1… 2… 3…

o som do início de tudo

Sillas Gomes
3 min readJun 26, 2019

eu sou feito de tempo.

nascido de música e dança. sou pés e mãos zombeteiros. voz e tambor. som tremendo o ar. corpo tremendo o chão. não me lembro quando ou porquê, mas em algum momento perdi o compasso. e venho já há muitos tempos buscando de volta o meu ritmo primário.

1… 2… 3…
o som do início de tudo.

venho de longe, já um pouco cansado. ritmo quebrado, corpo responde mal. parei aqui um instante pra respirar. me olhar de novo. pra ver se ainda caibo num espelho. estou recontando o que eu perdi ou guardei depois de tanta andança. conto agora a conta de quantos eus ainda trago comigo.

eu sou lua.

e não sou de hoje. sou velha e criança. quando estou nova, não dá pra me ver. estou em mim, a casa, me alimentando da vida do sol. então eu vou crescendo e regando a terra de luz. pouco a pouco. mais e menos. e ainda não dá pra me ver. porque minha luz é toda sol. eu sou sempre lua, mas é sol tudo que se pode ver. agora, se mesmo assim você pode me ver…

sou sol.

sou vida. sou brilho e calor. Não, não sou fogo. conheço bem o fogo e sei que não sou fogo. sou o sopro que faz o fogo acordar. giro, rodopio, balanço… eu chamo o fogo pra dançar. e danço com ele. e suas cores, e suas saias, e suas chamas… sim, eu danço com as chamas. e é nelas que se aquece o meu folego. e o fogo sobe quando o folego aumenta, certo…? pois com o fogo eu aumento. sou puro movimento.

sou vento.

eu sou a fome do fogo. na nossa dança ele consome. quanto mais dança, mais fome. quanto mais fome, mais come. até não ter mais o que comer. mas eu sou vida. fogo não vive sem ter o que comer. e se come tudo, nada mais vive. nem o fogo. nem eu. conheço o fogo. e quando a fome é maior que a comida, eu venho pra acalmar.

sou água.

sou o fim da seca. mato a sede da terra. nasço da terra com o alimento. afasto a fome. fria como a cobra. fluida como as curvas do rio. poderosa como as ondas do mar. sublime como as ondas de sol do luar. sou a fonte do sustento no caminho longo. sou a fonte do reinado da casa que me habita. ondulo e oscilo como òkòtó. carregando e descarregando energia elétrica. levando e trazendo. empurrando e puxando. sou lua. atravesso o mundo de um lado a outro. correndo bem devagarinho. mudando a cada segundo. não sou a mesma há muitas eras. estou sempre balançando como as filhas da terra. mas não sou terra.

sou uma árvore bonita.

respondo ao vento me curvando. o vento passa. me levanto e ainda a sinto vento. e ainda balanço. sou a magia de uma abraço apertado, como o dos galhos das árvores. que respiram juntas. que carregam em si cura e fartura. que isolam os mistérios entre o tapete de folhas sobre os galhos e o solo sagrado onde moram as raízes. sou o mundo alheio a tudo. sou o tempo da mata. caça, pesca, colheita e feitiço. sou o corpo em silêncio, fritando de energia. eu sou morte. fluxo. conexão em linha direta de um ser pra outro.

sou vibração.

nocivo como serpente assustada, me chacoalho em desespero. buscando de volta meu ritmo primário. o som do início de tudo.

1… 2… 3…

tantas frequências tentei em outros tempos… tantas respondem ainda…
tantas canções aprendi em outros tempos… tantas respondem ainda…
quantos baques tocarei em outros tempos… quantos não ensaiei ainda…
quantos eus serei em outros tempos… quantos não sou ainda…

mas estou aqui. e ainda sou voz e tambor. som tremendo o ar. corpo tremendo o chão. e ainda danço. e canto. e conto.

1… 2… 3…

o som do início de tudo

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