A entrevista profética de Willy Aureli com Carolina Maria de Jesus em 1940

Sérgio Barcellos Ximenes
6 min readJan 5, 2020

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Tema: a primeira entrevista de Carolina Maria de Jesus, dada ao jornalista Willy Aureli, da Folha da Manhã (SP).

Data de publicação: 25 de fevereiro de 1940, dezoito anos antes de Carolina ser “descoberta” como escritora pelo também jornalista Audálio Dantas.

A “previsão” de Willy Aureli: “É possível que ainda se torne célebre…” (última frase da matéria).

Primeiro poema de Carolina publicado na mídia: O Colono e o Fazendeiro (reproduzido na matéria).

Início da relação de Carolina com a literatura: 1937.

Primeiro incentivador de Carolina: Luís Catapano (nome desconhecido, revelado em entrevista para a Tribuna da Imprensa em 1960).

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Apresentação

No final da década de 30 do século XX, uma mulher negra, alta, jovem, bonita e simpática era conhecida no meio jornalístico devido a seu costume estranho: percorrer as redações de jornais da cidade de São Paulo apresentando-se como poetisa e oferecendo-se para uma entrevista.

Tornou-se motivo de chacota nas redações. Não tinha recomendação de ninguém conhecido ou importante, não havia publicado livro algum de poesia, e seus poemas eram simples, simples demais.

Até que, finalmente, um jornalista acolheu a ilustre desconhecida e redigiu a matéria Carolina Maria, poetiza preta. O nome do jornalista: Willy Aureli. A matéria saiu em 25 de fevereiro de 1940 na página III do suplemento do jornal Folha da Manhã (SP).

Essa matéria é histórica por vários motivos:

(1) Contém o primeiro registro de um poema de Carolina Maria de Jesus;

(2) Traz a primeira foto da futura autora;

(3) A frase final de Willy Aureli é profética, como poucas: “É possível que ainda se torne célebre…”.

Folha da Manhã (SP), 25 de fevereiro de 1940, Suplemento, página III — http://acervo.folha.uol.com.br/fdm/1940/02/25/1/

Abaixo, a matéria de Willy Aureli, com a cota habitual de preconceito que caracterizava aquela época.

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Carolina Maria, poetisa preta

Willy Aureli.

[O primeiro parágrafo encontra-se ilegível por causa da superposição de textos.]

[…] todas as vezes que […] de exótico” surge nos umbrais da redação, o secretário do jornal, circunvagando o olhar pelas mesas, trata de me descobrir a fim de “empurrar” o artigo para o meu lado…

― Você entende dessas coisas ― diz, a título de explicação.

E eu, por “entender dessas coisas”, lido com os fatos mais disparatados deste planeta, desses que chovem, quando um mortal menos o espera, pela redação adentro…

Sábado, por exemplo, apareceu uma poetisa. É bom que os leitores saibam: os jornalistas têm verdadeiro pavor às mulheres metidas a literatas, poetisas, declamadoras! Portanto, à voz de que uma fazedora de versos estava à espera de ser recebida produziu-se um vácuo imediato.

Eu vinha entrando nesse momento, e o secretário, que estava de saída, com um sorriso demasiadamente camarada interpelou-me:

― Você quer atender uma senhora?

― Pois não…

A senhora foi introduzida. Dois olhos rutilando nas órbitas brancas, duas genuínas jabuticabas irrequietas a nadar no leite dos bulbos. Mais abaixo, dentro de um negror profundo, um sorriso alvar, um traço claro numa noite escura: os dentes níveos numa boca jovem.

Em suma, um belo espécime de mulher negra. Boa estatura, elegante mesmo, porte rainha Sabá, assim como a descreve [H. Rider] Haggard [autor de As Minas do Rei Salomão]…

― Sou poetisa…

― Sente-se, por favor…

― Faço versos… Ninguém, porém, me leva a sério!

― Como assim?

― Ando pelas redações, e quando sabem que sou preta mandam dizer que não estão…

Eis-me às voltas com meu “caso exótico” e trato de me sair às mil maravilhas, ainda mais que o horário aperta e tenho encontro marcado.

― São uns ingratos…

― O Sr. quer ver alguma poesia de minha lavra?

