Quando eu beijo
“Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão — esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!”
(Versos Íntimos — Augusto dos Anjos)
Lembro-me, com assombro de quem se desconstrói, que a primeiríssima peça literária à qual tive acesso, na ingenuidade e cegueira dos meus treze anos de idade, fora o Conto “O Primeiro Beijo”, de Clarice Lispector, indicado pela querida tia que já observava em mim os avanços da puberdade. Só que meu corpo crescia e aflorava mais rápido do que meu entendimento, motivo pelo qual, obviamente, não compreendera bem todas as insinuações que a narrativa propõe. Muitos anos depois, já adulto (mas ainda não tão mais maduro), aos vinte, regressei ao conto por força de uma atividade acadêmica para a disciplina de Teoria Literária do curso de Letras. O enfoque: crítica psicológica/psicanalítica. Então eu percebera o quanto um beijo não é só um beijo, mesmo quando acontece por “acidente”.
Devo confessar, no entanto, que esse alumbramento apenas tenha sido possível justamente porque, à época da disciplina, havia em mim o desejo de um beijo. Também muito se falava em Platão lá nas discussões daquele curso, foi quando um termo deixou de ser tese, para tornar-se frio na barriga. A minha então vontade platônica daquele beijo era um motivo. O meu ideal. Tem coisas que não precisam de explicação. A boca daquele beijo desvaneceu, como o sorriso do Gato da Alice. Desde então, decidi que adiar meus beijos era apenas um jeito de me negar e de isentar o outro. Sublimei tudo e passei a exigir a responsabilidade dos que cativam.
É que eu me empenho muito para não pecar pela falta, o que pode gerar, obviamente, o pecado do excesso. Mas este machuca menos. Levei uma vida inteira de acidentes pessoais esperando por um beijo. Já quase tarde demais, entendi que meu erro mesmo era acreditar que o ato de receber se tratava de uma atitude passiva. Receber é um gesto e, portanto, exige também uma ação. Como percebo a raridade dos que sabem quando dar, eu ofereço. Meu beijo é um dom que dedico a quem eu beijo. Quando eu beijo, sou eu dizendo, entre muitas outras coisas: estou pronto para receber.
E eu sinto que jamais renegarei a minha necessidade de gestos. Contam que, um dia, um homem beijou outro grande homem no rosto e, desde então tememos a traição da boca que nos toca. Só que a condenação do profeta veio pela falta de outro gesto: quem poderia dar a palavra lavou as mãos. Milênios se passaram, mas o culto à indiferença ainda vigora. Eu me recuso. Um gesto simples é capaz de mudar radicalmente o curso de uma história. Outro gesto simples não reverterá o efeito, mas o enfatizará. Quando eu beijo, eu quero pôr em curso e evitar o frio e a umidade das mãos lavadas.
Meu beijo é a boa recepção, é o que não coube no abraço, é o que uma palavra não diria. Meu beijo é carinho na ponta dos lábios, e esforço: apenas o ofereço a quem me dedico. Meu beijo não é convite para o sexo, porque ele basta-se sem a febre, mas entre os corpos ele também queima. Quando eu beijo,eu me exponho e não temo. Meu beijo é a coragem de sentir. Não venho escrevendo “o beijo é…”, mas “meu beijo é…” porque só posso responder por mim. Meu beijo é pessoal e intransferível. E, ainda que eu ouça a zombaria de quem prega a filosofia dos lábios selados, continuarei a fazer do meu beijo a minha declaração. Inspirado em uma das lições milenares daquele Profeta: ponho-me disposto a beijar a outra face de quem não compreender meu primeiro beijo.