CAPACITISMO: O QUE É, ONDE VIVE, COMO SE REPRODUZ?

Sidney Andrade
8 min readDec 1, 2016

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Descrição da imagem: Ícone da Acessibilidade Universal, uma figura humana preta simples, braços e pernas estendidos tocando o perímetro de um círculo, mãos e cabeça, em azul claro.

Texto publicado originalmente em 03 de dezembro de 2015, aqui.

Sou instrutor do laboratório de informática do Instituto de atendimento a pessoas cegas de minha cidade, recebo gente das mais diversas faixas etárias, inclusive crianças e pré-adolescentes que precisam dos computadores e da acessibilidade que eles oferecem como apoio pedagógico para, de certo modo, tentar compensar a falta de acessibilidade experimentada pelos alunos com deficiência visual nas escolas regulares. Sendo assim, não raro discuto com eles, durante o processo, sobre os temas que precisam pesquisar.

Com este aluno em específico, há dois dias, conversei sobre mudanças climáticas, ao ponto de desembocarmos no interesse dele sobre se o mundo realmente poderia acabar por causa delas. Muito curioso, o menino de 12 anos tem baixa-visão, isto é, sua capacidade visual não é nula, mas está aquém do considerado normal, necessitando, por causa disso, DE FERRAMENTAS PARA AMPLIAÇÃO, UMA VEZ QUE ÓCULOS COMUNS NÃO SÃO SUFICIENTES PARA LEITURA OU VISUALIZAÇÃO DE DETALHES, POR EXEMPLO. A condição visual dele é degenerativa e começou muito cedo, o que significa que o garoto vem tendo que lidar com a sua deficiência há muito mais tempo do que eu. Acho que a fala dele teria, inclusive, muito mais a acrescentar do que a minha.

Acabou que, ao tratarmos da possibilidade do fim, chegamos, por consequência, ao questionamento do início do planeta, o que nos levou a uma interessante discussão sobre o Big Bang, etc. e tal. Contente com a sede dele por conhecimento, prometi que levaria, no dia seguinte, um episódio da série Cosmos, apresentada pelo divulgador científico norte-americano neil degrasse Tyson, que reapresenta e atualiza para os dias de hoje as discussões científicas feitas na série homônima da década de 1980, então apresentada pelo tão famoso astrofísico Carl Sagan.

O garoto, reitero, tem baixa-visão, de modo que conseguia desfrutar, mesmo com alguma dificuldade, do espetáculo de imagens que a série mostra, ao ilustrar conceitos como Supernovas, Galáxias distantes, planetas em formação. Era gostoso sentir a nítida empolgação de uma criança descobrindo a infinitude do universo, estampada na voz, nas perguntas, no jeito que ele se espantava diante de conceitos com tamanha grandeza. Até que, em metade do episódio, chegamos ao ponto crítico. Transbordando de empolgação pelas novidades, depois que eu o informo de que, além de apresentador, Neil também é astrofísico, ele explode: “Caraca, eu quero ser cientista!”

Tão rápido quanto um piscar, porém, ele completou, depois de um suspiro que, senti, pesava uma atmosfera inteira sobre seus olhos: “Ah, mas eu não posso…”

Calou-se. Na sala, por outro instante muito grave, apenas a voz do Tyson se ouvia. Com um nó na garganta, perguntei-lhe, embora eu já imaginasse a resposta: “Por que não?” Ao que ele me replicou, infelizmente, sem nenhum traço de hesitação: “Porque eu sou deficiente.”

Em última instância, assim, eu poderia dizer-lhes que Capacitismo é essa força invisível que faz um menino de 12 anos não se sentir no direito de sonhar, porque seus olhos não estão de acordo com o que um conceito construído de normalidade espera deles.

Mas, em termos técnicos

A lógica capacitista se configura como uma mentalidade que lê a pessoa com deficiência como não igual, incapaz e inapta tanto para o trabalho quanto para, até mesmo, cuidar da própria vida e tomar as próprias decisões enquanto sujeito autônomo e independente. Tudo isso porque, culturalmente, construiu-se um ideal de corpo funcional tido como normal para a raça humana, do qual, portanto, quem foge é tido, consciente ou inconscientemente, como menos humano.

