O jornalismo precisa ser mais transparente para recuperar a credibilidade

Não basta dizer ser credível: o leitor quer provas de que o veículo jornalístico é independente e não está a serviço de partidos ou empresas. É hora de (re)construir a credibilidade percebida

Sílvia Lisboa
O jornalismo no Brasil em 2019
6 min readDec 17, 2018

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Jornalistas adoram apontar os deslizes éticos e morais de políticos e empresários. É uma das suas funções. Mas seus veículos não se abrem ao mesmo escrutínio que cobram das suas fontes. E o leitor não é bobo: ele percebe os conflitos de interesse. Ele sabe que, se o jornal depende da venda de anúncios de carros para sobreviver, haverá algum tipo de mal-estar se a redação decidir publicar uma denúncia contra as montadoras. Ele sabe que, se um grande jornal abre o voto para um candidato à Presidência, a redação vai passar por pressões dos patrões na cobertura eleitoral.

Por décadas, os veículos viveram sob a ilusão que difundir a alegada separação entre “Igreja e Estado” (entre a redação e o departamento comercial) era suficiente para convencer o público de que era independente. Não é mais. Hoje, os veículos dependem cada vez mais do dinheiro do leitor para sobreviver — e cada vez menos do anunciante. Sua distribuição também depende dos compartilhamentos do leitor nas redes sociais. Um veículo desacreditado pela audiência não circula pelas timelines e está fadado ao esquecimento. Fora isso, o jornalismo precisa enfrentar um ambiente hostil. Algoritmos, trolls, bots e boatos travestidos de notícias que, como revela um estudo quentinho da London School of Economics, desorientam, distraem e confundem. Como resultado, o público passa a desacreditar até mesmo as fontes confiáveis — a perda da credibilidade do jornalismo é, em parte, fruto de uma desconfiança mais ampla nas instituições democráticas.

Chegou a hora de parar de ignorar a opinião do leitor sobre esses conflitos, entender melhor que o mundo mudou muito e prestar atenção em como se forma a credibilidade percebida. Em 2019– e nos próximos anos –, o jornalismo brasileiro terá de desenvolver maneiras de deixar mais claro à audiência por que ela pode voltar a confiar nele. Para isso, precisará oferecer novas provas de sua independência. A percepção de credibilidade deve aumentar — explico mais abaixo o porquê.

Sites, jornais e emissoras estão acostumados a se autoproclamar como fontes confiáveis de informação em manuais de redação, campanhas de marketing e editoriais, como se a credibilidade fosse uma qualidade inata ao jornalismo profissional, e não um atributo avaliado pelo público diariamente. Não é. Nunca foi.

O estudo da credibilidade pela ótica da filosofia nos mostra como nasce a percepção de credibilidade do leitor. Mostra, por exemplo, que o interlocutor só acredita em algo (seja no relato de um taxista ou em um jornal centenário) quando a fonte ou seu relato oferecem provas de que são íntegros e tem competência especializada naquele assunto. A credibilidade que tenta ser construída num único sentido (de um veículo para o público, por exemplo) não passa de uma estratégia mercadológica tão vazia como um saco plástico ao vento.

Mas essa percepção do leitor sobre a credibilidade do veículo ainda não é levada em conta no Brasil porque a audiência, na prática, não passa de números do IVC ou de engajamento nas redes, ambos ricos para vender anúncios, mas pobres para entender se o leitor confia naquele jornalismo. Hoje, com o dinheiro da publicidade escorrendo pelo ralo, não é mais possível avançar sem conhecer a fundo — e conversar — com o leitor.

Ao analisar mais de 1 mil comentários de leitores, identifiquei cinco valores que embasam a crença no jornalismo: independência, imparcialidade, honestidade, objetividade e coerência. A independência pode ser traduzida pela ausência de restrições ou interesses econômicos e políticos que possam afetar a integridade do jornalismo como fonte de informações fidedignas da realidade. A independência foi o item mais valorizado na minha pesquisa, com mais de 49% das manifestações. Se somarmos independência e imparcialidade, que também diz respeito à forma como o jornalismo seleciona e hierarquiza os acontecimentos — e, por esse motivo, está associada diretamente à obediência ao interesse público (e não a interesses privados) –, chegamos a um índice de 73%. Ou seja, na percepção do leitor, a que importa no final das contas, a credibilidade do jornalismo está fundamentalmente ligada a sua autonomia frente a partidos, empresas e poderes.

