Regras Básicas de Dominação e Submissão — A Problematização

2o Armário
10 min readAug 24, 2020

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Semana passada me deparei com uma lista de “regras básicas” de uma relação D/s postado por um usuário em um grupo de BDSM no qual faço parte no Facebook.

Relação D/s significa Dominador e submisso. Sim, Dominador com “D” maiúsculo pois, no role playing, o submisso é posse e estará sempre abaixo de seu Dono.

O brat aqui fica todo atiçado de vontade de escrever “dominadorzinho”, com letra minúscula. Depois apanho e não sei por quê.

A lista parece ter sido escrita no fim do século passado. De fato, rolavam várias como essa na época da internet discada e linhas de pensamento como esta são cheias de problemas. Primeiro porque parece tentar enquadrar toda e qualquer relação D/s em um padrão, ignorando várias nuances, estilos, culturas, gêneros, etc.

A verdade é que, na prática, as regras só serão definidas mesmo entre os parceiros em uma relação. A única coisa que é escrita em pedra mesmo é o SSC, sigla que significa São, Seguro e Consensual. Até isso na verdade as vezes se quebra dependendo dos parceiros.

[img: pedra quebrada]

A lista na íntegra é essa:

REGRAS BÁSICAS DE DOMINAÇÃO E SUBMISSÃO

1° Nunca diga para seu “Dono” a palavra “VOCÊ” e sim a palavra “SENHOR” quando for se dirigir à Ele…

2° Procure saber dos fetiches de seu Dono, para que você possa corresponder às ordens e desejos Dele.

3° Obedeça atentamente às ordens dadas por Ele.

4° Nunca adicione Dominadores sem a Permissão Dele.

5° Nunca negocie com outros Dominadores se já estiver sob o domínio de seu Dono, isso é extremamente errado.

6° Procure ser atenciosa e amorosa com Ele, assim Ele terá mais carinho e amor por você. Porque uma sub que não é atenciosa e amorosa, a relação entre Dom/sub será difícil e provavelmente acabará cedo demais.

7° Diga sempre a verdade à Ele, por mais que doa… Assim Ele terá mais credibilidade em você.

8° Seja sincero e honesto nas respostas que Ele perguntar à você.

9° Se Ele te disser alguma coisa, ou perguntar, tenha em mente as respostas: “Sim Senho”’ e/ou “Não Senhor”.

10° Em e-mails, chats ou msn, quando for se dirigir à Ele, use sempre “Sr”.

11° Em despedidas, use: “Beijos nos Seus pés”, mesmo que não seja podólatra, é um sinal de submissão, ou Beijo em suas mãos se não for submissa dele ainda, o respeito é fundamental em qualquer circunstância.

12° Mostre o seu lado feminino e submissa à Ele.

13° Em seu perfil de SM, se for falar de seu Dono, use: “Meu Dono”, “Meu Senhor”.

14° Se já estiver encoleirada, em seu perfil a coleira virtual com as inicias Dele e seu nick dentro da chave {…… } _____ DONO

15º Seja sempre Leal e sincera com seu Dono, isso lhe trará diversos benefícios na relação Dom/Sub

Autor desconhecido (retirado da internet)

Só pelo fato do gênero do submisso estar sempre no gênero feminino na lista já me soa meio sexista. Talvez até goreana. Já ouviu falar de Gor? É uma longa história…

Vou repetir a lista abaixo adicionando meus comentários, trazendo um pouco de informação em cada ponto.

“1° Nunca diga para seu ‘Dono’ a palavra ‘VOCÊ’ e sim a palavra ‘SENHOR’ quando for se dirigir à Ele…”

Sim. É comum o parceiro que está em posição de submisso se dirigir ao outro como “Senhor”, portanto não está errado. Mas não é regra. Existem Dominadores que preferem outros tratamentos.

“2° Procure saber dos fetiches de seu Dono, para que você possa corresponder às ordens e desejos Dele.”

E viceversa. Dono, procure saber dos fetiches de seu submisso, e de seus limites.

Como diria sua mãe: não quebre o brinquedo se quiser brincar mais vezes!! Não se esqueça que é um ser humano ali. Para que seu sub corresponda suas ordens de maneira correta ele precisa querer estar ali.

Se o tesão for unilateral demais pro lado do “Dom”, seria bom abrir uma conversa com ele.

“3° Obedeça atentamente às ordens dadas por Ele.”

Bom, se é uma relação D/s, é isso aí rs.

Mas se por acaso você não curte muito receber ordens, talvez seja melhor avisar ao seu parceiro que o seu “D” do BDSM é muito mais voltado para uma dinâmica da Disciplina do que da Dominação.

No caso da Disciplina, o Top (quem faz, quem pune, etc) não se chama Dominador pois aqui ele não manda em nada. Aqui é o Domador, ou Tamer, que participa da brincadeira de cão e gato com seu Bottom (quem recebe, quem leva tapa, etc), que aqui não é submisso pois nunca vai acatar nenhuma ordem e vai provocar o Tamer constantemente, que é o Brat, cuja tradução literal seria algo como “ Peste” ou “ Pentelho”, nenhum dos dois termos soam muito bem na nossa língua rs.