― Conceda-nos essa honra…

Exibe uns papéis, um caderno, uns recortes de revistas. Lê e declama. Com naturalidade e graça, ótima dicção, tudo de mistura com o sorriso que é um raio de luz em tamanhas trevas…

*

Chama-se Carolina Maria, tem 26 anos de idade, nasceu em Sacramento, Minas Gerais. Das Alterosas veio para a pauliceia como criada de servir e, logo depois, evoluindo, acabou numa fábrica, onde ainda se encontra trabalhando.

― Só andei dois anos na escola. Agora nem posso ler.

― Como assim?

― Sei demais, e tudo quanto leio me estorva…

Não há a menor fanfarronice ou gabolice, tão próprias dos pretos pernósticos. Diz tudo com a maior franqueza e ingenuidade.

― Sei não… minha cabeça está cheia de versos. Brotam sozinhos, e eu coloco-os no papel… Outros aproveitam do meu saber. Há discos com poesias de minha lavra. Mas o que adianta reclamar? Eu produzo e outros lucram…

Delicia-nos com uns versos: cantos amorosos, ode ao Lampião, tristezas de namorados, tudo muito simples, muito puro, sincero; fala direta ao coração dos humildes.

Gostamos do Colono e o fazendeiro que é o seguinte:

O COLONO E O FAZENDEIRO

Diz o brasileiro

Que acabou a escravidão…

Mas o colono sua o ano inteiro

E nunca tem um tostão!

*

Se o colono está doente

É preciso trabalhar!

Luta o pobre, no sol quente

E nada tem para guardar…

*

Cinco da madrugada:

Toca o fiscal a corneta

Despertando o camarada

Pra ir fazer a colheita.

*

Chega à roça. O Sol nasce.

Cada um na sua linha

Suando. E para comer?

Só feijão e farinha…

*

Nunca pode melhorar

Esta negra situação.

Carne não pode comprar

Pra não dever pro patrão!

*

Fazendeiro ao fim do mês

Dá um vale de cem réis.

Artigo que custa seis

Vende ao colono por dez!

*

Colono não tem futuro

Trabalha todo o dia.

O pobre não tem seguro

E nem aposentadoria…

*

Ele perde a mocidade

A vida inteira no mato

E não tem sociedade!

Onde está o seu sindicato?

*

Ele passa o ano inteiro

Trabalhando. Que “grandeza”…

Enriquece o fazendeiro

E termina na pobreza!

*

― Que horas tem aí? ― pergunta a poetisa.

― Meio-dia e meia…

― Céus! Tenho que me apressar. Está na hora da fábrica apitar…

― Sempre rimando.

― Está em mim, sou feita assim. Tá vendo?

Prometeu regressar. Sorriu satisfeita quando o fotógrafo sincronizou a chapa. Cumprimentou a todos com um único gesto e saiu, por onde entrara, deixando uma esteira de simpatia.

É possível que ainda se torne célebre…

* * *

Seriam necessários mais 18 anos (e outro jornalista) para a profecia se concretizar.

Na foto da matéria, o sorriso que cativou o jornalista Willy Aureli.

A primeira foto de Carolina Maria de Jesus (sem créditos na matéria da Folha da Manhã)

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A entrevista para a Tribuna da Imprensa (1960)

Em 1960, no auge da fama, ao dar uma entrevista para o jornal A Tribuna da Imprensa, Carolina revelou quem a havia incentivado a iniciar o circuito pelos jornais até chegar à Folha da Manhã, três anos depois.

Tribuna da Imprensa (Rio), 8/11/1960, número 2289, página 13, última coluna (em Carolina no Rio: descobri que minha doença era verso) — http://memoria.bn.br/DocReader/154083_02/3394

Não se conhece quem seja esse benfeitor de Carolina de Jesus (e da literatura brasileira). O único resultado na busca pelo nome, na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional, parece levar à pessoa referida por Carolina: alguém que vivia no bairro da Consolação em São Paulo, no ano da entrevista com Willy Aureli. A referência encontra-se na seção “Crônica religiosa”, item “Cúria metropolitana”.

“Correio Paulistano” (São Paulo, SP), 23/8/1940, número 25.910, página 8, última coluna — http://memoria.bn.br/docreader/090972_09/2863

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Sérgio Barcellos Ximenes

Escritor. Pesquisador independente. Focos: história da literatura brasileira e do futebol, escravidão e técnica literária.