Eu no palco da BrazilJS. Esse dia foi louco! Fonte: https://twitter.com/slsoftworks/status/1033483902483083264

BrazilJS, tempo e o que aprendi com o técnico de guitarra do U2

Como uma frase numa entrevista me fez refletir sobre dedicação, esforço e privilégios

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Não, eu não vou comparar o dia-a-dia de um ser humano normal ao de uma banda de milionários.

Eu palestrei na BrazilJS desse ano e tive a honra de encerrar o evento. Honra essa reservada, em anos anteriores, a grandes nomes da comunidade (entre eles Brendan Eich em carne e osso duas vezes)! Ao descer do palco, um monte de gente veio me dar os parabéns e dizer como tudo que eu tinha mostrado era incrível. Talvez ter usado uma letra do Bowie como temática e tocar guitarra no palco tenham facilitado as coisas para mim, mas eu quero falar sobre como tudo que eu construí não tem nada de especial além de tempo empregado.

Quando soube que minha proposta tinha sido aceita, no meio de junho, eu comemorei muito por alguns segundos e logo depois comecei a suar frio. Queria fazer jus e corresponder à alta expectativa que o público nutre sobre quem está presente na grade da conferência. Tinha prometido afetar imagens com pedais de guitarra, eu não tinha feito isso funcionar ainda (sorte minha que o Sam Bellen criou essa palestra sensacional de onde tirei os exemplos dos efeitos)! Teria eu sido imprudente ao mencionar tal coisa na descrição? “Calma, cara, tu já tem um artigo mostrando como filtrar imagens usando áudio. Calma. Calma!!!” — disse eu para mim mesmo. De fato eu tinha até transformado esse artigo numa palestra relâmpago. Daí era rezar que a matemática se comportasse da maneira como se espera. Sendo que muito do que eu queria fazer não estava pronto, era hora de correr e criar os demos que residiam só na minha mente. Depois de quase um mês eu vi o primeiro resultado. Ao ver a imagem abaixo no canvas eu quase chorei (não tô brincando): parecia que tínhamos algo interessante! “Quem sabe não seja assim um fracasso tão grande essa palestra, né? Será?”. Você não verá isso nos slides ou vídeo porque o experimento estava completamente errado (coisa que descobri na semana final). Eu tinha esquecido de chamar o método que dá start no oscilador!

Primeira versão (TOTALMENTE ERRADA) da capa do Low submetida a um pedal de Flanger

Eu passava boa parte do meu tempo livre dedicado a testar efeitos e criar ferramentas que agilizassem o processo. Não é fácil debugar arrays gigantes: 1 segundo de áudio contém 44100 números, então enxergar o que está se passando pode ser doloroso (literalmente, um nó de ganho com valores errados e meus tímpanos eram açoitados pelo doce grito de um Nazgûl queimando) e demorado.

No dia 24 de Julho, já roendo as unhas em completo desespero por ter abandonado exemplos que não davam certo ou demandariam muito mais código do que eu poderia produzir, faltando um mês para o dia D, o youtube me recomenda esse vídeo:

Dallas Schoo mostrando detalhes dos equipamentos do Edge

Hoje em dia odiar U2 é lugar-comum, talvez minha percepção nas redes sociais seja distorcida, mas é raro alguém dizer que gosta, na verdade. Eu não vou argumentar contra isso. Eu entendo! Mas no vídeo em questão, Dallas Schoo passa uma hora inteira falando sobre o motivo do Edge carregar 48 guitarras na turnê (entre outros tantos detalhes que beiram a loucura). Aos 6:20 ele começa a contar que mesmo depois de quase 40 anos de carreira o guitarrista ainda fica buscando novos timbres, mexendo nas configurações dos amplificadores. Ao ouvir essa história o entrevistador acrescenta “é assim, crianças, que você se torna um ícone!” (você pode estar bufando e prestes a fechar essa aba, mas fique comigo) e a frase seguinte, vinda do técnico, ficou ecoando no meu crânio “mas você precisa botar tempo nisso!”.

Teria ele dito isso diretamente para mim? Seria um sinal? Estaria eu me dedicando pouco dada a minha missão? Como lidar com a ansiedade de fracassar tão pesadamente?