Existem estudos que reafirmam o valor da independência no jornalismo. Em 2010, Stephen Ostertag revelou que a rede pública americana PBS era considerada uma “rede segura” por causa de seu perfil não comercial. Os entrevistados disseram confiar mais na PBS porque ela parece ser mais “legítima”, menos “tendenciosa” e “mais equilibrada” do que as redes comerciais. B. J. Fogg, por sua vez, identificou que a presença de muitos banners e anúncios em sites de informação reduz o nível de confiança do público.

O jornalismo se legitimou como uma fonte de informação essencial nas democracias porque seu discurso se baseia em evidências de veracidade: a fotografia, a consulta a fontes especializadas, a precisão no detalhamento dos fatos, a correção de erros. Fazem parte das provas de que o leitor precisa para atestar se o jornalismo é independente, imparcial, honesto, objetivo e coerente. Mas não basta cumprir à risca esses valores sem demonstrá-los como se efetivam na prática — falhamos muito nisso como mostra este estudo, no qual verificamos a (ainda baixa) adesão aos indicadores de veículos brasileiros ao Trust Project.

Mas como isso pode ser feito? Deixando claro, na capa do site, do Facebook, do Twitter ou nas próprias reportagens, como conteúdo fixo, aspectos hoje ainda escondidos, como a forma de financiamento, métodos de apuração e seleção das notícias, credenciais do repórter e do veículo. Também vale usar as caixa de comentários para exercitar a transparência e responder dúvidas e desconfianças de leitores e estender a mesma lógica quando os jornalistas estiverem em palestras em escolas, universidades e eventos.

A importância da independência para a credibilidade jornalística é um problemão para os veículos comerciais ou vinculados a clãs políticos, a maioria no Brasil. Sempre foi assim, mas a tendência é piorar em 2019 porque teremos não apenas o público exigindo autonomia da imprensa, mas um presidente que chama a imprensa de “fake news” e “vendida”. Ainda que os veículos sustentados por publicidade ou por verbas públicas consigam separar os departamentos comercial do editorial, essa divisão precisa ser divulgada numa prestação de contas ou estar exposta de forma clara — isso se a opinião do leitor realmente importar para os veículos.

O cenário de descrédito, no entanto, é uma boa oportunidade para veículos e iniciativas que buscam ser 100% financiados pelo leitor ou são mantidos por ONGs, que começam a ganhar importância aqui e lá fora. Eles podem sair na frente na corrida pela credibilidade percebida porque já nascem independentes, ou seja, colados ao mais importante valor na visão da audiência.

É chegada a hora de os veículos, comerciais ou não, adotarem posturas de transparência em relação ao seu modo de financiamento — se não para agradar o leitor, para desmontar as críticas desferidas por Bolsonaro e sua equipe. A prestação de contas também precisa estar na mira dos veículos sem fins lucrativos.

Para dar seu voto de confiança, o leitor precisa entender melhor como são feitas as notícias, precisa identificar logo de cara quais são os sinais de credibilidade daquele veículo. Ele quer que o veículo admita seus conflitos e mostre o que faz para que evitar que os interesses privados contaminem o conteúdo. Antes, nas páginas de jornais e revistas, onde cada centímetro era usado para espremer informação ou publicidade, era compreensível que as empresas de mídia preferissem usar o espaço para privilegiar receita ou conteúdo. Agora, no latifúndio da internet, não mais.

Alguns leitores podem não se interessar por essas credenciais, mas elas precisam estar lá à disposição, lembrando o be-a-bá (que só é óbvio para os jornalistas): o jornalismo se baseia na verdade, é movido pelo interesse público e nasceu para defender a democracia — e seu papel cresce diante de governos que a põe em risco. Ninguém escapa à atual demanda por mais transparência que, em 2019, se transforma numa exigência nas sociedades democráticas e tecnológicas.

Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2019. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.

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Sílvia Lisboa
O jornalismo no Brasil em 2019

Jornalista, fundadora da Fronteira e editora de vozes no The Intercept Brasil. Pesquisa credibilidade jornalística no doutorado em Comunicação na UFRGS.