Navaratri, as 9 Noites de Durga — parte 3: Ascensão

Satya Devi
10 min readOct 8, 2019

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Espero que tenham tinho um bom Mergulho e absorvido bem as palavras de Durga Devi. Agora vamos emergir desse estado de fusão, de volta ao ar e à terra. Mas sem pressa, com amor. Porque a pressão é intensa no fundo do Oceano.

Nesse texto farei alguns comentários sobre cada um dos 8 versos do Devi Suktam, conforme senti que deveria, inclusive apontando semelhanças entre o Devi Suktam e as 10 Maha Vidyas.

Meus comentários nos versos são uma partilha do que eles intimimamente invocam em mim, podem ser diferentes do que eles invocam em você (provavelmente serão). E tudo certo. Me conta o que vc sentiu e se foi parecido ou não nos comentários ;)

Desapegando de Deus

É difícil pra gente desapegar nas noções cristãs de “Deus”. Ou uma versão feminina, quando falamos de “Deusa”. Essa coisa distante, amorosa e punitiva, que julga e redime.

Mas se não é assim, então como é?

Bom, o próprio Devi Suktam está explicando, delimintando e definindo exatamente quem Ela é. É pra isso que servem esses textos. E aqui a gente vai dar uma esmiuçada melhor no que isso significa.

Não é um texto de adoração ou no qual você deposita sua fé e diz amém porque alguém te disse que é Sagrado. Não. É um texto em que você precisa engajar sua mente racional, colocá-la pra entender conceitos abstratos, e entender de que força estamos falando quando falamos em “Durga” ou “Devi”.

Eu escolhi o Devi Suktam como a base do Navaratri porque ele foi a referência mais antiga que eu consegui achar na web, e portanto, com menor influência dessa lógica colonizadora. E porque ele me deu arrepios quando eu li em voz alta. Afinal, espiritualidade pagã é, também, corpo.

Associação entre as 9 Noites e as 10 Maha Vidyas

Há também uma clara associação entre o Navaratri e as 10 Maha Vidyas. No Sul da Índia, onde o Tantra matrilinear floresceu em tempos ancestrais, essa festividade de Navaratri, é conhecida até hoje por simplesmente por “As Dez”. As Dez! Não sei se fica mais óbvio que isso. Mesmo o Navaratri tradicional, é dito ter 9 noites e uma manhã da Vitória.

Mas as Maha Vidyas, como sabem, no olhar do colonizador, são muito ‘ultrapassadas’… Elas são sujas, são múltiplas, algumas são sexuais, outras são velhas… Os rituais a Elas são tabus. Elas não têm consortes ou Devas masculinos. Isso por si só já não atrai a atenção suficiente dos colonizadores. E pra eles se esses ‘selvagens’ prestam reverências a Deusas femininas, isso só pode ser “demoníaco”. Armadilha de Satanás! rs… Portanto, faz sentido que eles tivessem precisado de algo que substituísse uma data dedicada a Elas. Bom, ao menos pra mim, faz.

Enfim, após esse texto, em consonância a essa “décima manhã”, essa “noite esquecida”, farei ainda um texto final da série, com uma síntese, um fechamento desse estudo do Devi Suktam. Assim não canso vocês tudo num texto só.

Bora pra batalha:

Eu sigo com os Rudras, com os Vasus, com os Adityas e com Vishvadevas; Eu sustento tanto Mitra quanto Varuna, Agni e Indra, e os dois Asvinis.

Nesse trecho, Ela se localiza mitologicamente, afirmando sua plenitude integradora dos opostos. ‘Tanto Mitra (Deva da Terra), quanto Varuna (Deva dos ares e céus)’. ‘Tanto Agni (Deva relacionado ao Fogo), quanto Indra (relacionado à água)’. E assim por diante.

Rudra também é associado simbolicamente a Kali, a primeira das 10 Maha Vidyas, por ambos serem bastante ancestrais e muito ligados às forças furiosas da Natureza.

