A luta anti-patriarcal vai além do discurso anti-moralismo

Fúria Raiz
QG Feminista
Published in
9 min readNov 8, 2016
“Feministas liberais sacrificarão a verdade pelo conforto. Feministas radicais sacrificarão o conforto pela verdade.” fonte: tumblr

A luta anti-patriarcal vai além do discurso anti-moralismo

O patriarcado moderno, após um processo milenar de construção, se solidificou a partir de adaptações e reinvenções que fundamentam uma constatação ilusória de igualdade entre as classes sexuais. Isso porque a cada insurgência de resistência feminista o sistema não só contra-atacou diretamente como utilizou-se de subterfúgios indiretos para apropriar-se da luta das mulheres e redirecioná-las para comportamentos pseudo-libertários que na realidade são mais do mesmo escopo patriarcal e capitalista. Isso se deu — e ainda se dá — de inúmeras formas e em inúmeros âmbitos. Mas uma grande parte deles parte da redução da abordagem feminista a uma questão anti-tradicional — como se fosse apenas por moralismo que as mulheres fossem exploradas e oprimidas há séculos.

Feministas são, sim, anti-moralistas. Mas se antes o debate feminista apontava sabiamente que homens ganham materialmente com a subordinação das mulheres, hoje parece haver uma crença de que o sistema é mantido não por um interesse político e econômico, mas por uma questão puramente moral. Seguindo essa lógica, qualquer coisa que fuja do que é considerado moralmente correto é considerada, por definição, libertária. E essa é uma armadilha na qual mulheres feministas têm caído. É crucial que paremos de nos deixar levar por essas adaptações patriarcais da luta feminista e voltemos a nos focar no que realmente fará diferença na realidade material das mulheres.

O exemplo mais comum disso é a falácia da liberação sexual. É certo que a sexualidade feminina é reprimida desde a infância e que é importante que estimulemos mulheres a explorarem sua sexualidade, mas o discurso da liberação sexual tem dado margem para uma relativização política de práticas sexuais nocivas às mulheres e benéficas ao sistema patriarcal. Esse discurso se restringe à questão moral — é considerado imoral que mulheres façam sexo antes do casamento ou sexo com vários parceiros, por exemplo, então por consequência fazer sexo fora desses moldes seria libertário — e negligencia o teor político das nossas relações. Ignora-se que a mulher que faz sexo é imoral, mas a que não faz por não estar se sentindo segura para ter uma relação sexual é frígida. Ignora-se também que a mulher negra sempre foi hipersexualizada e exotificada pelo mesmo status quo que a esquerda supostamente tenta combater.

Tanto a mulher que faz sexo com vários parceiros ou parceiras, e faz sexo casual ou no primeiro encontro, quanto a mulher que prefere se envolver emocionalmente antes de transar não estão erradas e não devem ser julgadas por suas escolhas. Porém, as escolhas não são feitas de forma livre, existe uma pressão social por se adotar um tipo de comportamento, pois o sexo é hiper valorizado. Associar sexo a libertação faz com que mulheres sintam a necessidade de transar com várias pessoas para sentirem-se “empoderadas”, um conceito completamente liberal. E elas o fazem sem questionar o que isso significa para sua saúde física e emocional, o que elas realmente querem fazer dentro desse contexto, e não o que acham que devem fazer. Mulheres são socializadas para a docilidade e a complacência, e a negligenciar suas próprias vontades. E o foco do feminismo deve ser fortalecê-las e ensiná-las a se manterem seguras.

A sociedade de hoje não é a mesma do contexto da revolução sexual — vivemos numa sociedade pornificada, onde a pornografia se infiltrou na cultura pop e dita a forma como é moldada nossa sexualidade. Isso influencia também como pensamos sobre nós mesmas, que nosso valor está diretamente ligado ao quão “bonitas e sensuais” nós somos para os homens, que “ser bonita” é uma necessidade vital. A partir disso, a lógica do anti-moralismo simplista ataca novamente: o corpo feminino sofre com os padrões de beleza, é difícil para as mulheres aceitarem a própria aparência, e é considerado imoral roupas curtas ou tudo que é encarado como promiscuidade, logo, seria libertário, e mais, seria feminista postar fotos sensuais, os famosos nudes, principalmente de corpos fora do padrão.

