Navratri, as 9 noites de Durga — Parte 1: descolonizando os sentidos

Satya Devi
7 min readOct 1, 2019

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Já tem alguns anos que todo Navratri eu faço uma ‘oferenda pública’ às Devis. Ano passado, ofereci um texto por dia às Maha Vidyas, uma a cada dia. Eu ouvia e entoava o mantra da Devi 108 vezes, deixava vir os aspectos principais que deveriam ser escritos, escrevia o texto, revisava e publicava. Ao todo foram umas 4 horas todos os dias durante 10 dias. Foi uma loucura, minha vida virou de cabeça pra baixo, mas os textos estão aqui no Medium até hoje, e são uma das poucas referências com uma linguagem mais acessível pra gente que, como eu, é ‘sem tempo, irmão’. Além disso, hoje, um ano depois, eu fico completamente sem palavras em ver os frutos dessa prática que fiz ano passado ainda reverberando na minha vida e na Teia que me cerca

Eu tenho feito isso todos os anos como uma forma de reafirmar que uma espiritualidade libertária é possível e desejável. Independente das formas e nomes que ela tenha.

“A negação do encatamento do mundo é uma parte da colonização capitalista” Silvia Frederici.

Nossa capacidade de acesso direto ao que é maior que nós, poderoso e provedor de alegria, vitalidade, abundância e conexões significativas com os seres ao nosso redor é uma maneira de circular riquezas materiais e imateriais que foge à lógica patriarcal. E além disso, pode ser uma ferramenta de luta e de autocuidado com a saúde de nossos corpos, mentes e ecossistemas. Independente se o sistema de crenças é tantrika, Kayngang, Güarani, de Asè, Taoísta ou o que for. E honestamente não penso que sejamos nós que escolhemos esses caminhos, são eles que nos escolhem. O que nós escolhemos é se vamos trilhá-los com integridade ou com desrespeito a suas culturas de origem.

Nesse texto pretendo jogar uma luz nos vícios que adquirimos dentro da lógica colonial e que deturpam nosso contato com o mundo e com a espiritualidade: como vemos a espiritualidade e os “mitos”, como ouvimos os mantras e as lendas, como sentimos nosso corpo na espiritualidade, nossos gostos pelo que é ‘bom’ ou ‘ruim’, e afiar o olfato para detectar lógicas patriarcais onde não estamos esperando, antes que eles nos peguem de guarda baixa num texto ou meditação. Depois disso, estaremos mais ‘nuas’ pra fazer um mergulho desse Navratri (e, quem sabe, dos próximos).

Essa série será dividida em 3 partes. O Prelúdio, O Mergulho, e mais alguma coisa que ainda não sei onde sairá do outro lado, mas até o final dessas 9 noites, descobriremos juntes.

O que Durga e Mashishasura não são: desintoxicando nossos sentidos da lógica colonial

A tendência imediata de quando ouvimos um mito de outra cultura é projetar nossos próprios valores no mito com que entramos em contato. Parece algo simples, mas muda completamente o significado e o efeito psíquico das práticas. Por exemplo: é muito comum ver a palavra “asura” ser traduzida como “demônio”. O efeito disso é que a gente pegue nosso arcabouço de valores católicos e projetemos na cultura tântrica ou védica. Só que a noção de ‘demônio’ é uma noção católica. E não tântrica. Projetar e impôr nossa própria lógica a uma outra cultura é tática de colonialização. Se olharmos para os mitos e saberes não-cristãos com a mesma lógica do catolicismo, algumas das consequências disso serão:

  • Não conseguiremos compreender a essência dos ensinamentos, e muito menos as afirmações políticas implícitas nos mitos.
  • Estaremos nos apropriando de uma cultura que não nos pertence, reescrevendo sobre ela os valores da nossa, e passando adiante. É uma forma de violência simbólica, apagamento e colonização.
  • Esse é um vício não só da linguagem, mas do nosso próprio pensamento e entendimento do mundo. E esse entendimento de mundo é o ‘mindset’ perfeito para manter o status quo de opressão.
  • Criamos um ‘limbo’ nem cristão e nem não-cristão, totalmente aberto a interpretações e manipulações desses saberes de acordo com os interesses de quem está passando adiante esse conhecimento, especialmente se este último é uma figura de autoridade dentro do grupo.

Então, como traduzir esses conceitos entre uma cultura e outra?

Simples: não traduzindo.

Asuras são asuras. Devis são Devis. Devas são Devas.

Mas como vai dar pra entender o que isso significa? Conhecendo as histórias, o contexto, os textos, mas principalmente: confiando na epistemologia da cultura em questão.

“Epistemologia” é o estudo da formação do conhecimento.