É intrigante jogar no google cada um dos nomes acima e ver o que cada um simboliza, mas não se prendam aos detalhes e lembrem-se que a cultura védica (e não tântrica) que popularizou essas lendas, portanto, um ou outro detalhe vai fugir da nossa percepção pagã de mundo. Nade nessas águas com cuidado. Nas referências desse texto tem bastante coisa também.

Eu sustento os destruidores de inimigos, Tvasrt, Pushan e Bhaga; Eu restauro a saúdo sobre quem presta rituais de oferenda. Que derrama libações e merece proteção cuidadosa.

Tvasrt — relacionado ao surgimento da Forma, “o estilista dos Deuses”.

Pushan — relacionado aos encontros, reuniões, casamentos, ‘caminhos que se cruzam’.

Bhaga — relacionado a ‘fechamentos’: heranças, reequilíbrios, dívidas que precisam ser pagas, etc.

Ou seja, aqui Ela afirma que a Manifestação acontece e é sustentada através Dela: criação, sustentação e destruição.

Restauração da saúde sobre quem presta oferendas. Algo bastante literal. As oferendas podem ser físicas ou imateriais, como um mantra, uma meditação, uma respiração, fazer uma refeição saudável, ou um texto como este. Ao ofertarmos uma oferenda, quando fazemos isso com o coração, uma força específica brota de dentro de nós. Às vezes mais sutil, às vezes mais intensa. Essa força é a própria vitalidade dentro de nós, despertada pela prática e isso impacta positivamente nossa saúde física e mental. Aqui, ela se identifica como Aquela que faz com que esse efeito ocorra. É o primeiro de muitos momentos nesse texto em que fenômenos do corpo físico são relacionados aos espirituais.

“Que derrama libações e merece proteção cuidadosa” — aqui Ela afirma um compromisso de carinho e proteção aos que se prestarem reverências a Ela.

Quem apreciava muito as libações e oferendas, de forma diferente entre si, eram Bhagalamukhi e Matangi, das 10 Maha Vidyas. E concediam poderes e proteção aos que faziam oferendas.

Eu sou a Rainha Suprema de toda a Existência, a coletora de tesouros, conhecedora do Ser Supremo, a principal a ser adorada; como tal, fui divinamente colocada em muitos lugares, residindo em múltiplas condições, entrando em inúmeras formas.

Aqui Ela começa os decretos de quem Ela é. Afirma sua não-dependência de Deidades exteriores e sua vastidão. A “Rainha dos Reis” é também uma das frases que identifica Tripura Sundari, uma das 10 Maha Vidyas.

“A conhecedora do Ser Supremo” — Se o Ser é Supremo, não tem ‘eu’ pra conhecer esse Ser, correto? Porém existem estados de alteração da consciência bastante específicos, relatados por diversos praticantes, dessa experiência de ‘não-eu’ de acesso a “algo” que é infinitamente vasto, que é o Ser-Matriz dentro de Todos os Seres. Quando retornamos desse estado, porém, essa sabedoria não pode ser totalmente ‘transportada’ ao estado de consciência cotidiano. Aqui, Durga se identifica como esse Ser Supremo. Não se trata de um louvor vazio, mas da explicação do que Ela é.

Sendo esse Ser Supremo, faz sentido a afirmação seguinte: “fui colocada em muitos lugares, residindo em inúmeras condições, entrando em inúmeras formas”.

Todas as formas são permeadas por Ela. Não tem nada que esteja além Dela. Por definição.

Quem que se alimenta, se alimenta através de mim. Quem vê, quem respira, quem ouve o que é dito, o faz através de mim; Aqueles que são ignorantes de mim, perecem. Ouçam quem for capaz de ouvir, Eu direi aquilo que é merecedor de crença

Ela segue definindo e afirmando quem Ela é.

