O que nos faz sentir realmente aceitos?

Sandro Aragão
5 min readOct 15, 2018

--

Esse texto nasce no formato de um desabafo — desabafo, não de lamentação ou de dor — , mas nasce também de uma pergunta que me foi feita durante anos pela minha terapeuta: “Sandro, o que você tanto cobra de sua mãe?”. Ou, de forma mais ampla, qual o meu desconforto em não me permitir mostrar a face mais próxima daquilo que eu realmente acredito ser para minha família?

No consultório, diante dessa pergunta, o silêncio pairava entre o meu olhar e o de Eucilene (a psicóloga). Quase mudo, na maior parte das vezes, eu dizia “não sei”. Em outros momentos, me sentindo um pouco mais corajoso, eu ensaiava alguma resposta mais complexa. Porém, como já era esperado por mim, não tinha muito sucesso.

Pois bem, sigamos para o desabafo: durante a semana que passou tive algumas discussões com minha mãe pelo fato dela apoiar o Bolsonaro — não preciso dizer que esse apoio declarado me causa certa tristeza. Talvez, frustração também — . Na última sexta, assim que chegou do trabalho, ela veio falar comigo. No meio da conversa, houve críticas da parte dela aos meus posicionamento pró PT — afirmando de forma negativa que eu havia me tornado militante e o quão perigoso era — e aos meus ensaios fotográficos de nu. Reproduzirei aqui parte da conversa sobre meu projeto com nu de acordo com o que minha memória permite:

“Sandro, para que você faz isso?Para ganhar alguma visibilidade?”.

“Não, por que eu gosto”.

“Ah, pensei que era pra dar algum retorno”.

E terminou dizendo que achava que eu estava seguindo por um caminho muito obscuro — sim, a palavra foi exatamente essa. Alguns minutos depois ela voltou ao quarto e disse: “ Sandro, você não esqueça de mim” — minha mãe tem medo que eu melhore socialmente e desapareça sem me importar com a família, e, principalmente, com ela — Irritado, eu disse que sabia muito bem quem já havia me prestado algum tipo de ajuda. Ela retrucou: “eu não sei, né. Você é muito esquisito”. E ponto. A conversa para mim acabou nesse momento. Fui tomar banho e, sem perceber, comecei a chorar. Me arrumei, saí de casa e a vontade era de desaparecer.

Durante a viagem no ônibus me veio um estalo: acho que finalmente consegui parte da resposta para a pergunta que Eucilene tanto me fazia: eu não me sinto aceito por minha família. Muito menos por minha mãe. E quando digo aceito, não me refiro apenas ao âmbito da minha sexualidade, mas ao fato de como eu me inscrevo no mundo: sexualmente, socialmente, profissionalmente. E isso faz com que eu não me sinta à vontade para mostrar parte daquilo que eu acredito ser, me fazendo tomar cada vez mais distância — até o dia que não precise mais ter contato cotidiano com aqueles que parecem não querer me ver por inteiro.

Assim que me dei conta disso, me veio à memória muitas outras situações: minha irmã e minha tia quando me disseram que me amavam, me “aceitavam”, mas achavam errado ser gay — inclusive, mesmo pensamento que minha mãe tem. A única diferença é que ela tenta explicar esse “erro” através do mundo espiritual — , meu pai quando disse que eu sou maluco — fazendo menção ao fato de eu me dedicar demais ao estudo, ficar longas horas no computador e não ter os mesmos costumes que os rapazes do meu bairro — meus primos ao fazerem postagens falando abertamente mal de homossexuais e, claro, minha mãe, com os comentários da última conversa que tivemos, com seu constante medo de meus familiares saberem de forma clara que sou gay e, por último, da emblemática situação em que ela ameaçou cortar meu pênis por ter me pego usando vestido quando eu ainda estava na infância — é importante expor a seguinte observação: eu entendo e imagino o quão difícil tenha sido para minha mãe lidar com o fato de eu ser gay e com os possíveis comentários e cobranças de terceiros, e de meu pai, quanto a isso. Porém esse texto não é para ser incriminatório (até porque esse não é o olhar que eu tenho), mas sim para gerar reflexões quanto ao que as ações desse âmbito podem causar subjetivamente a alguém.

Ter percebido essa questão me tirou da pergunta em que eu estava estagnado e me levou para o seguinte questionamento: o que exatamente faz eu não me sentir aceito por minha familia? E digo isso porque, anos atrás, ao falar para meu primeiro namorado que minha mãe não me aceitava “completamente”, ele logo perguntou: “ela te expulsou de casa?”. Eu, obviamente, disse que não. De pronto, logo veio a afirmação: “então ela te aceita”. É claro que eu entendo o que ele quis dizer: minha situação não é “emergencial”, não é uma “não aceitação” que se traduz em agressão física. É algo que eu sinto nas pequenas ações, que fica no lugar do “não-dito”. Quando minha mãe diz que eu estou seguindo para um caminho muito obscuro, é uma forma de dizer que não está de acordo com os meus gostos, com aquilo que forma parte do que eu sou. Esse “não aceitar” atinge diretamente a minha subjetividade. E quando a subjetividade é atingida, ficam marcas que não dão para sarar com merthiolate — que fique claro que essa metáfora não é uma afirmação de que ser agredido fisicamente por não ser aceito é mais fácil. Obviamente, dependendo da situação, é tão ou mais difícil. O que estou pondo como diferença é que ser expulso de casa, ou até mesmo ser agredido corporalmente, por não ser aceito, faz com que essa “não aceitação” se ponha de forma mais clara, ao contrário do que acontece comigo, e, claro, imagino que com muitas outras pessoas.

Diante disso, acredito que só me reste aprender a lidar com essa nova situação e criar estratégias para não me sentir tão afetado como fui nessa última conversa. Não sei se algum dia, ou se há como, irei fazer minha família, e minha mãe, entenderem que aceitar alguém vai muito além de dizer eu te amo e/ou “eu te aceito” — no fundo, espero que sim, pois não quero ter que continuar sentindo que não consigo ser parte daquilo que sou com aqueles por quem mais carrego afeto — , não sei se algum dia vou conseguir entender, ou dizer, de forma concreta o que me faz não me sentir aceito por eles. Mas enquanto não sei, continuarei ressoando a pergunta: o que realmente nos faz sentir aceitos? Ou, de forma mais empática, o que é necessário para que nos sintamos aceitos?

--

--

Sandro Aragão

Professor de Língua Portuguesa, doutorando em Teoria Literária, fotógrafo e mais algumas coisas que não dá para dizer em 160 caracteres.