A banalidade do mal

Sofia Afonso Ferreira
6 min readMar 22, 2023

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Eichmann não desempenhava um papel fundamental, era apenas uma peça na engrenagem nazi, produto de um estado totalitário que agia como um sistema de destruição que matava milhares sem questionar se era ou não legítimo.

Hannah Arendt (1906–1975)

“No Terceiro Reich o mal perdeu a sua característica distintiva pela qual a maioria das pessoas até então o reconhecia. Os nazis a redefiniram como uma norma civil”.

“O problema com Eichmann era precisamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem perversos nem sádicos, mas eram, e ainda são, terrivelmente normais. Do ponto de vista das nossas instituições legais e dos nossos padrões morais de julgamento, essa normalidade era muito mais assustadora do que todas as atrocidades juntas”.
Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal

A experiência política do século XX revelou a emergência de um novo tipo de mal até então desconhecido — a emergência do fenómeno totalitário obrigou a reavaliar a ação e a história humana, tal como revelou e derivou em novas figurações do ser humano, incluindo algumas das suas formas monstruosas. É justamente no contexto da reflexão sobre a experiência das sociedades totalitárias no século XX que Hannah Arendt (1906–1975) levantou a questão do mal no contexto da filosofia e como pessoas comuns se tornam atores em regimes totalitários. “Eichmann em Jerusalém”, publicado na revista “The New Yorker em 1963, como parte da obra da autora dedicada à natureza do poder e do mal, assim como à política, democracia direta, autoridade e totalitarismo, é ainda actualmente crucial para compreender o fenômeno.

De 1947 a 1951, período em que realizou o trabalho de pesquisar, redigir e publicar a obra “Origens do Totalitarismo”, Hannah Arendt ficou chocada com os acontecimentos políticos do momento, os horrores da guerra e do Holocausto, e tentou encontrar explicações para os eventos no plano filosófico e moral. Doze anos depois, em 1963, quando assistiu ao julgamento em Jerusalém de Otto Adolf Eichman, oficial burocrata do regime nazi alemão, e publicou o seu relatório sobre a banalidade do mal, a sua reflexão sobre o fenômeno alterou.

Depois de ser raptado num subúrbio de Buenos Aires por um comando israelita, Eichmann é levado para Jerusalém, Israel. Durante o julgamento, a figura discreta e banal de Eichmann discordou dos crimes de que era acusado e pelos quais sempre assumiu relativa responsabilidade. Antes de partir para o julgamento de Eichmann, Arendt presumia que encontraria um ser humano no mínimo perverso, até mesmo um monstro ou um exemplo de malignidade humana, como a imprensa da altura fazia crer.

Julgamento de Eichmann , 11 Abril, 1961 — 15 Dezembro, 1961

Além da sua expectativa ter sido frustrada, esse confronto revelou um ser humano desprovido de qualquer grandeza malévola ou de qualquer característica peculiar que o diferenciasse dos demais, exceto o que ela nomeou de “vazio de pensamento”. É justamente a partir dessa experiência de perplexidade e espanto que se dá o percurso do pensamento de Arendt, desde a formulação da ideia da banalidade do mal até o vazio do pensamento.

Ao contrário de muitos que viam em Eichmann a personificação do mal, Arendt via uma figura banal. Eichmann não era o monstro esperado, mas apenas um ser humano com um grau extremo de não questionar o que o cercava, um indivíduo que era um produto típico do estado totalitário. Para Arendt, as pessoas comuns que omitem ou cometem as piores atrocidades e maldades não são sedutoras ou monstruosas, como a mitologia retrata, mas banais e comuns. Eichmann não era fundamental mas apenas uma peça na engrenagem nazi, produto de um estado totalitário que agia como um sistema de destruição que matava milhares sem questionar se era ou não legítimo.