Quem se alimenta se alimenta através de Mim — no Ayurveda, entedemos que ‘você é o que você digere’. E essa digestão é promovida por uma orquestra de vários fatores dentro do corpo, ordenados por uma inteligência metabólica chamada “Agni”. Sim, o mesmo nome do Deva do Fogo. Porque É o mesmo. O mesmo fogo manifestado fora do corpo ou dentro do corpo, de uma forma diferente, possui um mesmo princípio. Ele está citado na primeira frase do Suktam. Portanto, Ela está afirmando que o ‘comer’ é inútil sem Ela. Não existe alimentação, absorvação e eliminação adequada quando Ela não está presente. Faz sentido, portanto, a associação Dela com a saúde e vitalidade.

Quem vê, vê através de mim — tem quem veja e não enxergue. Tem quem olhe, e o mundo ao redor não lhe toca a Alma. Quem faz com que a Visão seja cristalina, tanto a física quando a metofórica, é Ela.

Quem ouve, ouve através de mim — tem quem ouça e não escute. Tem quem passa despercebida das próprias sensações e intuições. E assim por diante.

Existe ‘uma visão dentro da visão’, ‘uma audição dentro da audição’, um ‘olfato dentro do olfato’. Sabe quando alguma história “não cheira bem”? Ou quando você “viu” que algo ia dar merda? Pois bem, essas são uma contraparte não-física dos nossos sentidos. Ela aqui se localiza como a inteligência e o fenômeno que faz com que tudo se manifeste com equilíbrio e vigor.

Eu Mesma, em Verdade, declaro isso, que é aprovado tanto por Deuses quanto por humanos; quem quer que Eu escolha, eu tornarei essa pessoa extremamente poderosa, um sábio, tornarei essa pessoa Brahma ou altamente ingeligente.

Pois bem, então eis que Ela se manifesta em texto: “eu direi aquilo que é merecedor de crença”. Aqui, eu pessoalmente entendo que quem quer que tenha escrito esse texto, estava com a consciência alteradíssima, canalizando o ‘recado’. E fez questão de dizer isso. Isso é confirmado pelo trecho ‘que é aprovado tanto por Deuses quanto por humanos’, simbolizando um estado de consciência ativo tanto no plano físico quanto no não-físico.

“Quem quer que eu escolha, eu tornarei essa pessoa extremamente poderosa, um sábio” — implica que esse Poder, não pode ser ‘chamado’, mas não pode ser ‘convocado’ como uma receita mágica de bolo, mas sim através de se estabelecer uma relação com essa Força. Que é íntima, mas se manifesta em ações.

Aqui também mais uma referência às Maha Vidyas. “Vidya” significa sabedoria. Tornar essa pessoa um sábio, é tornar essa pessoa plena de Vidya.

“tornarei essa pessoa Brahma” — tornarei essa pessoa A Criadora. Do que? Do que ela quiser, oras. A capacidade de criar, de manifestar, de gerar.

“ou altamente inteligente” — sendo a inteligência uma consequência da saúde, faz sentido que aquele escolhido por Ela torne-se dotada nesse ponto.

Tanto vitalidade, quanto criatividade, quanto inteligência são manifestações do que foi ‘codificado’ no Tantra por ‘Kundalini’. Kundalini, por sua vez, é conhecida como ‘A Viúva’, apelido também de Dhumavati, uma das 10 Maha Vidyas. O seu bija mantra é “Dhum”. O mesmo “Dhum” também aparece no bija mantra de Durga.

Eu curvo o arco para Rudra, para que assassine os inimigos que odeiam Brahma que causam tormentos. Eu levarei guerra a quem se opuser a meus devotos. Eu permeio o céu e a terra.

Aqui o bicho pega, né. Aqui a gente vê o lado Furioso de Durga.

