Silva Bandini
12 min readApr 13, 2023

O filme A Origem, de Christopher Nolan, conta a história de Cobb, um ladrão cuja especialidade é roubar os segredos do inconsciente de suas vítimas enquanto elas dormem. A trama funciona da seguinte maneira: empresas contratam Cobb para que ele invada os sonhos de seus concorrentes e, assim, descobrir os segredos que o inconsciente deles supostamente escondem. No filme, geralmente esses segredos são representados por um cofre que Cobb precisa achar e abrir para, desse modo, desvendar os mistérios que o inconsciente dissimula por meio do trabalho dos sonhos. O enredo do filme se desenvolve quando Cobb é contratado para um trabalho incomum - no lugar de roubar os segredos inconscientes de Fischer, um empresário que herda uma companhia milionária do seu pai, ele precisará colocar uma ideia em seu inconsciente sem que ele saiba que tal ideia não tem origem em sua própria consciência (ou inconsciência).

Embora seja inegável a qualidade do filme, pode-se dizer que ele é um grande exemplo de como - ainda hoje - a teoria dos sonhos, produzida por Freud, é mal compreendida. São por essas incompreensões, por exemplo, que Zizek se ocupa em examinar os mal-entendidos que sofre a hermenêutica dos sonhos logo ao começar a esboçar uma Teoria da Ideologia, em O mais Sublime dos Histéricos (1988). Em alguns dos escritos de grande importância em que o filósofo esloveno procura desenvolver a sua Teoria da Ideologia, a questão prévia é muitas vezes determinada pela necessidade de esclarecer do que realmente se trata a análise do processo de interpretação dos sonhos em Freud.

Podemos citar pelo menos dois grandes erros contidos no roteiro do filme. O primeiro erro é como o enredo apresenta o sonho por meio de um lugar fictício onde a realidade não perturbaria a fantasia do sonhador - como se o sonho fosse um cenário puramente imaginário onde o sujeito pudesse construir o mundo fantasioso onde os seus traumas não fossem capaz de atormentá-lo. O segundo erro é a concepção do desejo inconsciente como se ele fosse algo que o sonhador esconde, que no filme é representado por um cofre.

Acerca do primeiro ponto, não é nenhuma surpresa que a tradição freudolacaniana rejeita completamente a concepção do sonho como um lugar aquém das perturbações da realidade da vida cotidiana, como se ele fosse uma fantasia onde podemos dormir para esquecer do mundo que nos sufoca. Muito pelo contrário, encontramos diversas caracterizações em Freud e Lacan do caráter extremamente traumático do sonho: segundo Zizek, é quando estamos acordados que “sonhamos”, ou seja, que evitamos o confronto do real traumático que perturba a nossa consciência.

“Na oposição entre o sonho e a realidade, a fantasia está do lado da realidade, e é em sonhos que nos defrontamos com o real traumático - não é que os sonhos sejam para aqueles que não conseguem suportar a realidade, a própria realidade é para aqueles que não conseguem suportar (o real que se anuncia em seus sonhos) (ZIZEK, 2010, p. 73).”

Na tentativa de mostrar como se manifesta essa oposição entre sonho e realidade, Zizek analisa o famoso sonho do Pai descrito por Freud em A Interpretação dos Sonhos (2019). Um pai, no velório de seu filho, adormece. Enquanto dormia, ele sonha com o seu filho pegando fogo e lhe dizendo: “Pai, não vês que estou queimando?” Ele então desperta. Ao acordar ele percebe que o caixão de seu filho está pegando fogo porque uma vela havia caído nele. Segundo o filósofo esloveno, não é suficiente analisar a causa do despertar do pai apenas porque o cheiro da fumaça estava forte o bastante a ponto de despertá-lo. Segundo ele,

“[...] não foi a intrusão da realidade externa que despertou o infeliz pai, mas o caráter intoleravelmente traumático do que ele encontrou no sonho [...]. O cenário foi o seguinte: quando a fumaça perturbou o seu sono, o pai rapidamente construiu um sonho que incorporava o elemento perturbador (fumaça-fogo) para prolongar seu sono; no entanto, aquilo com que se defrontou no sonho foi um trauma (sua responsabilidade pela morte do filho) muito mais forte que a realidade, de modo que despertou para a realidade a fim de evitar o real (ZIZEK, 2010, p. 74).”

Como não lembrar da cena do filme em que Cobb se depara com um grupo de pessoas que se encontram todos os dias para sonhar e pergunta a um senhor que se encontrava no local: “Eles vêm todo dia para dormir?” Ao passo que ele lhe responde: “Não. Eles vêm para serem acordados. O sonho se tornou a sua realidade.” O problema dessa fala é que ela não leva em consideração o caráter traumático da própria realidade presente no sonho: caso os sonhadores tivessem realmente um encontro com a realidade em seus sonhos, eles desejariam acordar para “o mundo real” e evitariam sonhar sempre que possível, tal como o pai que acordou por não suportar a realidade de seu sonho. Assim, Nolan dá a entender que o sonho seria o lugar onde o sujeito se encontrava livre de suas preocupações, traumas e culpas.

