A entrevista profética de Willy Aureli com Carolina Maria de Jesus em 1940
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Tema: a primeira entrevista de Carolina Maria de Jesus, dada ao jornalista Willy Aureli, da Folha da Manhã (SP).
Data de publicação: 25 de fevereiro de 1940, dezoito anos antes de Carolina ser “descoberta” como escritora pelo também jornalista Audálio Dantas.
A “previsão” de Willy Aureli: “É possível que ainda se torne célebre…” (última frase da matéria).
Primeiro poema de Carolina publicado na mídia: O Colono e o Fazendeiro (reproduzido na matéria).
Início da relação de Carolina com a literatura: 1937.
Primeiro incentivador de Carolina: Luís Catapano (nome desconhecido, revelado em entrevista para a Tribuna da Imprensa em 1960).
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Apresentação
No final da década de 30 do século XX, uma mulher negra, alta, jovem, bonita e simpática era conhecida no meio jornalístico devido a seu costume estranho: percorrer as redações de jornais da cidade de São Paulo apresentando-se como poetisa e oferecendo-se para uma entrevista.
Tornou-se motivo de chacota nas redações. Não tinha recomendação de ninguém conhecido ou importante, não havia publicado livro algum de poesia, e seus poemas eram simples, simples demais.
Até que, finalmente, um jornalista acolheu a ilustre desconhecida e redigiu a matéria Carolina Maria, poetiza preta. O nome do jornalista: Willy Aureli. A matéria saiu em 25 de fevereiro de 1940 na página III do suplemento do jornal Folha da Manhã (SP).
Essa matéria é histórica por vários motivos:
(1) Contém o primeiro registro de um poema de Carolina Maria de Jesus;
(2) Traz a primeira foto da futura autora;
(3) A frase final de Willy Aureli é profética, como poucas: “É possível que ainda se torne célebre…”.
Abaixo, a matéria de Willy Aureli, com a cota habitual de preconceito que caracterizava aquela época.
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Carolina Maria, poetisa preta
Willy Aureli.
[O primeiro parágrafo encontra-se ilegível por causa da superposição de textos.]
[…] todas as vezes que […] de exótico” surge nos umbrais da redação, o secretário do jornal, circunvagando o olhar pelas mesas, trata de me descobrir a fim de “empurrar” o artigo para o meu lado…
― Você entende dessas coisas ― diz, a título de explicação.
E eu, por “entender dessas coisas”, lido com os fatos mais disparatados deste planeta, desses que chovem, quando um mortal menos o espera, pela redação adentro…
Sábado, por exemplo, apareceu uma poetisa. É bom que os leitores saibam: os jornalistas têm verdadeiro pavor às mulheres metidas a literatas, poetisas, declamadoras! Portanto, à voz de que uma fazedora de versos estava à espera de ser recebida produziu-se um vácuo imediato.
Eu vinha entrando nesse momento, e o secretário, que estava de saída, com um sorriso demasiadamente camarada interpelou-me:
― Você quer atender uma senhora?
― Pois não…
A senhora foi introduzida. Dois olhos rutilando nas órbitas brancas, duas genuínas jabuticabas irrequietas a nadar no leite dos bulbos. Mais abaixo, dentro de um negror profundo, um sorriso alvar, um traço claro numa noite escura: os dentes níveos numa boca jovem.
Em suma, um belo espécime de mulher negra. Boa estatura, elegante mesmo, porte rainha Sabá, assim como a descreve [H. Rider] Haggard [autor de As Minas do Rei Salomão]…
― Sou poetisa…
― Sente-se, por favor…
― Faço versos… Ninguém, porém, me leva a sério!
― Como assim?
― Ando pelas redações, e quando sabem que sou preta mandam dizer que não estão…
Eis-me às voltas com meu “caso exótico” e trato de me sair às mil maravilhas, ainda mais que o horário aperta e tenho encontro marcado.
― São uns ingratos…
― O Sr. quer ver alguma poesia de minha lavra?
― Conceda-nos essa honra…
Exibe uns papéis, um caderno, uns recortes de revistas. Lê e declama. Com naturalidade e graça, ótima dicção, tudo de mistura com o sorriso que é um raio de luz em tamanhas trevas…
*
Chama-se Carolina Maria, tem 26 anos de idade, nasceu em Sacramento, Minas Gerais. Das Alterosas veio para a pauliceia como criada de servir e, logo depois, evoluindo, acabou numa fábrica, onde ainda se encontra trabalhando.
― Só andei dois anos na escola. Agora nem posso ler.
― Como assim?
― Sei demais, e tudo quanto leio me estorva…
Não há a menor fanfarronice ou gabolice, tão próprias dos pretos pernósticos. Diz tudo com a maior franqueza e ingenuidade.
― Sei não… minha cabeça está cheia de versos. Brotam sozinhos, e eu coloco-os no papel… Outros aproveitam do meu saber. Há discos com poesias de minha lavra. Mas o que adianta reclamar? Eu produzo e outros lucram…
Delicia-nos com uns versos: cantos amorosos, ode ao Lampião, tristezas de namorados, tudo muito simples, muito puro, sincero; fala direta ao coração dos humildes.
Gostamos do Colono e o fazendeiro que é o seguinte:
O COLONO E O FAZENDEIRO
Diz o brasileiro
Que acabou a escravidão…
Mas o colono sua o ano inteiro
E nunca tem um tostão!
*
Se o colono está doente
É preciso trabalhar!
Luta o pobre, no sol quente
E nada tem para guardar…
*
Cinco da madrugada:
Toca o fiscal a corneta
Despertando o camarada
Pra ir fazer a colheita.
*
Chega à roça. O Sol nasce.
Cada um na sua linha
Suando. E para comer?
Só feijão e farinha…
*
Nunca pode melhorar
Esta negra situação.
Carne não pode comprar
Pra não dever pro patrão!
*
Fazendeiro ao fim do mês
Dá um vale de cem réis.
Artigo que custa seis
Vende ao colono por dez!
*
Colono não tem futuro
Trabalha todo o dia.
O pobre não tem seguro
E nem aposentadoria…
*
Ele perde a mocidade
A vida inteira no mato
E não tem sociedade!
Onde está o seu sindicato?
*
Ele passa o ano inteiro
Trabalhando. Que “grandeza”…
Enriquece o fazendeiro
E termina na pobreza!
*
― Que horas tem aí? ― pergunta a poetisa.
― Meio-dia e meia…
― Céus! Tenho que me apressar. Está na hora da fábrica apitar…
― Sempre rimando.
― Está em mim, sou feita assim. Tá vendo?
Prometeu regressar. Sorriu satisfeita quando o fotógrafo sincronizou a chapa. Cumprimentou a todos com um único gesto e saiu, por onde entrara, deixando uma esteira de simpatia.
É possível que ainda se torne célebre…
* * *
Seriam necessários mais 18 anos (e outro jornalista) para a profecia se concretizar.
Na foto da matéria, o sorriso que cativou o jornalista Willy Aureli.
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A entrevista para a Tribuna da Imprensa (1960)
Em 1960, no auge da fama, ao dar uma entrevista para o jornal A Tribuna da Imprensa, Carolina revelou quem a havia incentivado a iniciar o circuito pelos jornais até chegar à Folha da Manhã, três anos depois.
Não se conhece quem seja esse benfeitor de Carolina de Jesus (e da literatura brasileira). O único resultado na busca pelo nome, na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional, parece levar à pessoa referida por Carolina: alguém que vivia no bairro da Consolação em São Paulo, no ano da entrevista com Willy Aureli. A referência encontra-se na seção “Crônica religiosa”, item “Cúria metropolitana”.