Rudrá, enquanto aspecto ancestral de Shiva, carrega um arco (derrota dos inimigos antes que eles cheguem ‘perto demais’). Shiva é a consciência, e o arco e flecha são associados ao Foco. Não apenas aquele foco nas suas metas no cotidiano, ou nas tarefas diante de você, mas o Foco que se manifesta num nível mais profundo da Consciência, em que tudo na vida parece ‘girar’ ao redor e você segue sem perder seu centro. O discernimento tanto no nível raso quanto profundo. Pois bem, Ela é quem confere potência a esse estado

“para que assassine os inimigos que odeiam Brahma, que causam tormentos”: os ‘inimigos de Brahma’ são os inimigos da nossa Criatividade. Os inimigos do nosso tesão, da nossa vontade de viver, da nossa capacidade de Manifestação, nossa capacidade de sonhar. Esses tormentos, são inimigos nossos e Dela. Não importa se eles são internos ou externos. É Ela quem dobra o arco da consciência, afia o foco, para que esses inimigos sejam assassinados. Percebam o uso da palavra: não são ‘mortos’, não são ‘destruídos’. São ‘assassinados’. Sugere algo selvagem, sangrento, sem piedade e sem gerar danos colaterais desnecessários. É Fúria manifestada. É Bhairavi, das 10 Maha Vidyas.

“Eu levarei guerra a quem se opuser a meus devotos”: ela segue reafirmando que sua Manifestação não é ‘sutil’. E afirma esse compromisso com a proteção e a prosperidade daqueles que Lhe referenciam.

“Eu permeio o céu e a terra”: não há lugar em que Ela não possa chegar. Não há onde se esconder, onde quer que existe céu e terra, Ela estará Lá, em plena manifestação… Inclusive no seu corpo.

Eu trago afrente as abóbodas celestes paternais sobre a coroa desse Ser Supremo; meu gênesis vem das águas cósmicas que a tudo permeiam. Portanto, eu permeio a todos os seres e alcanço este céu com meu corpo

Pois falando em corpo, agora que Ela definiu quem é, afirmou todo esse Poder, e declarou guerra àquilo que impede que Ela se manifeste em Plenitude dentro de nós, agora ela ‘se insere’ e se ‘localiza’ dentro do corpo cósmico: e de nosso próprio corpo. Ela identifica a manifestação de Si com o corpo de quem está fazendo a prática da recitação do canto.

Referência a Bhuvaneshvari, das 10 Maha Vidyas (“Aquela cujo corpo é o Cosmos”)

E à Kamala, na referência às ‘águas cósmicas’. Águas cósmicas do sangue, do líquido amniótico, das lágrimas, das secreções sexuais, dos rios, cachoeiras, do Oceano, do líquido que lubrifica nosso cérebro que torna possível a conexão entre os neurônios. Toda a vida flui através da água. E onde há abundância de água há abundância de vida. Pra quem está familiarizado com a arte da alteração da consciência, também sabemos que aǵua é um importante ‘lubrificante’ para qualquer experiência e que lágrimas, suor, ou outras secreções ou fenômenos que remexem um ou vários dos líquidos do corpo são naturais quando a experiência é intensa. São essas águas que fazem nascer Durga.

Eu mesma em Verdade respiro adiante como o vento, exalando forma a todos os mundos criados; além dos céus, além do mundo, Eu existo eternamente além de espaço e tempo, vastíssima em minha grandiosidade.

E através da respiração Dela, todos os mundos foram criados. Ela fecha o cântico, trazendo atenção à respiração — e nos levando junto com Ela pra vastidão cósmica dentro de nosso próprio corpo.

Se vocês conseguem sentir esse estado, descansem nele. Recitem esses versos como uma prática, sempre que precisarem. Como um remédio, um descarrego, uma oração pagã.

Lá, nós nos encontraremos.

Até o próximo texto.

Longa vida às Devis! _/\_

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Satya Devi

Escrevo sobre Deusas porque nós mulheres precisamos re-assumir o poder de escrever nossos próprios Mitos, e, consequentemente, reescrever nossas Histórias.