As duas dinâmicas são igualmente legais de se praticar mas precisam ser acordadas no início. Se você for brat e entrar numa relação D/s, seu parceiro pode ficar frustrado por você não corresponder às expectativas dele e encerrar a sessão ali.

“4° Nunca adicione Dominadores sem a Permissão Dele.”

Depende, isso não é regra entre todas as relações D/s. Claro que os parceiros podem entrar em acordo e adotar essa regra.

Uma troca de ideias com outras pessoas do meio BDSM é comum e bastante benéfica. Onde comprar acessórios, descobrir uma prática nova, ouvir um relato excitante que atiça a criatividade e até mesmo ter alguém conhecido pra pedir ajuda se caso você entrar numa sessão com uma pessoa abusiva.

“5° Nunca negocie com outros Dominadores se já estiver sob o domínio de seu Dono, isso é extremamente errado”.

Não sei se é a minha “bratice” que me dá vontade de fazer exatamente o oposto rs.

Se ambos os lados entraram em comum acordo que só vão brincar entre eles, então está correto. Inclusive é indicado que um iniciante estabeleça uma relação mais fixa com um parceiro sim, se soltando com outros após estar mais experiente. Mas não é obrigatório.

“6° Procure ser atenciosa e amorosa com Ele, assim Ele terá mais carinho e amor por você. Porque uma sub que não é atenciosa e amorosa, a relação entre Dom/sub será difícil e provavelmente acabará cedo demais.”

Caro Dominador, procure também ser atencioso e amoroso com ela, ou elE, se caso seu submisso se identificar como homem. Cara Dominadora também.

Existem muitos “dominadores”, entre aspas e com letra minúscula, que se auto intitulam dessa forma como se dissesse “não beijo, não faço carinho e nem olho na sua cara enquanto te esculacho”. Francamente, como alguém consegue se sentir seguro em se entregar a um dominador que não estabelece um mínimo de conexão com o sub? E aqueles doms que nem um aftercare faz depois pro sub aterrissar com segurança do sub space?

Vamos aqui a um pequeno e rápido glossário de palavras gringas e chiques:

SUB SPACE: estado psicológico que um submisso entra durante uma sessão em que ele se desliga da “realidade” e se entrega totalmente. Posso descrever como uma sensação de estar flutuando ou de tontura misturado com uma euforia. Bem intenso. “Descer” desse estado requer uma atenção especial do Dominador. Tem um artigo excelente sobre esse tema aqui (em inglês): https://helloflo.com/what-is-subspace/.

AFTERCARE: após uma sessão, o Dominador “ajuda” o sub a “voltar” a sua normalidade. É como uma recompensa pelo “trabalho árduo”. Pode ser um abraço, um carinho, um copo d’água, um banho, uns beijos, etc.

Claro, mais uma vez, existem casos e casos. Existem submissos mais experientes que não esperam menos de um Dominador e não ligam pra aftercare, normalmente quando ambos já possuem uma relação D/s juntos a mais tempo. Mas tratar isso como regra é um pouco perigoso tanto fisicamente quanto psicologiamente, principalmente para os que estão iniciando.

“7° Diga sempre a verdade à Ele, por mais que doa… Assim Ele terá mais credibilidade em você.”

“8° Seja sincero e honesto nas respostas que Ele perguntar à você.”

Juntei esses dois porque, dessa lista, são os únicos tópicos que eu concordo plenamente sem tirar nem pôr.

Comunicação! Tudo na vida pra dar certo precisa que haja uma boa comunicação!

E uma sessão ou relação BDSM não poderia ser diferente. Seja uma relação D/s, Sado/Maso, Tamer/Brat, Rigger/Rope Bunny, etc. TEM QUE FAALR quando passar de algum limite, quando não estiver bom, quando doer além da conta, etc.

“9° Se Ele te disser alguma coisa, ou perguntar, tenha em mente as respostas: Sim Senhor e/ou Não Senhor.”

“10° Em e-mails, chats ou msn, quando for se dirigir à Ele, use sempre Sr.”

Detalhe de como esse texto é ultrapassado: o autor menciona o MSN. Alguém ainda usa o MSN?

Estes itens parecem ser os mesmos que o primeiro item. Chame seu Dominador como ele preferir ser chamado, seja de Senhor, Senhora ou Docinho de Abóbora.

“11° Em despedidas, use: ‘Beijos nos Seus pés’, mesmo que não seja podólatra, é um sinal de submissão, ou ‘Beijo em suas mãos’ se não for submissa dele ainda, o respeito é fundamental em qualquer circunstância.”

Eu que sou podólatra adorei, mas também não é regra não.

Interessante o texto mencionar podolatria pois existe um meme dentro do meio BDSM sobre quem afinal é o top dentro dessa prática. Apesar do podólatra estar geralmente associado à figura do submisso, talvez por motivos culturais vindos da religião cristã por conta do lavapés, muitos têm um papel mais ativo na prática. Eu mesmo não me considero um podo submisso.