O grande problema deste tipo de preconceito é ele ser extremamente sorrateiro, quase imperceptível a olho nu, vindo, inclusive, no mais das vezes, escondido sobre uma capa de Boas intenções muito difícil de ser questionada. Não é incomum ouvir histórias de colegas também cegos irritados com o modo como foram abordados na rua, porque, na maioria das vezes, quem se propõe a ajudar um estranho com deficiência não se importa em saber se a pessoa em questão realmente precisa ou mesmo quer ser ajudada. De modo tal que, se reclamamos do estranho que nos puxa pelo braço ao nos ver ao pé da calçada, automaticamente somos taxados de ingratos. Não passa pela cabeça desses paladinos das ruas o fato surpreendente de que, talvez, não quiséssemos atravessar, mas estivéssemos apenas esperando alguém, por exemplo.

O melhor jeito de ajudar a alguém com deficiência é muito simples: PERGUNTE. O jeito mais fácil de entender a deficiência de alguém é: pergunte.

No entanto, a mentalidade de que qualquer pessoa com deficiência está em situação de necessidade e, portanto, não precisa ser questionada sobre suas próprias vontades, essa falta de interesse sobre a vida interior da pessoa com deficiência está enraizada no comportamento social devido a processos históricos que encararam a presença do corpo fora do padrão de normalidade de diversas formas. Ao longo da história, a sociedade já tratou da deficiência por alguns vieses: o do extermínio, que é autoexplicativo; do isolamento, em que aqueles considerados fisicamente incapazes são separados do corpo social “funcional”,etc.

O viés biomédico

O modo de encarar a questão mais próximo de nossa geração, contudo, é o da medicalização. Isto é, tratar a deficiência enquanto problema de saúde, uma vez que ser ou tornar-se deficiente, de acordo com esta lógica, passa essencialmente pela dinâmica de ter uma doença, lesão ou síndrome que devem ser tratadas. Assim, lemos as pessoas com deficiência enquanto enfermos , fato este que acaba por despejar sobre os sujeitos a sensação de obrigatoriedade da busca pela cura ou reversão do problema. O que, obviamente, nem sempre será possível. Diante da irreversibilidade da deficiência, então, surgem dois estereótipos bastante prejudiciais para quem tem que conviver com limitações diariamente se quiser conseguir transitar pela vida social: o coitado e o herói.

O “coitadinho”

Quem olha para uma pessoa com deficiência vendo um coitado acaba subestimando as capacidades do indivíduo, higienizando seu comportamento e criando imagens de inocência e pureza inexistentes em quaisquer seres humanos, tenha ele uma deficiência ou não: gente com deficiência não rouba, não transa, não trai, não mente, são anjos que precisam ter sua candura preservada. Este tipo de preconceito causa uma dificuldade ímpar: temos que, diariamente, provar para quem nos olha de fora que somos iguais e merecemos tratamento, direitos e condições iguais de exercer nossa dignidade. Ao nos desumanizar, a sociedade se isenta de nos encarar enquanto participantes, o que acaba desembocando no problema da exclusão social.

Aqui reside a nem tão sutil diferença entre inclusão e assistencialismo. Encarar o sujeito com deficiência enquanto coitado quase sempre desembocará em políticas públicas e atitudes discriminatórias. O assistencialismo separa a população “problemática” da população “normal”, sob a justificativa de que aquela parcela precisa de atendimento especializado, diferenciado e, portanto, incompatível com as dinâmicas comuns. Então, para remendar o capacitismo nosso de cada dia, separamos dois caixas no supermercado, para quem tem “necessidades especiais”, quando, a bem da verdade, a minha necessidade ali é a mesma de qualquer outro: pagar minhas compras. De modo que, por esse exemplo, em uma sociedade minimamente informada, empática e educada, qualquer um dos caixas do supermercado deveria servir, pois o que se precisa, nesta situação, é de PREFERÊNCIA, e não ESPECIALIZAÇÃO. Qualquer sujeito poderia ceder sua vez na fila comum para o próximo que, devido à sua condição física, não consegue esperar o mesmo tempo que a maioria das pessoas.

O “herói da superação”

Dessa discrepância entre aquilo que a sociedade me oferece e aquilo que tenho como limitação de meu corpo é que surge o estereótipo do herói: exemplo de superação que, apesar de todas as injustiças, obstáculos e problemas, é capaz de sustentar uma vida produtiva e até se destacar em alguma atividade. Criamos, com este mito, o estigma cruel que, subliminarmente, obriga toda e qualquer pessoa com deficiência a se conformar com a ideia de que o mundo não foi feito para ela , que ela precisará sempre se contorcer e fazer esforços sobre-humanos para conseguir, depois de tudo isso, o mesmo resultado que alguém sem deficiência conseguiria se esforçando apenas o suficiente.

