Normatividade Monogâmica e Espiritualidade

Satya Devi
9 min readOct 30, 2017

--

Radha

A representação dos Deuses de um povo é a representação dos valores, costumes, e tradições de um povo. Se estamos buscando a destruição do machismo (que não vem da noite pro dia), estamos buscando a transformação radical de valores, costumes, tradições e comportamentos de nosso contexto social — e, portanto, a escolha de nossos Deuses também têm que entrar em questionamento.

Normatividade Monogâmica” é a pressuposição social de que a ‘norma’, o ‘normal’, o ‘esperado’, o ‘modelo’ de relacionamento básico é a monogamia.

Monogamia” é o arranjo social em que uma pessoa casa-se com uma outra pessoa apenas.

Portanto, em essência, não se trata de preferências relacionais. Não é sobre amor. Não se trata de afeto, de sexualidade. Trata-se de política, de poder e de noção de linhagem e continuidade sanguínea.

As (nada românticas) origens da Monogamia

A monogamia enquanto instituição social surge juntamente com a propriedade privada, e objetificação da mulher. Em uma cultura patriarcal, passa a ser necessário controlar a sexualidade da mulher para que se garantisse que os herdeiros de uma família fossem uma continuação genética do pai. Substitui-se a reverência da mulher enquanto doadora da vida, por uma noção do homem enquanto centro da família, dos bens, e do sustento. Isso, obviamente, também veio junto com a transformação de valores espirituais e religiosos. E essas transformações não vieram gradual ou pacificamente. Vieram através de guerras, genocídios e outras atrocidades.

A monogamia nunca foi sobre a privação ou regulação da sexualidade masculina, que continuavam sem sanção social alguma para viverem sua sexualidade fora do casamento. Tanto é que, até 1990, no Brasil, a legislação dizia que se um homem uma moça de classe inferior e ela engravidasse, ele deveria, por lei, casar-se com ela para reparar o dano, a ofensa de tê-la ‘desonrado’ — e isso tratava-se de uma ofensa particular. Porém, se esta moça fosse de classe muito inferior, ele não deveria casar-se com ela, pois a desonra que sua linhagem familiar sofreria com essa união seria desproporcional ao dano causado — e nesse caso, trataria-se de uma ofensa pública (a sua família de origem). Ou seja: se ela fosse negra, e/ou pobre,e/ou prostituta ou outra classe de marginalização coletiva, ele deveria simplesmente fazer de conta que nada aconteceu e ‘abafar o caso’.

Percebam: não estamos falando de amor. Não estamos falando de 500 anos atrás. Estamos falando de como era a legislação de menos de 30 anos atrás.

Da romantização da Monogamia: o papel da religião

A monogamia foi ‘lida’ socialmente de diferentes maneiras através dos séculos, dos lugares e das gerações.

Santa Clara e São Francisco

A Igreja Católica, durante a Idade Média, teve papel central na ‘santificação’ da monogamia, bem como tornar o casamento um evento religioso. ‘Selado por Deus’. Aos poucos, casamento e amor passaram a ser propositalmente misturados na mitologia patriarcal. A união entre um homem e uma mulher passou a ser visto como algo divino, algo ‘projetado por Deus’… E feito para durar para sempre. Ao menos, esse foi o mito contado às meninas e mulheres ao longo da vida de todas. Ao qual ‘todas têm direito’, ou melhor: chance. Caso se comportem direitinho: sejam servis, gentis, bonitas, inteligentes, e principalmente, castas. É o prêmio no final da brincadeira para as ‘boas meninas’.

Mais recentemente, o cinema, a televisão e outras mídias passaram a propagar cada vez mais o mito do amor romântico e associá-lo, sempre, com a monogamia. Era importante que as mulheres aguardassem, fiéis, seus maridos ‘heróis de guerra’ em casa, e ainda assim topassem jornadas exaustivas de trabalho, dentro e fora de casa.

Sofrer por Amor” passa a ser uma máxima, um valor nobre, uma comprovação de espiritualidade — para a mulher. Para o homem, ‘sofrer por amor’ é uma espécie de atestado de fraqueza. Assim como o casamento é uma espécie de perda. Enquanto que, para a mulher, é uma espécie de ‘ganho’.