Mesmo assim, temos que admitir que há uma certa ambiguidade acerca desse caráter traumático no filme, afinal, embora Nolan apresente o sonho como o lugar em que se pode fugir da realidade, em alguns momentos ele o coloca como o único lugar em que a realidade pode se manifestar. Por exemplo, quando Cobb tenta criar, em seus próprio sonhos, uma espécie de prisão para as lembranças de sua falecida esposa a fim de conseguir mudar a forma como ele se relaciona com essas memórias traumáticas - como se apenas no interior do sonho se encontrasse a possibilidade de alterar a relação dele com essas lembranças (e com sua culpa na morte da esposa), transformando, assim, a forma como ele lida com esses acontecimentos no mundo exterior das suas relações sociais.

Mas, em linhas gerais, o filme tenta apresentar a relação entre o sonho e a realidade da maneira habitual que encontramos no senso comum. De um lado, a realidade da vida cotidiana quando estamos acordados, do outro, a fantasia do sonho quando estamos dormindo. Assim, na sua apropriação de Freud e Lacan, Zizek afasta completamente esse tipo de visão e se concentra em estabelecer o modo como a fantasia estaria no mundo exterior das relações sociais, mais especificamente, na forma em que essa fantasia se estabelece no modo com que nos relacionamos com o mundo. Dessa forma, “a tarefa ética máxima é a do verdadeiro despertar: não somente do sono, mas do feitiço da fantasia que nos controla ainda mais quando estamos acordados” (ZIZEK, 2010, p. 76).

O segundo erro teórico cometido por Nolan é acerca da forma como o inconsciente é representado - como uma espécie de esconderijo cuja função seria dissimular no trabalho dos sonhos aquilo que o sujeito quer esconder. No enredo, quanto mais fundo se penetrava no sonho, maiores seriam as chances de encontrar aquilo que o inconsciente desejava ocultar. O problema é que, segundo Zizek, o inconsciente não pode ser apreendido como aquilo que há de mais profundo no interior da consciência do sujeito, assim como também não possui nenhuma função de esconder algum tipo de segredo.

Para contextualizarmos melhor essa questão voltemos a história que é contada no filme. Para conseguir voltar aos EUA, Cobb é contratado para realizar um último serviço - inserir uma ideia no inconsciente de um grande empresário chamado Fischer que herda uma companhia multimilionária de seu pai. Para ser mais exato, Cobb precisa fazer com que o inconsciente de Fisher assimile motivos que o faça destruir a própria companhia que herdou. Uma tarefa quase impossível, mas, segundo Cobb, totalmente plausível, afinal, como ele mesmo diz no início do filme, uma ideia assimilada inconscientemente é “resistente. Altamente contagiosa. É quase impossível erradicar uma ideia que se apossa do cérebro. Uma ideia totalmente formada, totalmente compreendida, permanece (A ORIGEM, 2010).”

É impressionante que mais uma vez Nolan tenha sido certeiro na concepção apresentada inicialmente e depois se perdido ao longo do filme. Isto porque o inconsciente é a instância que determina a forma como as coisas são apreendidas pelo sujeito, mesmo que ele não saiba que apreende as coisas dessa determinada forma. Na verdade, o sujeito está sempre privado do conhecimento do seu inconsciente, afinal, é nele que estão “as crenças e suposições [...] que sequer sabemos que abrigamos, mas que apesar disso determinam nossos atos e sentimentos” (ZIZEK, 2010, p. 67). Assim, podemos afirmar que “o inconsciente é o fenômeno inacessível” (ZIZEK, 2010, p. 67) que determina a forma como o sujeito se direciona ao mundo. Zizek nos traz um exemplo curioso para facilitar o entendimento dessa concepção.

“Em março de 2003, Donald Rumsfeld teve um rápido acesso de filosofia amadora sobre a relação entre o sabido e o não sabido. ‘Há sabidos sabidos. Essas são as coisas que sabemos que sabemos. Há não sabidos sabidos. Isto é, há coisas que sabemos que não sabemos. Mas há também não sabidos não sabidos. Há coisas que não sabemos que não sabemos.’ O que ele esqueceu de acrescentar foi o quarto termo essencial: ‘os sabidos não sabidos’, coisas que não sabemos que sabemos - o que é precisamente o inconsciente freudiano, o ‘saber que não se sabe’, como Lacan costumava dizer (ZIZEK, 2010, p. 67).”