Não há nada de feminista em sexualizar corpos de mulheres, mesmo que a sexualização seja feita pelas próprias mulheres. A nudez feminina é usada em todos os contextos, em propagandas, filmes, séries, revistas; ignora-se que nossas fotos nuas são mais do mesmo, são o exemplo de como nossa vontade de ser bonita dita nossa vida e nossas decisões. Ignora-se também que meninas cada vez mais novas estão fazendo isso, facilitando a vida de pedófilos que buscam pornografia infantil. Um nude que vaza para o público pode destruir a vida das mulheres, tanto meninas quanto adultas, e esse risco passa batido a quem defende a nudez na internet.

Isso não quer dizer que é “errado” postar nudes — a não ser quando se é menor de idade — ou que mulheres que os postam estão erradas em sua intenção; quer dizer que tais fotos serão lidas da mesma maneira que os homens assistem pornografia. Quer dizer também que postar nudes não é e nunca será um ato feminista, na medida que consiste num risco à integridade física e emocional das mulheres, e as objetifica. É apenas mais da mesma lógica patriarcal. Isso fica claro quando se percebe que os homens não sentem necessidade de postar nudes para se sentirem bem consigo mesmos; essa é uma necessidade criada nas mulheres.

“A não ser que aceitemos que as mulheres são biologicamente programadas para adotar práticas de beleza, estas precisam ser compreendidas como práticas culturais que são exigidas de mulheres. Todas as práticas exigidas de uma classe sexual ao invés da outra podem ser examinadas por seu papel político em manter a dominação masculina.”

Sheila Jeffreys, Beleza e Misoginia

A própria pornografia, também considerada imoral pelos conservadores (ainda que de forma hipócrita), é mais um exemplo de como o anti-moralismo não contempla as querelas das mulheres. Uma indústria gigantesca que explora sexualmente milhares de mulheres e crianças — muitas vítimas de tráfico sexual — e que sexualiza violência explícita contra as mulheres (estupro, pedofilia, zoofilia, entre outros) nunca será feminista. Assistir pornografia é anti-feminista e misoginia pura. Não há espaço para interpretações nesse quesito.

“A crítica feminista da pornografia é uma política, especificamente a política do ponto de vista feminino, que significa o ponto de vista da subordinação das mulheres aos homens. Moralidade aqui significa o bem e o mal; política significa poder e impotência. Obscenidade é uma ideia moral; pornografia é uma prática política. A obscenidade é abstrata; a pornografia é concreta. Os dois conceitos representam duas coisas inteiramente diferentes. (…) O Sexo forçado às mulheres de verdade para que possa ser vendido com lucro para ser forçado a outras mulheres reais; os corpos das mulheres atados e mutilados e estuprados e transformados em coisas para serem feridos e obtidos e acessados e apresentados como a natureza das mulheres; a coerção que é visível e a coerção que se tornou invisível — isto e ainda mais incomoda as feministas sobre a pornografia. A obscenidade como tal provavelmente faz pouco dano; a pornografia provoca atitudes e comportamentos de violência e discriminação que definem o tratamento e a situação da metade da população.”

Catharine A. MacKinnon, Não é uma questão moral

Outra influência da pornografia é o BDSM, a erotização de violência no sexo e dominação/submissão nas relações. Sexualização de violência é tudo que as feministas tentam destruir. O discurso anti-moralismo defende que se dá prazer e é consentido, é necessariamente saudável; mais uma vez ignorando que o pessoal é político e que não se dissocia política das nossas relações e práticas pessoais.

Hoje em dia existe toda uma militância em favor do BDSM, que usa termos como vanilla, ou baunilha, para se referir a relações sexuais que não recorrem à violência erotizada. Esse termo extremamente problemático usa do discurso anti-moralismo para fazer com que mulheres se sintam conservadoras, ultrapassadas, puritanas, incapazes de se desconstruírem o suficiente para praticarem violência no sexo — como fazem os libertários. BDSM não é uma prática feminista.

“O sadomasoquismo é uma celebração institucionalizada de relações dominantes/subordinadas. E nos prepara para aceitar a subordinação ou para impor o domínio. Mesmo em que seja um ‘jogo’, afirmar que o exercício do poder sobre a impotência é erótico, é capacitar, é definir o cenário emocional e social para a continuação dessa relação, política, social e economicamente. O sadomasoquismo alimenta a crença de que a dominação é inevitável e legitimamente agradável.”