A Monogamia em tempos atuais

Dado todo esse panorama, e uma crescente conscientização dele em nossas bolhas intelectuais (porque a discussão ainda não chegou ao grande público), encontramo-nos num impasse. Um enigma difícil de digerir: nossa própria visão de amor está imersa em romantismo, e nas concepções monogâmicas. Nós mulheres crescendo com uma promessa de ‘felizes para sempre’ e de ‘príncipe encantado’ — para descobrir que o ‘felizes para sempre’ era lavar, passar, cozinhar, cuidar dos filhos sozinha (ou praticamente sozinha), trabalhar fora, e ainda nos mantermos lindas de unha feita e em forma. Ideais e exigências inumanas que tentamos buscar a todo custo. E custa muito caro: metade das brasileiras nem se quer têm gozo sexual.

E ainda que estejamos cientes de tudo isso, vira e mexe, nos pegaremos reproduzindo desejos e valores patriarcais. Seja dentro de nossas relações, ou seja no desejo por essas relações. No sentimento de culpa por não termos encontrado essas relações (ou por termos nos divorciado delas), ou de termos sido responsáveis por ‘não termos nos esforçado o suficiente’.

A monogamia (seja ela em namoro, casamento ou qualquer outra dinâmica) em si, é uma instituição patriarcal. O que não significa que não podemos recheá-los de outras estéticas espiritualistas ‘alternativas’. Mas, em essência e em origem, trata-se de herança, posse, poder, e continuidade da linhagem. E é por isso que adentrar em uma relação monogâmica (ou algo que se aproxime a isso) esperando igualdade entre os indivíduos é um tiro que sai pela culatra. Pois gera um desgaste de energia absurdo entre valores machistas e feministas. Entre duas mitologias em que uma oprimiu e dizimou a outra. E podem inclusive dizer que a busca por igualdade que está gerando o conflito (“ai essas feministas são muito radicais…”)— mas nunca se questionada a ‘sagrada monogamia’. ‘Sagrada Família’ (tradicional brasileira).

O papel da espiritualidade na manutenção da normatividade monogâmica

Como já dissemos, esse papel se trata de maquiar uma instituição social e política de controle da sexualidade feminina para garantir a continuidade genética dos herdeiros. De ‘religiosar’ e ‘romantizar’ uma opressão histórica.

Diferentes culturas fizeram isso de diferentes formas. Tanto no Ocidente, quanto no Oriente. Tanto em religiões quanto através da mídia.

No processo de instituição dessas mitologias patriarcais, foram destruídos quaisquer representações que pudessem ser inconvenientes a esse método. Ou então solenemente ignorados pelos cientistas e pesquisadores quando estes iam a campo — ou interpretados de maneira totalmente distorcida.

Inspirações de Mitologias Ancestrais para outros arquétipos de feminilidade e relacionamento

Templo de Khajuraho, Índia

O templo de Khajuraho, na Índia, têm trabalhos em pedra imagens e mais imagens de diversas formas de união sexual. Não se conhece a fundo quais as práticas e filosofias. Não há interesse algum em continuar as escavações ou seguir com esses estudos. É preciso compreender que em tempos em que a Índia tem feito tanto esforço político para ser vista como ‘moderna’, esses templos e o estudo deles representa o oposto dos valores que têm sido politicamente aspirados nas últimas décadas. O estigma sobre o que é ‘exótico’, ‘feio’, ‘primitivo’, e portanto indigno de respeito ou consideração é muito pesado e chegou com força por lá, de maneira análoga com o que aconteceu com nossos índios daqui.

Para falar em novas/antigas formas de relacionar-se é preciso falar em novos/antigos arquétipos de feminilidades. É preciso olhar para outras Deusas, que não nos remetam a imagens ‘virginais’, ‘castas’ ou servis. E isso pode ser muito curativo para nossa psique. Sejamos nós homens ou mulheres.

Encontraremos imagens assim em alguns templos de Kali, por exemplo, como no exemplo abaixo. A imagem fala por si mesma. Imaginem o que eram os valores de um povo que tinha em seu ‘altar’ uma imagem como essa ao invés de um homem branco torturado numa cruz.

imagem encontrada em um templo de Kali, conforme o livro de Dubois

Essa imagem foi retirada no livro “Hindu Manners, Customs and Ceremonies”, por um antropólogo inglês chamado Dubois. Veja o que ele escreve sobre os costumos ‘exóticos’ da Índia ancestral:

“There is one motive which above all others has influenced my determination. It struck me that a faithful picture of the wickedness and incongruities of polytheism and idolatry would by its very ugliness help greatly to set off the beauties and perfections of Christianity.”