É por isso que Cobb estava, pelo menos nesse momento, totalmente correto; uma vez que uma ideia se apodera do inconsciente ela irá determinar todas as ações e sentimentos do sujeito sem que ele faça a mínima ideia da instância que o faz agir e sentir daquele determinado modo. Assim, caso houvesse a possibilidade de acessar o inconsciente de Fischer e fazê-lo assimilar a ideia de destruir sua própria companhia, ele começaria a agir conforme essa ideia.

Devemos ler, portanto, a afirmação de que “é quase impossível erradicar uma ideia que se apossa do cérebro” não por meio de uma simples dificuldade que o sujeito tem de não agir conforme uma ideia que sua consciência lhe estabelece, mas sim como a própria impossibilidade de o sujeito erradicar uma ideia que nem ele mesmo sabe que a possui, afinal, diante do inconsciente o sujeito está privado até de sua experiência subjetiva mais íntima, do modo como as coisas realmente parecem ser para ele.

No entanto, logo após apresentar de maneira brilhante a posição inicial do inconsciente freudiano, o roteiro se perde no seu desenvolvimento. Como sabemos, Nolan representa o inconsciente como um cofre onde o sujeito que sonha esconde os seus segredos mais íntimos. No trabalho final que Cobb precisa fazer, a sua função não é roubar o que está no “cofre” de Fischer, mas sim colocar uma ideia sem que ele saiba que essa ideia não veio dele mesmo. O problema é que esse cofre não tem nada de inconsciente.

No arco final do filme, Cobb e a sua equipe estão tentando ir cada vez mais fundo no sonho de Fischer para conseguir inserir o motivo que o faria destruir a sua própria empresa. Assim, eles tentam fazer com que esse motivo seja assimilado por meio de alguma abertura que a sua relação com o pai pudesse possibilitar. Dessa forma, a brecha que eles encontram nessa relação é apresentar ao inconsciente de Fischer que ele precisaria destruir a empresa porque esse era o desejo do seu pai, afinal, apenas se ele destruísse a companhia que herdou que ele conseguiria construir a sua própria empresa, e esse, pelo menos no que Cobb quer apresentar ao inconsciente do sonhador, era o último desejo do seu pai antes de morrer.

A ideia do roteiro parece boa. Até esse momento, o enredo do filme apontava para a relação conturbada e problemática de Fischer com o seu pai. Cobb aposta, portanto, em algo que fosse capaz de salvar essa relação, pois na sua visão seria muito mais eficaz apresentar ao inconsciente um elemento benéfico para destruir a companhia do que tentar fazê-lo assimilar por conta de algum tipo de vingança. Ao final do filme, o cofre é encontrado e o que acontece é tudo aquilo que Cobb planejou: ele conseguiu fazê-lo assumir o desejo de destruir a empresa para que o último desejo do pai fosse concretizado.

É bastante nítido que o objetivo do roteiro é apresentar que essa ideia inconsciente não parte do próprio Fischer, mas que ela é inserida em seu interior por Cobb. Caso tenhamos um olhar mais atento, no entanto, veremos que o motivo que fazia com que Fischer odiasse o seu pai nunca fora o desdém que ele recebera dele, mas a suspeita que essa indiferença paterna acontecia porque o seu pai sabia que Fischer era capaz de construir uma empresa realmente sua, mas que ele não tentava pelo comodismo da herança que um dia iria receber. Assim, o desejo inserido por Cobb no inconsciente de Fischer nem é, por um lado, construído por ele, muito menos um desejo inconsciente.

O cofre, portanto, onde esse “segredo” é colocado, não tem nada de inconsciente, muito pelo contrário, Fischer sabia até demais do desejo do seu pai, mas procurava o tempo todo esquecê-lo, encontrando, assim, motivos para o odiar. Podemos dizer que a culpa que Fischer sente por nunca ter atendido as expectativas de seu pai manifestado no seu sonho é análoga à culpa pela morte do filho sentida pelo pai, no exemplo que Zizek utiliza para interpretar Freud. A questão é que, apesar do conteúdo traumático dessa culpa, ela não pode ser considerada como um pensamento inconsciente. É exatamente esse o ponto em que Zizek inicia a discussão da relação entre Freud e os seus críticos em “O mais sublime dos histéricos.”

A confusão em conceber o conteúdo latente do sonho, quer dizer, o cerne traumático encontrado no trabalho onírico, como sinônimo do desejo inconsciente é mais comum do que parece. Logo nas primeiras tentativas de apresentar os principais elementos que compõe a sua Teoria da Ideologia, Zizek mostra como Hans-Jürgen Eysenck, um grande crítico da psicanálise, comete o mesmo erro que Nolan: do mesmo modo que em A Origem, o desejo inconsciente é representado por um cofre onde o sujeito que sonha esconde os seu segredos mais íntimos, Eysenck também formula sua crítica a Freud por meio da concepção de que a função do inconsciente freudiano no trabalho dos sonhos seria o de esconder um segredo e que a tarefa do psicanalista seria encontrar o significado inconsciente do sonho por meio da interpretação do conteúdo que ele esconde.

