Metodologia ágil é escolha metodológica?

Saber cotidiano
4 min readApr 26, 2023

--

Trazer Latour para a conversa geralmente causa furor nas discussões. Seja dentro da academia, seja no mercado, sempre que o filósofo aparece, parece que temos que nos explicar mais detalhadamente. Ele, de onde estiver, não deve achar ruim, pois estaríamos nada menos do que fazendo o que ele recomenda — puxar os fios das cadeias explicativas e conceder o peso necessário a cada linha, parando nos pontos que se fazem necessários à nossa argumentação. O texto anterior causou comoções e lamentos, dúvidas e questionamentos. Como seria possível ser tão atento aos detalhes se seguimos um cronograma rígido, se temos métodos de trabalhos ágeis que nos impõem determinadas restrições? Eis que o momento chega e após alguns bate-papos com colegas de profissão, a inspiração se faz e aqui escrevo.

  1. O ágil deve permitir a rapidez dos processos. Essa é a definição básica que encontrei para explicar o que seria uma metodologia ágil. Ora, se entendemos corretamente o que se propõe aqui, é ter entregas contínuas e mais transparência do nosso trabalho. Em que momento a ideia de uma descrição densa de uma ampla cadeia se opõe ao que é aqui proposto?

Ao meu ver, existe uma confusão aqui, em tratar metodologia de trabalho com metodologia de pesquisa. Trata-se de coisas distintas. Podemos usar a metodologia ágil e ter distintas metodologias de pesquisa. Mesmo assim, a TAR (teoria ator-rede) não se enquadra ao meu ver como metodologia, mas como escolha metodológica da nossa forma de olhar para os dados. Seja qual for seu trabalho, sua pesquisa, seu objeto de pesquisa, sua pergunta sempre envolverá algum objeto. E é para ele que você deve olhar mais detidamente.

Isso é o que foi proposto no texto anterior. É preciso descrever o objeto, suas associações com outros agentes e entender que as coisas acontecem devido a essa associação conjunta e não devido a um ou ao outro.

2. Tá, mas e o tempo do ágil? Talvez, possa-se fixar no argumento que, devido ao tempo, não seria possível passar longos períodos descrevendo cadeias e mais cadeias, processos e mais processos. Mais do que nunca, exige-se resultados precisos. É possível que falte tempo. É possível também que falte gente. Braço, força de trabalho, equipe, trabalho em equipe. Em artigo recente de Darío Reyes y María Teresa González, com contribuições minhas e de outros pesquisadores, discute-se um pouco de que forma o tempo da pesquisa às vezes se descola do tempo do sprint. Essa é uma discussão sem fim e que merece ser reavivada sempre que precisarmos questionar e fazer valer o tempo da pesquisa, que tem uma lógica de processos bastante peculiar.

É possível que tenhamos sim que responder perguntas pontuais em nossos projetos. Isso não nos impede, contudo, de demonstrar aos nossos clientes e stakeholders que a explicação causal e necessária para tal resultado na verdade está amarrada a uma teia muito mais ampla de explicações que exige outros desdobramentos em pesquisas futuras. Ora, se o saber incremental está aí, é para ser usado. Podemos ir traçando a cadeia aos poucos e nos debruçando em cada momento distinto para um determinado nó da rede. Ao final de um ano, teremos saberes interligados, conectados e com muito mais peso explicativo do que uma pesquisa pontual.

Entender que se trata mais de processo contínuo do que realizar a descrição da cadeia sociotécnica a cada pequeno projeto, é super importante. Mais importante ainda é não tratar cada estudo como separado e apartado de um todo. Dentro de uma empresa existem áreas. Faz sentido ter uma pesquisa pontual para atender a demanda daquela área? Pode ser que sim. Nem por isso, o saber que se acumula deixará de perpassar outras áreas. Não canso de ver áreas dentro das empresas que competem entre si com produtos e até por um lugar na fila da pesquisa mais importante. Para quê, se ao fim e ao cabo, estamos falando de algo maior, interligado? E o bom de toda pesquisa bem feita é que ela sempre trará mais e mais saberes. Ou jogamos tudo isso fora e não conectamos esse saber sobre o nosso objeto com outros saberes ou aproveitamos e vamos traçando aos pouquinhos, através de representações gráficas de cadeias e nós, a interligação entre as coisas, para fazermos entender que existe co-laboração e co-agência nos processos que levam às explicações que trazemos.

3. Para terminar, vamos nos atentar ao que pode ser feito, desenhado. Ora, não estudamos fluxos? Não desenhamos jornadas? Não usamos o Miro ou outra lousa análogica? O que nos falta para traçar mais linhas, puxar alguns outros fios e criarmos alguns outros post-its importantes.

Temos em certa medida sorte, pois já sabemos como começar. Sabemos desenhar processos de busca por determinado produto ou serviço, jornadas de compra, venda e pós-venda? O que falta para traçarmos uma cadeia sociotécnica? Falta acrescentar mais itens. Os objetos, principalmente. Acho que conseguimos, não. Trata-se mais do que abandonar o que fazemos em mudar o olhar para como estamos fazendo. Acho que conseguimos.

--

--

Saber cotidiano

Doutora em Sociologia. Pesquisadora independente. Pesquisa, Ciências humanas, metodologias e umas pitadas críticas por aqui e ali. Acesse meu canal no Youtube