Amém igreja.

Inclusive não é raro encontrar cenas de “tied and feet worshipped” na internet, uma cena que mescla bondage (o ato de amarrar) com foot worship (o ato de lamber e chupar os pés, nesse caso de forma bem selvagem, “tarada”, numa simulação da pessoa amarrada não consentir em ter os pés lambidos. Bom, pornografia né? Fantasia.) e um pouco de tickling (cócegas). O paraíso da maioria dos podólatras é poder curtir os pés de outra pessoa sem que ela interfira, portanto, não sei se cabe uma “etiqueta” de bottom aqui. Muitos que praticam o tickling como tops inclusive são podólatras.

Também é comum o Dominador mandar o submisso lamber seus pés ou seus calçados dentro do D/s, mas não significa que ambos sejam podólatras. É apenas uma forma de dominação.

“12° Mostre o seu lado feminino e submissa à Ele.”

Ou ainda, mostre ao seu Dono seu lado MASCULINO e SUBMISSO à ele.

Então, pra mim, o grande problema dessa lista é ela ignorar completamente a existência de submissos masculinos. Provavelmente o autor só considerou como praticantes de BDSM homens heterossexuais dominadores e mulheres submissas (o que não é raro infelizmente). Na postagem de onde retirei essa lista inclusive vi alguns comentários de Dommes bastante incomodadas.

É comum, até mesmo no meio gay, associar submissão à feminilidade, fragilidade, ao passivo, etc. O masculino que é sempre o dominador e o agressivo. Nem preciso dizer o quanto que esses estereótipos são nocivos né? Ao homem que não tem muito essa vibe de Dominador à se forçar a ser e à mulher que é forçada por conta dessa cultura a ser submissa.

Nocivo também ao homem que se sente forçado a performar uma masculinidade bizarra de filme pornô para exercer seu lado Dominador e ao homem que tem fantasias de submissão mas não se permite pois precisa ser “homem”.

Olha, acho que tá na hora de termos mais “homens masculinos” como submissos no mercado de pornografia, pra balancear isso. Uma das coisas mais difíceis de achar por exemplo é conteúdo pornográfico de BDSM onde um modelo mais com perfil “ursão” está na posição de bottom, geralmente ele está sempre na posição de dominação, com um submisso twink, mais feminino. Ora, por que não inverter isso?

E sabiam que o Dominador pode comandar seu submisso a fodê-lo? Sim, ser ativo ou passivo no sexo anal não tem nada a ver com ser Dominador ou submisso, assim como também não tem nada a ver com ser feminino ou masculino.

“13° Em seu perfil de SM, se for falar de seu Dono, use: ‘Meu Dono’, ‘Meu Senhor’.”

E se houver ainda mais alguma dúvida sobre esse tópico, volte aos itens 1, 9 ou 10.

“14° Se já estiver encoleirada, em seu perfil a coleira virtual com as inicias Dele e seu nick dentro da chave {…… } _____ DONO”

A coleira virtual é um código por escrito que é colocado no nick na internet para designar que aquela pessoa é submissa em uma relação D/s e “posse” de alguém. Ele já foi bastante utilizado, principalmente em redes sociais voltadas para sexo e BDSM (Fetlife, Recon, etc) mas está caindo em desuso.

Você escreve seu nick em caixa baixa dentro de chaves, em seguida digita o underline e as iniciais de seu Dono. Exemplo:

Meu nick é Red e sou submisso do Dom Blue, então vou escrever em meu nick como {red}_DB.

Acho que não preciso avisar que se seu parceiro Dominador te exigir que você use esse código em seu Facebook pessoal contra a sua vontade talvez seja melhor pedir ajuda né?

“15º Seja sempre leal e sincera com seu Dono, isso lhe trará diversos benefícios na relação Dom/Sub.”

Esse item é um resumo de vários outros itens. Ah, seja leal e sincerO, se você for do gênero masculino, seja você cis ou trans.

O Dominador precisa ser leal e sincero também. Não ponho aqui lealdade como em um casamento cristão monogâmico, falo como estabelecer uma relação de confiança. Um dono que não é leal não se importa com seu consentimento e não trará segurança. Assim como o sub que não for leal, que não avisa que não está se sentindo bem por exemplo. Como falado anteriormente, comunicação sempre.

Mais uma vez, as regras de qualquer relação dentro do BDSM no final são estabelecidas mesmo entre os participantes dela. O indicado é que se conheçam as nomenclaturas e boas práticas (uso de safeword, tipos de amarras seguras, etc), para auxiliar na comunicação e na brincadeira.

O mundo é muito diverso e assim são também as relações. Portanto, padronizar e escrever uma série de lista de regras básicas deixa subentendido para quem está entrando nesse mundo que quem não as seguirem não estará apto a praticar BDSM.

Aprendam o básico, estabeleçam as regras entre si depois e divirtam-se.

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