Rodolpho Medeiros
4 min readJan 29, 2020

De volta ao passado

Outro dia (juro ser a pura verdade) estava passeando com o cachorro, feliz da vida, usando uma ridícula viseira azul, camiseta regata e pochete (brega igual anos 80), quando vi uma vizinha de bairro, com um DeLorean antigo, construindo uma máquina do tempo. Curioso, deixei a cachorra ir praticar sua liberdade sexual, com um poodle metido a valentão, para perguntar a vizinha o que ela planejava. Cheia de ferramentas e suja de óleo, se apresentou como Simone de Beauvoir.

Me contou que seu objetivo era voltar no tempo e assassinar o culpado de todas as ideologias ocidentais; um tal de Platão estava com os dias contados. Perguntei qual era a culpa do sujeito e ela, sem hesitar, respondeu com braços erguidos:

- Maldito mundo das idéias. Chega desse papo de essência!

Com uma retórica impecável e excelente raciocínio lógico, deixou toda sua indignação esclarecida. O problema era a tal da afirmação: "mulher é assim...". Uma suposta natureza humana e feminina, que criava um dualismo intransponível entre mulheres e homens, definindo, determinando, papéis sociais. Como se a fisiologia humana tivesse sido desenhada para ser e agir de tal forma, como se existisse um Design Inteligente por trás disso. Bobeira, não?

Mulheres, assim com os homens, são frutos da evolução das espécies. Não existe uma idéia, uma forma, uma essência feminina, determinada por alguém. Mulheres e homens possuem igualdade e diferenças. Mais igualdade, do que diferenças, diga-se. Os únicos órgãos diferentes são os feitos para transar, pois o homem também tem mamas, apenas atrofiadas, somos defeituosos. Achar que uma vagina determina toda uma vida é burrice, e das grandes.

Existe determinismo social? Mulheres foram feitas para cuidar da casa? Não. Homens tem braço e dão conta do recado. O machista irá dizer: "nós somos mais fortes"! Nunca viram a Cris Cyborg... Achar que uma sociedade é melhor só porque existem papéis definidos, dá a impressão de uma defesa do poder dominante, amedrontado com a liberdade feminina.

Esses conceitos linguísticos, que dão uma essência para substantivos como homem e mulher, são construções sociais que se desenvolve pelas doutrinas metafísicas religiosas ou por propostas científicas, nada científicas. A religião gosta de doutrinas, de coisas imutáveis e acabam ensinando que "Deus fez a mulher assim, portanto ela tem de agir assado". O engraçado? Deus seria uma figura masculina, que tem como prioridade a voz masculina para ditar regras. Deus teria um "pipiu", barba e pêlos no peito. O que me parece uma infantilidade absurda. Uma idolatria do homem. Uma homossexualidade recalcada. Deus para ser deus, precisa ser completamente diferente de nós. Levar esse determinismo religioso a sério parece apenas propagar um machismo estrutural.

Porém, até o século 19, as ciências naturais esbanjavam preconceito, como notou Focault. O discurso científico legitimava o lugar da mulher na sociedade, a maternidade era o determinismo científico. A feminilidade ideal era a mulher, feliz, mãe de família, educadora do lar e ponte das tradições civilizadas, para as gerações mais jovens. Santa besteira machista. Imagina um cavalo marinho macho escutando isso. Ciência sem ceticismo é tragédia anunciada. Era apenas uma maneira de naturalizar a idiotice determinista do velho e problemático Platão.

Torço pela luta das mulheres, pois o machismo está espalhado por toda sociedade. O machismo está na linguagem, está na política, está nas tradições religiosas e está até nas interpretações científicas. E agora, até reacionária "anti-mulher" existe. Claro que algumas ficaram com medo. O temor pode ser uma força reacionária inimaginável. Pense comigo: a vida é dura pra caramba, boa parte das mulheres não tiveram a chance de estudar, são as primeiras a serem demitidas e não desejam morrer de fome junto com seus filhos. Sem nenhum conhecimento da opressão em que vivem, achando, por causa das tradições que lhes são ensinadas, que é normal tudo isso, acabam repudiando as feministas, tornando-se psicologicamente reféns da angústia em se emancipar. Liberdade dá medo!

Até a moda subjulga a mulher. Não se engane: a moda é apenas a manifestação propagandista das tradições encontradas na sociedade. Marketing não cria necessidades. O mercado apenas entende a cultura do lugar e potencializa para vender o máximo possível. A mulher já andou pelada com o homem (no mito do paraíso, viviam em um lindo sonho nudista), já andou só de saia, praticando um topless cultural, as gordinhas já foram as panicats da época e bigode já foi adereço feminino. Moda segue a cultura e muda com a história. O problema da moda burguesa de hoje é psicológico: ninguém é tão perfeita quanto a Gisele Bundchen.

Veja só a identidade psicológica da mulher contemporânea: precisa ser tudo o que o homem deseja e não pode ser o que quer. Auto-estima? A mulher é bombardeada com idéias de que precisa ser a melhor mãe do mundo, a esposa perfeita, além de estar sempre gostosa para o marido pançudo fazer sexo depois do trabalho. Querem saúde psicológica assim? Não há ninguém que não corra para a terapia, ou para a linha do trem!

Aprendi muito naquela manhã. Sou um machista em reforma, quase feminista. Não sei se minha famosa vizinha conseguiu matar Platão. Aproveitei e peguei uma carona para semana passada; onde estava com a cabeça em comprar viseira e pochete?