Eu não consegui chegar a essa conclusão de forma fácil porque na minha cabeça nada do que eu fazia era muito impressionante, só, no máximo, curioso ou engraçadinho: mas olhando em retrospecto eu já tinha SIM me dedicado bastante. Ser bom ou criar coisas legais é sobre o tempo gasto, não é um dom divino! Eu fiz a cadeira que aborda teoria de sinais três vezes (03! Rodei duas vezes e não me orgulho), eu quase reprovei na cadeira de cálculo onde aprendi sobre Transformada de Fourier (vou enfatizar que não foi fácil e/ou eu não era o mais aplicado dos alunos). Sou formado em Telecomunicações, afinal, e o coração de tudo é transportar sinais de um lugar para outro. No RSJS de 2013 foi onde tive meu primeiro contato com Web Audio API onde o Almir Filho palestrou sobre o tema. Desde lá eu usei isso em quase toda palestra que fiz incluindo essa voltada inteiramente para o assunto, em 2014 (observe a data dos commits). E veja só: ele demonstrou efeitos criados no browser usando uma guitarra (que o Jaydson tocou ao vivo, diga-se de passagem, infelizmente não temos o vídeo desse ano mágico).

Você deve estar se perguntando se esse é o ponto que eu digo “Se você quer algo, se esforce e gaste tempo para isso”. Na verdade não, as coisas não são assim tão simples. O que eu quero realmente dizer é que muitas vezes não enxergamos como tivemos oportunidades diferentes de outras pessoas. Minha mãe é professora de matemática e investiu dinheiro que ela não tinha na minha educação! Eu fiz inglês muito cedo, consegui (graças a muito esforço dela) fazer ensino médio no Cefet (hoje IFSul) onde as matérias de exatas eram bem puxadas. Fiz curso superior na mesma instituição tendo aula com doutores! Se alguma coisa que eu demonstrei parece magia, talvez anos aprendendo sobre isso e quase ter sido jubilado tenham contribuído, mas tudo é sobre o tempo que eu tive. O fato de gastar dez minutos de ônibus me deslocando até o trabalho e não uma hora e meia como é a realidade de muita gente me dá quase meio turno de trabalho à minha disposição na semana.

Um dos feedbacks mais legais que me deram, minutos depois de acabar minha palestra, veio de uma menina que disse “Eu faço engenharia elétrica e acho que tu deveria ser professor!”. Pois eu dei muitas aulas de Matemática e Física antes de me formar! Passar conhecimento era minha profissão. Eu fui professor substituto no mesmo IFSul (aka Cefet) onde me formei. Parecer tranquilo enquanto falo é uma mistura de domínio do assunto e muito treino.

O que eu tô tentando concluir aqui é que, às vezes, o conhecimento que a carregamos é fruto de diversas experiências e privilégios. Não tente se comparar a outros profissionais que você admira. Por exemplo, eu não queria baixar o nível do evento, considerando que o Kyle Simpson ia palestrar no mesmo dia, mas essa linha de raciocínio me deixou muito ansioso. Não temos a mesma educação formal, não trabalhamos juntos e coisas como “nossa, ele produz tanto, eu nunca vou fazer nada parecido” acaba te dragando para uma espiral de medo e insegurança.

O seu tempo é valioso sim. Demais! Por isso saiba usá-lo para ter uma vida saudável e equilibrada. Se estudar/evoluir profissionalmente nas horas vagas é uma meta, não deixe que o esforço te consuma porque absorver conhecimento depende de uma cabeça descansada. E, claro, se os motivos da jornada dupla/tripla e privação de sono são financeiros: não se culpe por nada! Não é fácil lidar com a pressão, ter tantas obrigações e precisar carregar todo esse peso. Peça ajuda em grupos/comunidades que você se sente confortável e nunca tenha vergonha de não usar a biblioteca da moda, a última tecnologia lançada ou dominar um assunto.

Temos ritmos diferentes de aprender e construir coisas. Minha palestra foi tudo menos fácil, eu odiaria que alguém achasse que eu sou um gênio ou algo assim. Alguns demos foram amadurecidos e polidos por quatro anos (de forma diluída e sem pressa, mas foram). Nossa área é cheia de coisas impressionantes e fogos de artifício por isso é importante notarmos que existem jornadas pessoais únicas que levam a certos destinos.

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Rafael Specht da Silva

Web developer, gif sommelier, once called “weird webby wizard”