Arendt segue a trilha aberta por Kant, apoiando-se no conceito de mal radical na sua investigação sobre a emergência dessa nova forma de violência e a sua disseminação e realização como uma nova realidade política. O fio condutor do seu pensamento é a questão do mal radical, especialmente na sua dimensão ética e política. O pano de fundo é o totalitarismo, visto como paradigma da destruição da política.

Esse risco sobrevive à queda de estados totalitários aliados a instrumentos legais repressivos. Nas sociedades burocráticas modernas, os acontecimentos jurídicos, políticos, sociais e económicos conspiram por toda parte, com os instrumentos totalitários inventados para tornar os homens supérfluos.

Em sua concepção, o surgimento desse novo tipo de mal tem como objetivo não a dominação despótica dos homens, mas um sistema em que todos os homens são supérfluos. O primeiro passo essencial no caminho para esta dominação total é a destruição da pessoa jurídica do ser humano. O próximo passo consiste na anulação da individualidade e da espontaneidade, para que seja eliminada a capacidade humana de começar algo novo com os seus próprios recursos. O objetivo desta destruição é a transformação da pessoa humana numa “coisa”.

Arendt demonstrou que o modelo de cidadão das sociedades burocráticas modernas é o ser humano que age sob ordens, que obedece cegamente e é incapaz de pensar por si mesmo, pois essa supremacia da obediência pressupõe a abolição da espontaneidade do pensamento. Essa ausência de pensamento foi nomeada por Arendt como a “banalidade do mal”.

Para Arendt, o mal radical, que apareceu no totalitarismo, transcende os limites do que foi definido por Kant, pois se trata de “um novo tipo de ação humana”, uma forma de violência que “vai além dos limites da própria solidariedade do ser humano”, de “um mal absoluto porque não pode ser atribuído a motivos humanamente compreensíveis”. O fenómeno totalitário revelou que não há limites para as deformações da natureza humana e que a organização burocrática de massas, baseada no terror e na ideologia, criou novas formas perversas de governo e dominação.

Para explicar o fenómeno totalitário, não encontramos suporte para entender um fenómeno que surge e que vai contra todas as normas que conhecíamos. O verdadeiro mal radical surgiu num sistema onde todos os homens se tornaram “supérfluos”/“coisas”, e, no final, se tornaram apenas meios para um propósito. Este “supérfluo” afetou tanto os manipulados quanto os manipuladores – “os assassinos totalitários são os mais perigosos, porque não se importam se estão vivos ou mortos, se nunca viveram ou se nunca nasceram”. Essa nova fase do mal radical aparecerá sempre que o ser humano for transformado em “supérfluo”.

A questão original sofre então uma mudança radical — não se trata de explicar o fenómeno centrando-se na questão moral ou antropológica, mas sim de entender, do ponto de vista político, como um Estado pode ser capaz de produzir agentes em que a sua função, com a mesma eficiência, é a de agentes reprodutores dos seus objetivos. O problema do mal passa então a ser questionado na sua dimensão política, numa visão original que é a da sua “banalidade”. Com isso, há uma ampliação do pensamento político original de Hannah Arendt.

Durante o período nazi, o povo alemão matava e deixava morrer por, supostamente, não saber o que estava a acontecer. Os judeus foram mortos, mas também os deixaram morrer, porque muitos não se revoltaram, não reagiram. Diante desses fatos, Arendt aponta para uma dimensão terrível do mal, pois para ela, não está apenas nos grandes crimes da história, mas em todas as pessoas que não estão comprometidas com a vida. Em outras palavras, em todas as pessoas que matam ou deixam morrer.

Desse ponto de vista, podemos questionar sobre a banalidade do mal no contexto político contemporâneo nos seus diversos aparatos repressivos como a corrupção, o clientelismo, o (mau) uso da máquina pública, o poder judicial e o exército, os medicamentos que não chegam aos países pobres ou regiões carentes, hospitais deficientes ou o uso de tortura, como exemplos da banalização da violência no nosso mundo moderno.

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Sofia Afonso Ferreira

Portuguese living in Stockholm. Literature, politics, economy and Middle East.