Audre Lorde, O sadomasoquismo na comunidade lésbica

Outra prática problematizada pelas feministas que é considerada imoral é a prostituição. Ignora-se que o que o moralismo condena, nesse caso, são as mulheres que estão em situação de prostituição — o que as feministas condenam são os homens que consideram aceitável comprar o corpo das mulheres. A prostituição é anti-feminista por si só. É o suprassumo da objetificação das mulheres.

O anti-moralismo extrapola, também, para questões mais problemáticas ainda. A relativização da pedofilia é uma delas; a tentativa de proteger meninas das investidas sexuais de homens adultos hoje é encarada como conservadorismo infiltrado no movimento feminista. Casos de homens que, por exemplo, mandam fotos não solicitadas de seu órgão sexual para meninas — inclusive menores de idade — polarizam as opiniões de mulheres, pois a problematização dessa prática é encarada como moralismo puro e simples, como se mulheres feministas tivessem algo a ganhar com a manutenção do status quo. Feministas radicais são tachadas por pretensas feministas de misândricas e punitivistas; todo o debate sobre socialização e heterossexualidade compulsória é jogado para debaixo do tapete em defesa de homens e ídolos que se relacionaram ou aliciaram meninas extremamente mais novas. O escudo do moralismo foi e é extremamente eficiente pois hoje ser moralista virou sinônimo de ser ultrapassado — motivo de vergonha dentro da militância.

Esse escudo descentraliza a questão do que realmente importa — a integridade física e psicológica de mulheres e meninas, a socialização que nos despe de autonomia e identidade, a maturidade emocional de uma menina de dez, doze, quinze anos e sua capacidade de consentir a quaisquer práticas sexuais. A relativização da pedofilia enquanto violência se alicerça no fato de que há pouco tempo atrás a homossexualidade, por exemplo, era considerada tão (ou mais) profana quanto o abuso sexual infantil, para parametrizar ambas as práticas e chamar de hipócrita aquele que condena uma e não vê problema na outra — como se o simples fato de, superficialmente, ambas serem demonizadas pela moral cristã fosse suficiente para que sejam consideradas saudáveis e injustamente condenadas. Esse discurso se apóia no caráter libertário da militância atual e profere absurdos como esse sob uma ótica transgressora de valores morais tradicionais ignorando que tais argumentos transgridem também o básico da segurança e saúde física e psicológica de seres vulneráveis como crianças e adolescentes. O fato de esse anti-moralismo ser extremamente seletivo, pelo fato de servir a interesses específicos — interesses masculinos — passa despercebido à feminista pouco atenta.

Essas práticas são consideradas transgressoras pelo discurso anti-moralismo, como se a mesma ideologia que sustenta a opressão e exploração sistemáticas das pessoas do sexo feminino condenasse essas práticas, e como se por esse motivo elas se tornassem automaticamente libertárias. O que se ignora é a hipocrisia da ideologia patriarcal — que demoniza a sexualidade feminina em todos os aspectos enquanto mimetiza uma demonização da sexualidade masculina que é falaciosa, por exemplo — que em teoria condena o estupro e na prática o justifica, incentiva e culpabiliza a vítima, que diz condenar a pedofilia enquanto absolve padres pedófilos de seus crimes. Basta um pequeno aprofundamento no discurso patriarcal para perceber que esse tipo de prática não é tão condenada assim — basta um mínimo de reflexão sobre o discurso libertário para perceber a quem ele realmente serve e como ele é a expressão mais clara do patriarcado se adaptando.

Feministas são e sempre serão anti-moralistas. A moral cristã, patriarcal e burguesa é falaciosa, baseada em preceitos conservadores e, principalmente, hipócrita — defende práticas semelhantes às que condena, de acordo com seus interesses políticos e econômicos. Subvertê-la de forma superficial, sem analisar mais a fundo no que ela realmente é fundamentada e quem ela beneficia, não é feminista; e basear política numa análise rasa de oposição por oposição é uma prática liberal que nos levará à ruína. Precisamos voltar a pensar por nós mesmas, sem medo de sermos taxadas de conservadoras por não seguirmos a onda libertária de uma esquerda misógina e patriarcal.

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