Como tornar suas timelines mais acessíveis para pessoas cegas (2)

Sidney Andrade
10 min readDec 21, 2017

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Faz um tempo, escrevi um texto sobre como a enxurrada de imagens nas redes sociais acabam sendo um fator de exclusão para as pessoas cegas que nelas circulam, na tentativa de esclarecer o quão positivo seria desenvolver hábitos acessíveis online. O texto dá instruções básicas sobre como fazer descrições simples para leigos. Sugiro que você leia ele primeiro aqui, antes de avançar para o que se segue, principalmente porque lá eu explico como funciona um leitor de tela, elemento este que citarei bastante abaixo.

O caso é que, depois da repercussão, muita gente que nunca tinha parado pra pensar sobre acessibilidade começou a se questionar sobre o tema e, mais especificamente, na tentativa de adotar esses hábitos mais acessíveis em suas redes sociais, acabaram me trazendo diversos questionamentos que eu não previ ao escrever o primeiro texto. Achei isso muito maravilhoso. Logo, este segundo é para tentar responder a algumas dessas perguntas que colegas videntes me fizeram.

Recapitulando rapidamente, uma descrição de imagem, para fins de acessibilidade a pessoas com deficiência visual, é a TRADUÇÃO de uma imagem em palavras e precisa seguir os seguintes passos:

•Iniciar a descrição, identificando seu tipo: foto, gif, tirinha, etc.;

•Identificar os elementos: O QUÊ/QUEM, ONDE, QUANDO E COMO.

•Empregar verbos para descrever a ação (Descrever as circunstâncias da ação — Faz o que/como;

•Usar termos QUE ESTEJAM DE ACORDO COM O TOM E A intenção da imagem;

Assim, dividi as dúvidas da galera nos temas a seguir:

1. Descrição de cores

2. Emoticons, emojis e stickers

3. Gifs animados

4. Imagens ilustrativas em links de notícias

5. Descrição de vídeos (pra quem compartilha e pra quem produz)

6. Linguagem neutra (uso de x e @)

7. Quantidade de detalhes e selfies

8. Afinal, que vantagens há em pensar nisso tudo?

1. DESCRIÇÃO DE CORES

Muita gente questiona a pertinência de descrever cores para pessoas cegas. A resposta simples é: Sim, descreva cores, seguindo a máxima da relevância para a imagem. Cores também são importantes para pessoas com deficiência visual por dois motivos.

Primeiro, nem todo mundo que é cego foi cego desde sempre, para as pessoas que perderam a visão e possuem memória visual, a cor continua fazendo parte da construção de significados do mundo, mesmo que apenas por via verbal.

Segundo, mesmo para pessoas que são cegas desde sempre, é importante entender que cor não se trata apenas de um estímulo luminoso, porque culturalmente construímos significados para esses estímulos e esses significados também são aprendidos por pessoas que nunca enxergaram. Por exemplo, ao descrever uma foto de casamento, na qual culturalmente esperamos que o vestido da noiva seja branco, a quebra de expectativa se o vestido da noiva for vermelho será tão significativa pra quem enxerga quanto pra quem não enxerga, isso porque a convenção social nos faz esperar que todo vestido de noiva seja branco. Dizer que a folha é verde significa algo totalmente diferente de dizer que a pele de alguém está verde. Cores carregam sentidos diferentes em contextos diferentes, e isso é importante para as descrições.

No mais, também descrever cores vale como modo de referenciar uma imagem. De repente eu quero pedir, “Migo, me manda aquela foto que eu to de camisa azul no shopping.” É mais um elemento que dá identidade à imagem, e pessoas cegas também precisam desses identificadores.

2. EMOTICONS, EMOJIS E STICKERS

Em primeiro lugar, é importante entender que há uma diferença de natureza entre Emoticons e Emojis, e isso implica no modo como os leitores de tela interagem com esses elementos.

Emoticons são sequências de pontuações que, combinadas, fazem alusão a uma imagem. Em algumas plataformas, ao fazer uma combinação de pontuação, ela é substituída pela figura a que se refere. Isso é identificado pelo leitor de tela, porque essas figuras têm etiquetas em seu código, e são essas etiquetas que o software acessa para identificar o elemento.

Quando não há essa substituição e temos que lidar apenas com a pontuação, a regra é simples: do mesmo modo que um vidente teve que APRENDER que “❤” signfica “coração”, uma pessoa cega, ao ouvir (menor que 3", vai aprender que se trata de um coração. Você pode até achar, intuitivamente, que a relação é óbvia, porque enxerga o formato que os caracteres formam. Mas mesmo videntes têm que aprender a convenção. Percebam que, na época do Orkut, por exemplo, a combinação popular para coração era “S2”, ou seja, a coisa não é tão natural quanto a gente pensa.

São aprendizados diferentes, claro, mas ainda assim, não significa que uma pessoa cega é incapaz de identificar emoticons de pontuação. Mas é fato que um texto cheio de emoticons será muito desconfortável de ouvir com o leitor de tela.