Em ambos os casos, portanto, se confunde o pensamento latente do sonho com o desejo inconsciente presente no trabalho onírico. O que é apontado pelo filósofo esloveno é que quando se coloca o pensamento latente do sonho e o desejo inconsciente nele presente como sinônimos, uma distinção essencial feita por Freud na sua Teoria dos Sonhos se perde, fazendo com que toda apreensão dessa teoria se torne um grande equívoco, já que ela passa a ser entendida pelo que [ela] não é.

“Hans-Jürgen Eysenck, um crítico severo da psicanálise, já fez observar um paradoxo fundamental quanto à abordagem freudiana do sonho: Segundo Freud, supõe-se que o desejo articulado num sonho seja, pelo menos em regra geral, um desejo simultaneamente inconsciente e de natureza sexual; ora, isso contradiz a maioria dos exemplos encontrados no próprio Freud, a começar pelo sonho escolhido por ele como exemplo introdutório à lógica do sonho, o da injeção aplicada em Irma. O pensamento latente desse sonho é a tentativa de Freud de se livrar da sua responsabilidade no fracasso do tratamento médico aplicado em Irma, por meio de uma lógica do tipo ‘a culpa não é minha, as diversas circunstâncias foram a causa…’; ora, esse “desejo”, a significação do sonho, evidentemente não é nem de natureza sexual (trata-se mais de um problema de ética profissional) nem é um desejo inconsciente - trata-se de um problema que havia atormentado Freud de maneira bem consciente [...] Esse tipo de crítica implica um erro teórico fundamental: ele identifica o desejo inconsciente em ação no sonho com “o pensamento latente”, a significação do sonho. Ora, Freud o sublinha diversas vezes, ‘o pensamento latente do sonho’ não tem em si nada de inconsciente, é um pensamento absolutamente normal, articulável na sintaxe da vida cotidiana (ZIZEK, 1996, p. 297-298).”

Dessa forma, podemos dizer que para Freud, a principal tarefa do psicanalista ao analisar um sonho não seria a de desvendar a sua significação, quer dizer, trazer à tona aquilo que é escondido pelo sujeito, o cerne traumático que é dissimulado no trabalho onírico, afinal, para o psicanalista alemão, “o essencial no sonho não é o pensamento latente, mas o trabalho (os mecanismos de deslocamento, condensação, figuração do conteúdo das palavras ou sílaba etc.) que lhe conferem a forma do sonho.” (ZIZEK, 1996, p. 298) Assim, o objetivo do psicanalista na interpretação do sonho não seria fazer o analisado compreender o conteúdo oculto que confere a sua significação, mas sim tentar fazê-lo compreender por que aquele conteúdo precisou se ocultar necessariamente na forma do sonho.

Por outro lado, um aspecto que passa despercebido na teoria freudiana, e que Zizek procura esclarecer, é que “não existe nada de inconsciente no pensamento latente do sonho: este é um pensamento inteiramente normal” (ZIZEK, 1996, p. 298) Fica exposta, assim, as semelhanças entre a culpa que Fischer carrega em seu sonho (o desejo de seu pai dissimulado por um cofre que ele constrói na tentativa de esconder o trauma) e a culpa do próprio Freud no exemplo que ele traz à tona (seu fracasso no tratamento de Irma dissimulado nas próprias justificativas que ele dá a si mesmo na tentativa de fugir de sua responsabilidade) - a significação de ambos é encontrada, portanto, num pensamento consciente, afinal, “o sujeito tem conhecimento dele, até demais; ele o atormenta o tempo todo” (ZIZEK, 1996, p. 298).

A consequência necessária que essa compreensão nos traz é que o pensamento oculto do sonho se encontra no horizonte epistemológico de apreensão do sujeito. Mas, como vimos anteriormente, o inconsciente é o “saber que não se sabe”, isto é, a instância que determina o modo como o sujeito se relaciona com o mundo, mas que se encontra para além do seu horizonte epistemológico. Assim, aquilo que Eysenck entende como a manifestação do desejo inconsciente nada mais é do que um pensamento desagradável que “sob certas condições é rechaçado, empurrado para fora da consciência” (ZIZEK, 1996, p. 298) pelo próprio sujeito, mas que não possui nada de inconsciente.

Silva Bandini
Silva Bandini

Written by Silva Bandini

Serve na missão Anglicana Maria Madalena (IEAB), em João Pessoa, Paraíba. Escritor, pseudo-poeta e pesquisador em Filosofia contemporânea do cristianismo.

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