Sitemap

O MARECHAL em PESSOA

5 min readApr 4, 2025
Press enter or click to view image in full size

O Marechal sempre foi o melhor em tudo. Primeiro da turma desde o jardim de infância até o fim da academia militar. Além da arte da guerra, estudou História, Política, Economia, Direito e Administração. Falava inglês, espanhol e alemão. Acordava todos os dias às cinco da manhã para se exercitar. Corpo são, mente sã!, dizia orgulhoso.

Todos admiravam sua inteligência e seu extenso acervo de informações. Sua especialidade era História Militar.

A aula mais popular na academia era a palestra do Marechal sobre o golpe de Estado que interrompeu pela primeira vez a longa democracia ateniense, durante a Guerra do Peloponeso.

Com eloquência, narrava como Alcibíades e seus parceiros forjaram justificativas desconectadas da realidade para defender um golpe de Estado naquela ocasião (411 a.C.). Eles argumentavam, por exemplo, que o fraco desempenho de Atenas na guerra era culpa do regime democrático, que este gerava decisões erradas e impulsivas, especialmente porque demagogos pouco qualificados manipulavam o povo. Segundo os insurgentes, era preciso restaurar a forma “original” de governo, na qual uma minoria composta pelos “melhores cidadãos” estaria mais apta a governar o país e, assim, evitar a derrota para Esparta.

Àquela altura da carreira, o Marechal já tinha passado por todos os postos e posições possíveis da estrutura militar. Ganhou tantas medalhas, que se fosse colocar todas de uma vez, em sua farda impecável, não pararia de pé e cairia pra frente.

Só havia uma lacuna em sua carreira: nunca havia participado de uma guerra de verdade. Não por falta de competência, mas por traquinagem do destino. Naquele estágio, o natural seria passar para a trincheira da reserva e vestir o pijama do dever cumprido, podendo transitar de cabeça erguida nas quadras de peteca do clube militar.

Porém, por sua notável inteligência, foi convidado a ocupar um cargo de destaque no governo. Exercia a missão com a mesma disciplina e devoção dos tempos da caserna. Chegava antes da alvorada e era o último a sair. Não deixava nada para ser despachado depois.

Um dia foi convocado para uma reunião importante. A pauta era dúbia: Possíveis saídas para evitar a ruptura democrática. No concreto, discutiria-se maneiras de aquele governo, derrotado nas urnas, permanecer no poder. O Marechal ouvia atentamente as falas dos presentes e tentava processar aquele momento singular. Apesar de todo o conhecimento adquirido nos livros, cursos e treinamentos, não conseguia digerir bem a artilharia de eufemismos que os presentes disparavam. “Preservar a ordem”, “Intervenção Constitucional”, “Manutenção da Democracia”, “Defesa da Liberdade” e “Movimento Patriótico”.

Embora tivesse acumulado um batalhão de informações ao longo da carreira, sentiu-se despreparado para lidar com o cenário sombrio que testemunhava. Percebeu, finalmente, como se travavam as guerras do mundo real. Sentiu-se recruta, inseguro e com medo. E a dupla amiga que poderia lhe estender a mão nesse momento não lhe visitava há tempos. Caráter e prudência nunca foram convocados para a linha de frente na sua brilhante trajetória e acabaram se atrofiando ao longo dos anos.

No fim da reunião, ainda sem assimilar plenamente o que passava, foi indagado se estava de acordo com as deliberações que salvariam a pátria do inimigo imaginário. O Marechal não queria demonstrar insegurança e tampouco insubordinação, por isso manteve os desconfortáveis questionamentos debaixo do quepe e apenas respondeu de forma assertiva e obediente: Positivo!

Um disparo automático de uma palavra destruiu, num só golpe, a longa carreira do menino prodígio, que aprendeu a ler e a escrever com quatro anos e, aos seis, já sabia os afluentes do rio Amazonas e o volume de água do Nilo.

Lamentavelmente, na primeira oportunidade que teve de aplicar todo o conhecimento acumulado na solução de um problema do mundo real, o Marechal tropeçou no cadarço do coturno envernizado e caiu de testa no meio-fio recém-pintado de cal.

O Marechal sabia a matéria, porém decorar fatos da História é diferente de ter consciência histórica. Mais importante do que diferenciar o preto do branco é saber que decisões da vida real envolvem muitos tons de verde, além do familiar oliva.

Sua resposta não foi dada por íntima convicção, mas por falta de coragem. A bravura dos soldados, que tanto gostava ver descrita nos livros, faltou-lhe na hora “H”. Não por grave ameaça, mas por receio de ser abandonado por seus pares. O que inevitavelmente acabou ocorrendo ante o fracasso da empreitada.

No fim, amargurado, deixou de frequentar o clube e os livros sobre guerra. Introspectivo, voltou-se para a literatura. Sua melancólica vaidade era saber de cor trecho da obra de Fernando Pessoa que mais lhe tocava a alma:

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó [fantasia, máscara] que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era, e não desmenti, e perdi-me…

Mas atenção, não olhe para a vida do Marechal com a indiferença soberba de quem tolera um pombo na calçada. Ele é produto de um sistema do qual você e eu fazemos parte.

É um enredo que se repete em diversas arenas, com líderes de todos os matizes. Ministros, empresários, jornalistas, advogados, chefes religiosos, médicos, CEOs e magnatas do mundo tech são, apressadamente, elevados pela sociedade a categoria de sábio, apenas por possuírem um bom conhecimento descritivo, propositivo e conceitual. Porém, embora guardem certo parentesco, inteligência e sabedoria não se confundem.

Sabedoria é como você usa o conhecimento na “hora do vamos ver”. É como você incorpora informações na vida real. É saber converter o que aprendeu em aplicações que melhoram as nossas vidas. É fazer escolhas razoáveis e proporcionais em cenários de incerteza e situações moralmente complexas.

Diferentemente da inteligência, a sabedoria é um conhecimento que emerge da experiência, dos relacionamentos, dos desafios vividos. Não é ter fórmulas prontas, mas sim fazer julgamentos levando em conta o contexto de cada situação. É saber navegar pela incerteza e, mesmo em momentos de turbulência, não perder o discernimento.

É desse tipo de líder que uma sociedade precisa para evoluir.

A complexidade do mundo nunca se mostrou tão evidente. Os problemas relevantes têm múltiplas interconexões. Tudo acontece rápido. O excesso de informações embaça a vista e atrapalha a reflexão.

Conquistas profissionais, capacidade intelectual e sucesso financeiro não compram clareza de pensamento, bom senso e lucidez. Sabedoria só emana quando se consegue transmutar tudo isso em boas decisões, em solução de problemas complexos. Bons líderes são formados por seleção natural, adaptação e evolução e não pela quantidade de linhas no currículo.

O réquiem do Marechal, com ressonância em fatos reais, alerta sobre a importância da formação de nossos futuros líderes. Fundamental para que não tenhamos que repetir o lamento de T.S Eliot, feito em 1934:“Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que perdemos em informações?”[1]

[1]Where is the wisdom we have lost in knowledge? Where is the knowledge we have lost in information? — T.S. Eliot, “Choruses from ‘The Rock”, 1934.

--

--

Sergio Bruno C. Fernandes
Sergio Bruno C. Fernandes

Written by Sergio Bruno C. Fernandes

Systems Thinker. Public Prosecutor (MPDFT, Federal District, Brasil). Master in Laws (LLM), Cornell University (Ithaca, NY). Trying to think clearly.

No responses yet