Na cultura ocidental, nossa epistemologia é, majoritariamente, o que entendemos por “ciência”, ou por “humanidades”, enfim… Existe um método de se fazer conhecimento que diz se um conhecimento é ou não é válido.

Bom, a epistemologia tântrica é bastante focada em vivência direta. Os textos e os praticantes nos templos das Maha Vidyas na Índia dizem que as Devis SÃO os mantras, são os yantras, estão em tudo o que há: o corpo, as estrelas, o fogo, o sol, a força que digere o alimento, as águas do corpo e fora do corpo… Não existe noção rígida de ‘puro vs impuro’, ‘bem vs mal’, ‘herói vs vilão’.

Portanto, intermediários não são requisito. Nem intermediários enquanto pessoas (professores, mestres etc), quanto ritualísticas rígidas, ter lido todos os Tantras escritos direto do sânscrito e assim por diante.

O pouco material dessas raízes matrilineares do Tantra, antigonas pra caramba, dentro do que eu consegui achar nas minhas pesquisas, todos focam muito na prática do Sadhana visando uma vivência direta dos mitos e das divindades: mantras, yantras e de vez em quando uma ou outra diretriz para rituais. E o resto, viria com a prática, como um “download direto da Fonte”. Não se tratam de saberes ou super poderes, que atribuem capacidade de dominação a outras pessoas ao redor, mas sim de sabedoria e força pra lidar com a vida em si, como ela é.

Faz sentido, se partirmos do pressuposto que a espiritualidade é algo que envolve fatores além da razão, como o corpo por exemplo, ou mesmo o contato com a terra, com os ciclos da natureza e assim por diante.

Sair da epistemologia ocidental não significa abandonar a razão

Afinal, se estamos falando em uma abordagem integrativa e não-dualista da espiritualidade, não faz sentido colocar a razão como ‘inimigos’, porque eles também são parte do todo. Mas o próprio exercício meta-perceptivo de olhar para o próprio olhar já é uma forma maravilhosa de aplicar a razão no processo espiritual.

Observar as nuances políticas nas entrelinhas das histórias nas lendas também: nos textos mais antigos, Durga é colocada como uma Devi Suprema, autocriada, para além de tempo e espaço. Nas versões mais recentes da história, porém, ela é colocada como uma criação de Brahma, Vishnu e Shiva, que unidos A criaram com a função específica de derrotar Mahishasura. Uma figura feminina criada por outras figuras masculinas para servir a uma função… Quer coisa mais colonizadora e patriarcal que isso? Para mim, um questionamento assim não é é perfeitamente racional quanto absolutamente pertinente e irritante ao status quo.

Um ótimo início pra buscar mais informações sobre ativismo indiano: sadhana.org

Aplicar a razão na prática espiritual também significa não perder de vista que “A Índia” não é esse lugar flutuando no espaço, místico por definição, transcendido de todas as questões sociais e políticas. É um dos países mais populosos do globo atualmente, com um histórico de guerras e colonização britânica pesadíssimo e que sofre com o patriarcado e a misogenia assim como o Brasil. Portanto, sempre temos que fazer um filtro consciente e criterioso sobre os autores, as tradições e os saberes que acessamos. Sabemos que uma das práticas preferidas do Colonialismo é apagar ou distorcer/perverter saberes ancestrais de acordo com seus interesses de modo que pareça que esse conhecimento ancestral está presente, mas perdeu sua essência e sua potência política libertária. De forma análoga, existem lutas de resistência decolonial e de direitos humanos crescendo nos últimos anos.

Manter esse exercício de compreender as práticas como uma estratégia e afirmação política e ao mesmo tempo um contato íntimo e pessoal com algo maior que si mesmo é um baita sadhana, e um exercício cerebral diário, constante, que expande nossa mente e nossos horizontes.

O que Durga Devi e Mahishasura não são:

Sumarizando, o que Durga não é, é “Deusa”. Nem “heroína”. Na verdade, alguns dos cânticos a chamam de “assassina” (de Mashishasura). Não é algo muito associado com algo ‘santo’, não é mesmo?

E o que Mahishasura não é, é ‘demônio’. Ele é um ‘asura’, sem dúvidas, como diz o próprio nome. Mas, como vimos, isso não correponde a nossa noção de ‘demônio’. Na verdade segundo as lendas, Mahisha, antes de ser chamado de ‘Mahishasura’, era um Rei com cabeça de búfalo que era devoto de Brahma, o Deva da criação e do sonho.

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Satya Devi

Escrevo sobre Deusas porque nós mulheres precisamos re-assumir o poder de escrever nossos próprios Mitos, e, consequentemente, reescrever nossas Histórias.