado pelo time de pesquisa. Entretanto, quando outros desfechos são apresentados no estudo (como por exemplo tempo de internação na UTI, sintomas apresentados pelos pacientes, resultados de testes diagnósticos etc) a presença do grupo placebo é essencial e estudos devem ser duplo-cegos para serem confiáveis. Inevitavelmente, a implementação de um grupo placebo em estudos os torna logisticamente mais complexos e mais caros.

No próximo estudo encaminhado pelo Whatsapp, olhe no título ou na sessão de métodos e procure por “Estudo Clínico Randomizado” e idealmente “duplo-cego, controlado por placebo”. Sem esses termos, pense antes de encaminhar.

Quais outros critérios devo usar para saber se confio em um ECR?

Primeiro, verifique se o ECR foi prospectivamente registrado no site www.clinicaltrials.gov.

Se não estiver lá, o estudo não é confiável. Confira se tudo que foi prometido no clinicaltrials.gov foi realmente apresentado no estudo, incluindo número total de pacientes, desfechos testados e até mesmo o tipo de teste estatístico usado. Fundamental, claro, é que o estudo seja registrado no site antes de começar. Por exemplo, estudos com HCQ devem entrar no site antes de serem iniciados e o que é registrado no site é a hipótese a ser testada (de que a HCQ vai diminuir a mortalidade de pacientes com COVID-19) e não o resultado do estudo em si.

Segundo, verifique se o estudo foi publicado em uma revista cientifica séria, através de um processo chamado de “peer review” (revisão por pares em português). Isso significa que, antes de ser publicado, o estudo passou por um escrutínio científico de pesquisadores com conhecimento semelhante aos autores do estudo. Estudos clínicos de grande impacto e de desenho adequado são normalmente publicados em revistas cientificas de impacto, como por exemplo Nature, Lancet, New England Journal of Medicine, JAMA, etc. A qualidade dessas revistas científicas pode ser verificada online por uma métrica chamada “fator de impacto”.

Mas esses ECRs são complexos e longos. Portanto são antiéticos no momento, já que muitos pacientes precisam da droga já! E como pode-se aceitar dar placebo para pacientes com COVID?

Digamos que essa prerrogativa seja aceita e ECRs não sejam realizados, em nome de “salvar vidas já”. Infelizmente, nós nunca (nunca!) iremos realmente saber se HCQ funciona pro COVID, ou se por acaso ela é prejudicial. Existem inúmeros exemplos na história de drogas potencialmente fantásticas (funcionavam no laboratório!) que foram demonstradas ser nulas ou maléficas quando testadas em ECRs. Esse fenômeno — de uma terapia se mostrar maléfica quando testada em ECRs quando a expectativa era de ser benéfica — é chamado de medical reversal, ou reversão médica em tradução literal. Um revisão com peer review pode ser achada aqui. Exemplos clássicos de medical reversals são o antiarrítmico Flecainida administrado durante ataque cardíacos e a Vitamina E na prevenção do câncer e doenças cardíacas.

E se esse for o caso da HCQ? Nós de fato poderíamos não só não estar ajudando mas até mesmo matando milhares de pacientes a longo prazo simplesmente pela falta de um ECR adequado. Embora seja usada há bastante tempo contra doenças como a malária e lúpus, a HCQ pode ter sérios efeitos colaterais, incluindo arritmias cardíacas e morte súbita. Por isso, somente a realização de um ECR permite que a eficácia e segurança da HCQ em pacientes com COVID sejam testadas de forma definitiva.

Ah, mas esses ECRs seriam muito grandes e demorariam muito…

Essa é a resposta mais interessante, então pausa agora e toma um café.

Qual o tamanho de um ECR ideal? Quantos pacientes precisam ser incluídos no estudo? Esse assunto é o que chamamos de tamanho amostral e pesquisadores passam horas ou até dias debatendo. Existe um número mínimo ideal, abaixo do qual o estudo está destinado a falhar. Se muitos poucos pacientes forem incluídos, o estudo perde o “poder” de mostrar um possível benefício de uma terapia, caso ela realmente exista. Todos os estudos circulados até então sobre a HCQ, dentre outros problemas, foram muito pequenos e sem poder suficiente de dar uma resposta definitiva sobre a eficácia da droga.

Então, o que determina o tamanho amostral? Tecnicamente, duas variáveis. A primeira é a incidência do evento a ser medido na população sem tratamento. Quanto mais eventos ocorrerem, menor será o número de pacientes necessários para se demonstrar um benefício. A segunda é a capacidade de redução de eventos pela terapia testada nos pacientes. Quanto mais efetiva a terapia, menor o número de pacientes necessários no estudo.

E aqui vai uma fórmula simples para todos poderem estimar o úmero de pacientes necessários em qualquer estudo, usando as variáveis acima.

Se o número de eventos nos pacientes sem tratamento for 1 em X e o número de pacientes em que a droga é efetiva for 1 em Y, o tamanho amostral pode ser estimado com a simples fórmula:

Tamanho amostral = 30 x X x Y²

Observe que o tamanho amostral é linearmente relacionado a taxa de eventos e quadraticamente relacionado ao poder da droga. Se, por exemplo, a mesma droga é testada em uma doença com mortalidade duas vezes menor (X duas vezes maior), o numero de pacientes necessários duplica. Contudo, na mesma doença, se uma terapia é duas vezes menos efetiva que outra (Y duas vezes maior), o número de pacientes necessário em um estudo seria 4 vezes maior (2²=4).

