Venezuela e Criptomoedas: uma aplicação real contra a censura

Rudá Pellini
8 min readOct 23, 2018
Entrada de um restaurante. Venezuela, Agosto 2018

Por uma questão de princípios e ideologia, defensores de criptomoedas são, em essência, defensores da liberdade. O poder deve ser distribuído e o usuário é quem deve deter o controle sobre sua vida, seus bens e seu dinheiro.

Pensando nisso, resolvi escrever sobre a situação na Venezuela, país que faz fronteira com o Brasil e que hoje enfrenta uma das mais duras crises contra a liberdade do mundo. Sem saber como começar, fui estudar um pouco a realidade do país para entender o fenômeno econômico e social que ocorre por lá.

O fato é que a Venezuela é um país rico em um recurso natural muito valioso: petróleo. Um país com 30 milhões de habitantes, do tamanho do Estado do Mato Grosso e com uma população menor que São Paulo, com a MAIOR reserva da principal matriz energética do planeta. Agora considere que mais de uma dezena de guerras foram travadas em função desse recurso natural e é possível entender um pouco melhor o panorama.

Entendido o interesse internacional pelo pequeno país ao norte da América do Sul, precisamos falar sobre Chavez. Quem conhece um pouco da história, sabe que o Comandante Hugo Chavez já demonstrava sinais de sua fome de poder desde o primeiro dia, em 1999. Estadista, populista, elegeu-se democraticamente com o propósito de erradicar a pobreza do país e deu um jeito de nunca mais sair do poder, nem depois de morto.

Outdoor em Caracas. Venezuela, Janeiro 2018.

A estratégia de Chavez foi a seguinte: não temos dinheiro, mas temos petróleo que é basicamente a mesma coisa. Com o objetivo de desenvolver a Venezuela, Chavez jogou o xadrez internacional, tomando capital estrangeiro para financiar a exploração e exportação do petróleo. Custando US$ 110 o barril, o negócio ia de vento em poupa e sobrava dinheiro. Aproveitando desse boom econômico, Chavez conseguiu reduzir os índices de pobreza e investiu pesado em programas sociais, nas áreas de educação, saúde e alimentação. Amado pela população e com muito dinheiro e poder, pôde dar início ao seu objetivo de implantar uma revolução social na Venezuela. A partir daí, passou a nacionalizar as empresas, estatizando bancos, indústrias, telecomunicações, energia passando todas as serem controladas e geridas pelo Estado.

A lógica é simples, ao fazer isso, acabou destruindo a capacidade produtiva local e passou a ser dependente de importações para a maior parte dos itens industrializados. Sobrando dinheiro através do Petróleo, isso não seria problema… Acontece que a economia venezuelana dependia quase que exclusivamente da exportação do petróleo e, prevendo uma crise do sistema, a torneira do financiamento internacional começa a secar.

Após a morte de Chavez em 2013, assume o poder por indicação um camarada chamado Nicolás Maduro, braço direito do antigo líder e que pretender dar continuidade ao planos do ex-chefe. No mesmo período vem a pá de cal para consolidar a crise venezuelana, com a queda abaixo de US$ 50,00 dos barris de petróleo.

Entendido o contexto político e econômico, fui em busca de conseguir relatos de venezuelanos e de quem eu sabia que estava fazendo negócios na Venezuela. Sim, mesmo sendo uma ditatura e dos inúmeros relatos de violência, há quem tenha huevos e esteja disposto a fazer negócios por lá.

A lógica é simples, um país que passa por uma ditatura socialista carece de itens básicos de consumo (remédios, alimentos, higiene, etc). Além disso, tem uma distorção tão grande na sua base monetária que afeta o valor de tudo, com uma inflação estimada em 1.000.000% em 2018. Sim, um milhão por cento.
Quer um exemplo de como isso afeta? Com US$ 25.000 você consegue comprar um apartamento de luxo em bairro nobre na capital, Caracas. Vou falar mais sobre essas distorções mais abaixo.

Setor de limpeza em Supermercado. Venezuela, Julho 2017

Nesse cenário de caos, houve um êxodo muito grande da Venezuela para a Europa e Estados Unidos desde de o fim da Era Chavez 2012/2013. A ONU estima em 3 milhões de pessoas, o que já seria maior que os refugiados da Síria, mas fontes internas da Venezuela garantem que este número é no mínimo o dobro. Basicamente quem tinha condições financeiras de sair de lá, saiu. O êxodo para fronteiras secas aumentou consideravelmente no último ano e o Brasil está recebendo milhares de venezuelanos através da fronteira com o Acre.

Hoje existem duas Venezuelas: a de quem recebe dinheiro de fora e de quem recebe localmente. Restaurantes, hotéis de luxo e shoppings centers são frequentados por quem recebe em dólares, é funcionário de alguma multinacional recebendo o equivalente à matriz no exterior ou é turista.
Um jantar em um restaurante no Shopping Center em Caracas, custa cerca de US$ 60 por pessoa.
Quem não se encontra nessas condições não consegue consumir desses produtos e serviços e acaba enfrentando filas por horas para conseguir itens básicos como carne, leite, produtos de higiene e remédios.

Jantar em restaurante para turistas. Venezuela, Agosto 2018

Ok! Mas onde entra o Bitcoin nesse contexto? A população venezuelana encontrou nas criptomoedas uma forma de combater a censura e sobreviver em meio ao caos. A situação da emigração ficou tão grave que há relatos de apreensão de bens de valor (jóias, relógio, etc) de venezuelanos que tentam deixar o país.