“Não há nenhum outro motivo acima de todos que tenham influenciado a minha determinação. Fui arrebatado pela percepção de que uma fiel imagem da perversão e incongruência do politeísmo e idolatria poderia por sua própria feiura ajudar a exaltar as belezas e perfeições do Cristianismo”

Fonte: http://www.indrasinha.com/books-2/tantra/the-temple-of-kali/

Não foi à toa que os tantrikas inseriram como prática não mencionar nada de seus rituais aos não-iniciados. Pelo trecho acima a gente entende o porquê com total clareza.

Esse tipo de comentário esdrúxulo deste pesquisador, e o fato de que ele faz isso com um ‘título’ acadêmico, e tem autoridade reconhecida na sociedade, é uma das maneiras de controle e de deslegitimação da fé, e também da vida alheia. É mera extensão da noção patriarcal de que algumas vidas importam mais que outras. Vidas brancas, cristãs, castas, são belas e perfeitas. Vidas racializadas, pagãs e sexualizadas são feias e pervertidas.

Aprendemos, historicamente que concordam com esse paradigma é o que é preciso para sobreviver. Sem isso, ‘merecemos’ perseguição e extermínio.

É, galera. O assunto é pesado.

Outras imagens análogas à imagem de Kali também podem ser encontradas em templos de Tara, em que ela aparece cercada por 6 yoges, em reverência com os pênis eretos ou em reverências ao sangue menstrual. Numa versão mais recente, o Budismo Tântrico manteve algumas iconografias de Vajra Yogini (arquetipicamente relacionado também a Tara), representada ao lado. Tara Devi é arquetipicamente relacionada ao Desejo.

A simbologia da Lótus, do tempo, e dos Deuses em referência no cantinho da imagem não são acidentais, e remetem a significados específicos desta Divindade para esta linhagem.

Tanto Kali, quanto Tara, são parte de um panteão ancestral das 10 Maha Vidyas (as 10 Grandes Sabedorias), composta por Deusas que guardam semelhanças e diferenças entre si. Algumas benevolentes, outras furiosas. Algumas suculentas e doadoras de vida, outras horripilantes e doadoras de morte. O que todas elas têm em comum é que todas elas são representadas por si mesmas, sempre de forma independente de seus consortes (que quando aparece é sempre Shiva, e em postura passiva). Todas Elas nos remetem a modelos de ser/estar Feminino autônomas e poderosas por si mesmas:

As 10 Maha Vidyas, em representação relativamente recente

Os arquétipos em si nem se quer precisam ser humanóides em sua imagem. Reverenciar as forças da Natureza, ou observar a simbologia dos animais, como algumas vertentes de Xamanismo, e do Asé também são uma maneira de buscarmos direto na Fonte, a Natureza, alternativas a toda essa artificialidade relacional.

Certamente existem muitos outros arquétipos possíveis que poderiam ser citados aqui. Estes são alguns com que eu mesma tenho mais intimidade e me sinto mais confortável para falar sobre.

Qualquer arquétipo que não gire em torno da servidão feminina, da submissão de sua capacidade geradora e doadora de vida a uma figura masculina (mesmo que arquetípica), ou da frustração afetivo-sexual nos interessa para nos nutrir o intelecto e o espírito em direção a esta libertação.

Considerações Finais

Não estou aqui para te dizer como conduzir sua vida e suas relações. Importa-me mais que você esteja ciente de quais são as forças com as quais você está lidando no seu cotidiano, e a maneira como você e sua cultura vão moldando e conduzindo a sua própria vida. Não só a nível relacional, mas também sexual, produtivo e reprodutivo. Não estamos falando de uma problemática que começou com a grande mídia, nem com a novela, e muito menos com o feminismo. Mas sim de processos milenares de colonização, violência e dominação patriarcal — e principalmente: as respectivas resistências a elas, mesmo que elas não entrem nos livros de história. Tanto opressão quanto resistência sempre existiram.

Que as suas escolhas sejam suas escolhas, e não de outrem.

Que possamos ter escolhas mais conscientes e sábias sobre a maneira que conduzimos nossas vidas enquanto mulheres e homens, e bem como em nossas relações! _/\_ ❤

--

--

Satya Devi

Escrevo sobre Deusas porque nós mulheres precisamos re-assumir o poder de escrever nossos próprios Mitos, e, consequentemente, reescrever nossas Histórias.