Não deveria ser tão difícil de entender que muitos dos problemas de acessibilidade cotidianos se resolveriam com a simples mudança de atitude das pessoas em seu convívio coletivo. Mudança essa que, obviamente, só aconteceria depois de todos os cidadãos serem bem informados sobre o que é ser deficiente.

Mas o que é mesmo ser deficiente?

Propõe-se, hoje, que superemos aquele modo de tratar a deficiência do ponto de vista da medicalização, ultrapassado e nocivo, para adotarmos uma mentalidade de inclusão que, oposta ao assistencialismo, pretende que, na vida diária, nos lugares públicos e no cotidiano das pessoas, tudo seja projetado de forma tal que alguém sem deficiência alguma esteja transitando pelos mesmos locais que pessoas com os mais diversos tipos de deficiência. A chamada universalização do acesso viabiliza a convivência e seria capaz de anular a impressão de que não existem pessoas com deficiência e, por isso, os espaços não precisam ser adaptados.

Em outras palavras, uma sociedade capacitista subverte a lógica da oferta/demanda em favor de manter seu conformismo confortável. Um dono de restaurante, por exemplo, argumenta que não investe em cardápios em Braille porque não recebe clientes cegos, quando, na verdade, ele precisaria dispor desse material de antemão, para que clientes cegos se sentissem impelidos a frequentar seu estabelecimento. Assim, acabamos por levar a culpa pela própria falta de acessibilidade que nos impede de transitar pela cidade. Este é o perigo do capacitismo: uma vez que não temos condições de frequentar lugares públicos, devido à falta de acessibilidade, é lógico que ninguém vê pessoas com deficiência nesses lugares, o que acaba criando a ilusão de que essas pessoas não existem.

Deficiência, desse modo, não é o meu médico quem determina, mas o comportamento cultural. Meu médico me diz: descolamento das retinas, glaucoma, visão nula em ambos os olhos. A sociedade, então, por sua vez, em função desse diagnóstico, me força a ficar em casa, porque mesmo sair na rua, para ir até a padaria, no final da avenida, é praticamente impossível: calçadas irregulares, falta de padrões, pessoas despreparadas para lidar com um transeunte que empunha uma bengala e não é idoso… De modo que o essencial é compreender que deficiência é uma condição social que resulta dessa expectativa coletiva de que todos os corpos funcionem do mesmo jeito. Dentro do meu quarto, por exemplo, eu deixo de ser deficiente, pois, adaptado e organizado como está, consigo dispor do espaço sem me privar e sem depender de olhos alheios. Em uma cidade onde as calçadas fossem padronizadas, devidamente sinalizadas e acessíveis para circulação universal, eu não seria mais uma pessoa com deficiência. Seria apenas cego, somente um aspecto particular meu, uma característica, como meu cabelo ser castanho.

Aos termos, afinal

Por fim, vamos ao uso dos termos, porque, mais do que um preciosismo, entendemos que o modo pelo qual nos referimos a uma situação acaba expressando e reforçando o modo como lidamos com ela. Em textos oficiais, institucionais e quando estamos falando de sujeitos não íntimos de nosso convívio, precisamos pensar no modo como usamos as palavras. Durante muito tempo, usou-se a expressão “portador de necessidades especiais” para se referir a estas pessoas. Esse termo é problemático por vários motivos. Primeiro, o termo “portador” passa duas ideias equivocadas: a de que eu disponho da minha deficiência e a carrego comigo, portando-a; além de ser o termo cunhado e utilizado no discurso médico, dando a entender que ainda percebemos a deficiência enquanto problema de saúde, e não problema de atitude. Depois, “necessidades especiais” não calha pois aquilo que esperamos são condições para usufruirmos dos mesmos serviços e tratamentos que pessoas sem deficiência dispõem. Isto é, acesso à vida pública e privada com autonomia é essencial para a dignidade humana e, frise-se bem, dignidade não é uma necessidade especial. Sendo assim, apesar de não haver consenso, o uso geral e corrente se vale do termo “pessoa com deficiência”, pois destaca que o aspecto humano, a pessoa, vem antes da limitação, sendo esta um fator que não pode nem deve determinar o sujeito em sua integridade.

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