Green Book: O Guia (2018) — Peter Farrelly

Sara Cerqueira
3 min readFeb 11, 2019

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O Green Book do filme lançado em 2018 refere-se ao guia de viagem com nomes de bares, restaurantes, hotéis e outros lugares que permitiam a entrada de pessoas negras. Nos EUA da década de 60, no auge da segregação racial, tal livro infelizmente se fazia necessário, uma vez que pessoas negras que adentrassem ambientes majoritariamente brancos corriam risco de morte. Nos estados do sul dos Estados Unidos, o perigo era ainda maior.

Tendo como base o segregacionismo, uma relação profissional entre dois homens diferentes e o humor já conhecido do diretor, Green Book — O Guia impressiona pelo trabalho do cast e a qualidade de um road movie eficaz, mas peca pela exaltação de uma democracia racial e de uma amizade que nunca existiram.

Viggo Mortensen interpreta Tony Lip Vallelonga, um ítalo-americano de pavio curto que trabalha como segurança em boates e casas de show. Ao perder o emprego, o pai de família é indicado para trabalhar como motorista de Dr. Don Shiley (Mahershala Ali), um pianista negro mundialmente conhecido pelo talento e inteligência. A partir daí, vemos duas personalidades totalmente diferentes desenvolverem uma bela amizade enquanto viajam em turnê pelos estados do sul dos EUA.

A química entre Mortensen e Ali é perfeita. Os dois enchem a tela e conseguem manter o público engajado com diálogos tragicômicos, no melhor do estilo Buddy Movie (subgênero no qual dois homens totalmente diferentes são colocados juntos e desenvolvem algum grau de amizades e/ou companheirismo). O trabalho de Mahershala Ali é o que salta mais aos olhos do público: em uma interpretação contida, elegante e solitária, o personagem Don Shirley simboliza um lado não romantizado da intelectualidade e do talento artístico. Ele não somente sofre com o racismo institucional, mas também com o sentimento de não pertencimento entre praticamente todos os grupos sociais. Tal sentimento lhe confere uma tristeza residual durante o todo o filme, o que é muito comovente.

O personagem Don Shirley rendeu a Maharshala Ali diversos prêmios como ator coadjuvante, incluindo o Globo de Ouro, o Critics Choice Awards e o BAFTA.

Já o personagem Vallelonga encarna o estereótipo do italiano carcamano grosseiro e rude, mas que no fundo tem um coração bom. Não tiro o crédito de Mortensen ao interpretar tal personagem (que encanta o público com a ingenuidade e afetuosidade de uma criança), mas encarnar um estereótipo tão antigo e óbvio não pode ser considerado inovador.

A trama, apesar de apresentar diversas situações explicitavemente racistas e ser didática no que tange o privilégio de uma pessoa branca nos EUA, é superficial quando não deve e adula uma pretense democracia racial na maior pegada “no fim, somos todos humanos e iguais”. Obviamente, sabemos que os seres humanos são todos iguais em suas capacidades, mas saber disso não diminui as manifestações racistas na sociedade.

Além disso, a família do verdadeiro Don Shirley se pronunciou sobre o filme, explicando que não somente nunca houve a amizade retratada no longa, como também eles nunca foram procurados para falar sobre a verdadeira relação entre Vallelonga e Don Shirley. O ator Mahershala Ali inclusive telefonou para a família, pedindo desculpas pelas inverdades contadas na obra.

Diante da repercussão negativa de falas racistas de Viggo Mortensen e do roteirista do filme, Nick Vallelonga (neto do verdadeiro Tony Vallelonga), Green Book — O Guia se tornou mais uma oportunidade para o público se maravilhar com o talento de Mahershala Ali e curtir as delícias de um bom road movie. No que tange ao subtexto crítico, nada que a gente já não tenha visto em algum filme da Sessão da Tarde.

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Sara Cerqueira

Formada em letras pela USP, redatora freelancer, apaixonada por filmes, livros, games e análise do discurso ❤