Emojis, por outro lado, são imagens codificadas dos sistemas operacionais, e essas imagens são identificadas, em seus códigos, por descrições textuais. O leitor de tela também tem acesso a essas descrições ao passar por um emoji, de modo que não é necessário descrever, nem é caso para evitar usar. Entretanto, novamente, um texto cheio de emojis será também muito desconfortável de ouvir com o leitor de telas, porque, aos nossos ouvidos, o texto estará todo intercalado por mini descrições de imagens emotivas.

Especificamente no caso dos emojis, eles são mais acessíveis em leitores de tela de aparelhos móveis do que nos leitores de tela de PCs, mas isso pode mudar com futuras atualizações dos softwares leitores. Também é preciso frisar que como a biblioteca de emojis é própria de cada sistema, é provável que a descrição de um emoji que eu envio de um iPhone seja diferente quando ele chegar na mensagem de alguém que usa Android.

É muito frequente que amigos me perguntem o que significam certos emojis, porque, tendo eu acesso à descrição original codificada na imagem, sei o que o programador intentou expressar com uma figura ambígua, ainda que visualmente as pessoas confundam ou não saibam identificá-la.

Assim, emoticons e emojis não precisam ser descritos. Mas nunca é demais pedir pra não exagerar no uso, ouvir dez vezes seguidas e ininterruptas “aplauso com mãos de pele clara” não é nada agradável.

Por fim, Stickers são figurinhas que não possuem nada disso, portanto, sempre que usar um sticker, descreva-o.

3. GIFS animados

Na hora de descrever um Gif animado, você deve encará-lo para cegos do mesmo modo que o encara para videntes, ou seja, um Gif é uma imagem em movimento. Portanto, descreva a sequência de ações do gif e os elementos relevantes para que o sentido do movimento seja apreendido pela descrição. Simples assim.

4. IMAGENS ILUSTRATIVAS EM LINKS DE NOTÍCIAS

Ao compartilhar uma notícia numa rede social, é comum que a manchete venha acompanhada de uma imagem ilustrativa. Por padrão, o leitor de telas sempre tem acesso ao texto da manchete, então não é necessário reescrevê-lo na postagem. Quanto à imagem que o acompanha, a não ser que a matéria faça alusão direta à ela, ou seja, se a notícia for sobre a imagem em si, será importante descrevê-la. Como a maioria dessas imagens são meramente ilustrativas, usadas apenas para chamar a atenção visualmente, na minha opinião, quase nunca se perde nada se essa descrição não for feita. Mas, querendo descrever, nunca é demais.

5. DESCRIÇÃO DE VÍDEOS (PRA QUEM COMPARTILHA E PRA QUEM PRODUZ)

Existe todo um campo de estudo e produção de conhecimento sobre acessibilidade de produtos audiovisuais para pessoas cegas. A esse tipo de acessibilidade dá-se o nome de AUDIODESCRIÇÃO. Trata-se de uma faixa de áudio incorporada no vídeo na qual um locutor (o audiodescritor) aproveita os silêncios para descrever os aspectos visuais relevantes das cenas. Ou seja, audiodescrição é um campo de produção de conteúdo muito elaborado e trabalhoso, de modo que seria ingênuo eu esperar que pessoas leigas audiodescrevam os vídeos que produzem (muito embora sonhar não custa nada, não é mesmo?). Menos ainda seria sensato eu esperar que quem compartilha esses vídeos saiba audiodescrevê-los, até porque essas descrições virão em forma de texto, na postagem, separada do vídeo em questão.

Então, temos dois impasses: o primeiro é lamentar quão raro são os produtos de internet audiovisuais com audiodescrição. Quer ver um exemplo de audiodescrição? Abre a tua Netflix, dá o play no documentário Laerte-se e, no menu de idiomas e legenda, escolha a opção “Português Audiodescrição”.

O segundo impasse é que, se a gente aceita o fato de que não vai ter mesmo audiodescrição no vídeo descolado do meu Youtuber favorito, o mínimo que eu poderia esperar dele é que ele não deixasse informações relevantes apenas visualmente, mas também as verbalizasse. Por exemplo: “Você pode ligar pro número que tá aparecendo aqui embaixo do seu vídeo”. Ao invés disso, que tal exibir o número no vídeo e, mesmo assim, enunciá-lo. Pra quem produz vídeos, vale a máxima: parta sempre do pressuposto de que, pasme você, nem todo mundo que te assiste consegue te enxergar, e isso é um fato. Tem muita gente cega na internet, ainda que invisibilizadas pela falta de acessibilidade.

Um pressuposto da acessibilidade informacional é a redundância: sempre ofereça mais de um modo de acessar a mesma informação.

Na hora de compartilhar na sua timeline aquele vídeo que você adorou, seria legal você dar uma descrição geral do que se passa visualmente, pra que, ainda que sem audiodescrição, o seu amigo cego possa ter uma referência do que está acontecendo para além do áudio.

Quando o conteúdo do vídeo não for visualmente determinante (uma entrevista, por exemplo), na minha opinião, não é necessário descrever.