A crítica às criptomoedas sempre aparece na forma da aplicação.
Geralmente o exemplo usado é algo como "ah, mas não da nem pra pagar um café" ou "ah, mas ninguém aceita, não consigo pagar em lugar nenhum".
Na verdade, não há como discordar desses argumentos, que para a maioria das pessoas essa pequena inovação não trouxe benefícios reais, mas basta olharmos para o vizinho do lado que veremos a aplicação de uma feature para uma causa bem mais nobre: proteger-se do Estado.

Como na época do holocausto, ouro, jóias e bens valiosos estão sendo apreendidos na Venezuela, mas nunca conseguirão mexer nas suas chaves privadas.

O movimento de criptomoedas na Venezuela, que começou em 2015, hoje apresenta números interessantes. Considerando que a atividade de exchanges é proibida, as negociações de Bitcoin ocorrem majoritariamente pela plataforma LocalBitcoins, que conecta compradores e vendedores p2p (peer-to-peer). O país já representa o quarto maior volume mundial na plataforma e, semanalmente são negociados mais de 800 bitcoins, algo em torno de U$S 5,1 milhões.

De fato, em relação ao mercado de cripto, hoje em torno de US$ 200 bilhões, o movimento é inexpressivo. Agora considere os números locais:
- O salário mínimo na Venezuela é cerca de US$ 12/mês. No Brasil algo em torno de US$ 250/mês e nos EUA é US$ 14/hora, na Califórnia.

Isso significa que o volume mensal na Venezuela, somente via LocalBitcoins, de cerca de US$ 20 milhões, é equivalente ao salário mínimo de 1,6 milhões de pessoas ou quase 6% da população.

Fiz esse gráfico comparativo do volume de Bolívares X Reais para demonstrar o impacto das transações de Bitcoins para a moeda local. Tive de usar como base e apresentar o volume em bitcoins não nas moedas locais, pois a inflação semanal é tão grande que causaria distorções no gráfico.

Comparativo LocalBitcoins Bitcoin Vs Reais & Bolívares.

Quem quis sobreviver e alimentar suas famílias, acabou aderindo às criptomoedas. As formas são as mais diversas, mas a mineração lá ganhou muito espaço.

Basicamente, qualquer porão é o suficiente para colocar algumas antminers (hardware para mineração de Bitcoins) e tentar minerar. A energia é subsidiada pelo Estado, tem uma gestão péssima e acabam tendo diversos apagões por semana de mais de 4h, mas ainda assim é absurdamente barata, em torno de 0.0000125$ per kW/h. Sim esse valor está em dólares.

O problema é que a mineração é uma atividade proibida pelo Estado e o governo exige que qualquer pessoa que esteja minerando o Bitcoin tenha que se registrar no governo. Quem não se registra corre o risco de ter seus hardwares apreendidos ou acaba tendo que pagar propina. É cobrado cerca de US$ 1000 por antminer, mas tem relatos de espancamentos e prisões de quem se recusa a pagar a propina. Após apreendidos, tudo indica que o governo coloca os hardwares para minerar e também participa dessa atividade econômica.

A atividade de mineração tornou-se tão arriscada, que funciona sob anonimato e sigilo, pois os mineradores tem medo de extorsões e sequestros.

O presidente Maduro se demonstrou tão interessado, que também está usando as criptomoedas como ferramenta anti-censura. Por mais bizarro que isso possa parecer. Em função das violações de direitos humanos e das estatizações, o governo venezuelano sofreu embargos econômicos e está impedido de negociar internacionalmente. Nessa circunstância, o presidente lançou em Fevereiro de 2018 a criptomoeda Petro. A ideia é que seja uma stable coin lastreada em petróleo venezuelano e o objetivo foi de lançar uma oferta pública e captar recursos estrangeiros. Há a reivindicação para ser apoiada pelo povo venezuelano, mas a adoção foi baixa e agora o governo tenta ativar o curso forçado, para que alguns serviços aceitem somente Petro como meio de pagamento.

Outdoor com a criptomoeda Petro. Venezuela, Maio 2018.

Outro caso interessante é que a Venezuela apresenta hoje uma das maiores comunidades da criptomoeda Dash, do mundo. Com cerca de 1000 estabelecimentos aceitando Dash a adoção foi uma forma de evitar as negociações na moeda local, usando a base de preços em dólar para as negociações. O portal Dash Caracas incentiva e instrui novos estabelecimentos, além de organizar diversos eventos para instruir a população sobre as formas de se proteger usando criptomoedas.

Ao passo que usar Bolívares Fortes (VEF) tornou-se inviável dadas à desvalorização da moeda, quando US$ 1 dava cerca de Bs.F 250.000, em Agosto de 2018 o Presidente Maduro lançou os Bolívares Soberanos (VES). A situação ainda é complicada, afinal US$ 1 ainda representam Bs.S 70, mas é mais um passo para a adoção das criptomoedas no país.

Conversão de US$ 1 para Bolívares Fortes. Venezuela, Março 2018.

O importante é entendermos que, independente da criptomoeda, o Estado nunca vai conseguir apreender uma chave privada e sequestrar as criptos. Poderão exercer coerção física, como vêm fazendo, mas sem a permissão do usuário, estarão intocadas e protegidas.

Precisamos analisar esse contexto e perceber que já temos ferramentas para nos protegermos de coerção e ditaduras. É necessário que essas informações sejam difundidas e o conhecimento transmitido para que possamos identificar e nos previnir sempre que nossa democracia esteja em cheque.

Agredecimentos ao Renan Muniz, Winder Hernandez, Pirate Beachbum e outros contatos que me ajudaram com informações e imagens, mas pediram para ficar no anonimato.

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Rudá Pellini

Bitcoiner. Co-Founder of Wise&Trust. Blockchain enthusiast & crypto addict. Capitalist and Libertarian.