Então voltemos a HCQ. Digamos que a mortalidade em 30 dias de pacientes internados com COVID seja de 20% (1 em cada 5 morrem, X=5) e que a HCQ reduza a chance de morte em 30 dias em 20% (salvando 1 em cada 5 pacientes que recebem a droga, Y=5) o número de pacientes necessários em um estudo seria, aproximadamente 30 x 25 x 5 = 3750. No estudo, 1875 receberiam HCQ e 1875 receberiam placebo (se o estudo tivesse um desenho duplo-cego) ou a terapia usual (que no caso é só oxigênio e chamaríamos de “controle”).

Observem que no grupo controle/placebo morreriam 375 pacientes durante o estudo (20%) e no grupo HCQ 300 (20% menos). Então, os que argumentam que o estudo seria antiético por expor pacientes a tratamento com placebo se referem a 75 “mortes causadas” pelo estudo em si. Compare-se isso a quantidade de pacientes que morrem por dia pela doença no mundo todo e com a quantidade de mortes a serem prevenidas nos próximos meses ou até anos, quando o papel protetor — ou maléfico — da HCQ for realmente estabelecido.

E observem também que se a HCQ for tão espetacular quanto alguns pobres estudos preliminares sugerem (digamos que salve 1 em cada 2 pacientes, Y=2), o número de pacientes necessários no estudo seria somente 600! E existem mecanismos dentro de grandes ECRs que permitem interrompe-los mais cedo se esse tipo de milagre Hidroxicloroquineano for observado.

Considerando a velocidade dessa epidemia, você acha que demoraria muito para incluir 600–4000 pacientes em um estudo no qual muitos hospitais poderiam participar? Você pode conferir o numero de estudos avaliando a HCQ em pacientes com COVID (e outras terapias) neste site.

Então, você decide, devemos gritar publicamente pelo uso indiscriminado da HCQ ou pela realização de ECRs bem desenhados e sem vieses?

Como posso saber se o pesquisador, o palestrante, a opinião ou o “especialista” é confiável?

A opinião pode ser estritamente pessoal. Opinar é livre. Ou pode ser uma opinião clínica, se o especialista for médico no assunto com experiência na doença sendo discutida. A visão clínica é fundamental para a prática da medicina, incluindo o COVID. Ou, ainda, pode ser uma opinião leiga de um excelente comunicador, mas baseada em dados cientificos sérios, como ECRs.

Idealmente, contudo, especialistas em assuntos técnicos deveriam se envolver em pesquisa na área em discussão, para a geração de conhecimento e não só divulgação ou aplicação de conhecimento existente.

Em geral, quanto mais envolvimento a fonte da opinião tiver com pesquisas sobre o assunto, mais crédito pode se dar ao indivíduo. Para se ter uma ideia da quantidade de envolvimento do expert em pesquisa, vá no site chamado Pubmed e verifique se o especialista em questão já participou de algum estudo no assunto ou já se envolveu em outros estudos clínicos como ECRs. Digite o nome dele e o site retorna os estudos em que ele participou. Exemplos:

1.Se um dia eu der minha opinião pública sobre o tratamento do câncer de ovário, ignore-me, porque eu não trato pacientes com essa doença e nunca participei de estudos sobre o tema. Mas a minha opinião sobre métodos científicos e cardiologia poderia ser respeitada, ja que eu trabalho com isso e já liderei e participei de estudos na área.

2.Se voce ouvir a opinião do meu colega pesquisador de São Paulo Otávio Berwanger sobre assuntos envolvendo ECRs em geral, ouça e aprenda. Ele já liderou muitos ECRs.

3.A opinião do infectologista da UFCSPA de Porto Alegre Alessandro Pasqualotto sobre testes e tratamentos pro COVID e outras doenças infecciosas deveria ser muito respeitada. Ele sabe tudo de fungos e muito sobre vírus.

Poderia seguir a lista com muitos outros pesquisadores brasileiros com renome internacional. Agora, importante:

4.A opinião técnica dos presidentes do Brasil e dos EUA no assunto devem ser totalmente ignoradas — digitem o nome deles no Pubmed.

5.A opinião de bloggers, Youtubers e Instagramers só são válidas se baseadas em dados científicos fortes, idealmente ECRs.

O que fazer então quando eu receber minha próxima mensagem sobre a HCQ ou uma nova grande terapia salvadora do COVID?

Verifique se a fonte da informação é respeitável e se o estudo apresentado é um ECR, ou se a opinião se baseia em um ECR. Idealmente, procure as palavras chaves no texto “duplo-cego, controlado por placebo”. E claro, confirme que o artigo já tenha sido avaliado pelos pares (peer reviewed) e publicado em uma revista científica de respeito. Para todas as outras informações, incluindo opiniões de youtubers, notas de jornais ou estudos malfeitos, o melhor destino é a lixeira do seu celular.

E a HCQ?

Não tenho nada contra a HCQ. Acho que deve ser usada em pacientes com COVID-19 mais graves, no hospital (já que realmente não existe tratamento eficaz). Mas essa minha opinião é baseada em pragmatismo clínico e não tem nada de cientifica. Nem eu, nem presidentes de repúblicas e nem a sua mais confiável fonte do WhatsApp sabem se a HCQ realmente funciona.

Por isso, entenda que o passo mais importante para o futuro benefício de centenas de milhares de pacientes com COVID-19 é a realização de Estudos Clinicos Randomizados que demonstrem, ou não, o benefício da HCQ e outras terapias.

Agradeço à minha amiga Carolina Brito, professora de física da UFRGS, pela revisão critica do conteúdo e do meu português anglicano — qualquer erro gramatical, de acentuação, paralelismos, pontuação, etc, não me responsabilizo 😜

Créditos a Darrel Francis, Matt Shun-Shin, Ahran Arnold, Henry Seligman, Sayan Sen, Rasha Al-Lamee, Sukh Nijjer e James Howard.

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Ricardo Petraco

MD PhD Cardiologist and Researcher at Imperial College London