6. LINGUAGEM NEUTRA (USO DE X E @)

Sobre isso, já me perguntaram tantas vezes que, agora, eu sempre colo um trecho de entrevista que cedi a um site. A entrevista na íntegra você pode ler aqui, nela eu falo de muitos outros aspectos da acessibilidade também.

“Eu acho o tema da neutralidade da linguagem importantíssimo, que não pode ser negligenciado, sob o risco de apagarmos ainda mais uma parcela da população já tão invisibilizada. Dito isto, preciso esclarecer que o modo como tem sido executada a neutralidade de gênero na escrita, na minha opinião, é contraproducente não só pra mim, que uso leitores de tela, como também pra própria galera não binária que precisa de uma linguagem que a contemple. Explico.

Quando escrevem “amigxs”, trocando uma vogal por uma consoante, o fluxo da pronúncia da palavra é quebrado, o que gera um ruído no fluxo da leitura dos leitores de tela; quando usamos “amig@”, trocando a vogal por um caractere que sequer letra é,ou seja, sequer possui som a ele associado, quebramos a palavra e, de novo, a leitura do leitor de tela fica comprometida.

De modo que, sim, essa linguagem atrapalha quem usa leitores de tela. Mas só nesses casos. No entanto, eu também penso em uma pessoa não binária que quer dizer que é “amig@” de alguém, como essa pessoa vai verbalizar isso? Assim, esse tipo de substituição não se aplica na fala, o que significa, do ponto de vista linguístico, que ela não vai se perpetuar, porque o que perpetua um uso da língua é a fala, a escrita é apenas a representação de uma fala já institucionalizada entre os falantes.

De minha parte, considero que há maneiras mais produtivas de neutralizar o gênero na linguagem, seja usando palavras que não possuam gênero ou ambivalentes, seja por meio de uma alteração na grafia das desinências de gênero que não altere a lógica fonética, como trocar “todos” por “todes”. Sei lá, isso são só elucubrações minhas, mas acho que dá pra um usuário de leitor de tela se acostumar mais com trocar A e O por E do que por X e @, além do que será possível oralizar isso na vida real, nas conversas do dia a dia.”

Devo acrescentar ainda que já vi muita gente usando o argumento de que X e @ são excludentes, se valendo do discurso da acessibilidade, para deslegitimar um movimento por puro preconceito. São pessoas que pouco se preocupam com descrever imagens em suas redes sociais, mas sempre que o tema surge, para argumentar contra um assunto do qual discordam e que tratam com ignorância, jogam a carta da exclusão dessa linguagem, pois é uma carta difícil de rebater, não é mesmo? É bom sempre prestar atenção em quem se preocupa realmente com a inclusão e diferenciar de quem só fala de um assunto para deslegitimar o outro.

Aqui vai um texto que gosto muito, ele ensina a neutralizar a linguagem de forma inclusiva e eficiente: “Deixando o X para trás na linguagem neutra de gênero”, por Juno

7. QUANTIDADE DE DETALHES E SELFIES

Sabendo que o básico de uma descrição boa é ser objetiva, muita gente se preocupa com o excesso de detalhes. E, sim, uma descrição muito longa e excessivamente detalhada é cansativa e desmotiva o seu amigo cego de lê-la até o fim.

É sempre importante ter em mente que toda imagem tem uma intenção. Mesmo se for uma selfie. Se a sua selfie quer mostrar a estampa da sua brusinha, descreva-a. Se a sua selfie quer mostrar a estante cheia de colecionáveis atrás de você, descreva-os. Se você fez a foto, você, melhor do que ninguém, sabe o que quer mostrar com ela. Descreva o que quer mostrar, transmita a intenção da sua foto.

8. AFINAL, QUE VANTAGENS HÁ EM PENSAR NISSO TUDO?

Desde que escrevi o primeiro texto, minhas timelines ficaram muito mais divertidas. Agora eu conheço memes e aspectos da cultura online que, de outro modo, eu não conheceria, porque as imagens nas quais eles estavam expressos não podiam chegar até mim. Portanto, lembre-se, acessibilidade não é um favor, é uma mentalidade inclusiva que acolhe a diversidade e enriquece quem faz e quem recebe.

Também fiz muito mais amigos, porque a galera queria fazer valer o trabalho das descrições que fazem. Mas é sempre importante frisar: não espere ter um amigo cego pra começar a descrever. Descreva primeiro, pois aí você terá aberto o caminho para fazer amigos que sejam cegos.

Mas ressalto: pensar em acessibilidade não se reduz apenas a descrever imagens para pessoas cegas. Acessibilidade, novamente, é uma mentalidade que, quando bem fundamentada, acolhe pessoas com todos os tipos de conformações físicas/sensoriais/psicológicas.

Eu continuo com o meu Instagram, brincando de acessibilidade, se você ainda não conhece, me segue lá. Posto imagens e peço para meus seguidores descrevê-las. Assim, você já vai exercitando na prática tudo isso que eu falei tão teoricamente. O perfil lá é o @descrevepramim

Se ainda houver dúvidas, entra em contato comigo. Quem sabe não sai uma parte 3. Meu perfil do Facebook está aqui.

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