[TW] A Romantização da Anorexia e Cassie Ainsworth

Sofia Brayner
5 min readAug 13, 2018

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Skins (2007) é uma série de televisão britânica que acompanha a vida de adolescentes em Bristol, sudoeste da Inglaterra, pelos últimos dois anos do ensino médio. Cada episódio é focado em uma das personagens e explora temas como famílias problemáticas, transtornos mentais, sexualidade, abuso de drogas e morte. Também é conhecida como a série que todo adolescente via e acreditava que sua vida era um completo tédio.

Cassie Ainsworth, interpretada por Hannah Murray, era uma dessas adolescentes. Logo no começo, ela é descrita como “magra, loira e que diz ‘wow’ demais”. Ela é retratada como uma adolescente excêntrica, gentil e inteligente que sofre de alguns distúrbios, sendo o mais explorado a anorexia nervosa. Se revermos a série, percebemos que a personagem é construída pelo seu distúrbio alimentar.

Cassie dá dicas e nos ensina, por exemplo, como distrair as pessoas para elas não perceberem que você não está comendo. Para qualquer adolescente que tem um relacionamento ruim com comida, isso é um gatilho enorme e um novo aprendizado. Quem quiser poderá aprender sem ir muito longe na pesquisa. Além disso, ela ensina que beber muita água faz você perder o apetite ou como colocar pesos nas suas roupas para parecer que você está com mais quilos na balança. De outra maneira, te levariam novamente para o hospital, achando que você está tendo uma recaída.

Cassie era excêntrica, única e bonita. Além de tudo, um estilo peculiar com grandes chapéus, flores no cabelo e vestidos longos. Ela se recusava a ser colocada dentro do padrão ideal dos adolescentes. O Tumblr tinha acabado de ser lançado (2007), os blogs estavam bombando, e ambos já estavam lotados de posts e fotos de Cassie. Fóruns na internet discutiam a personagem, suas intenções, seu estilo. Até tentavam desesperadamente seguir e criar a sua dieta. Foi nessa leva que as comunidades pro-ana e pro-mia (plataformas que promovem a anorexia e bulimia) começaram a utilizar a imagem marcante de Cassie de uma nova forma: frases da personagem sendo usadas como mantras, ela sendo usada como thinspiration (pessoas extremamente magras que "inspira" as pessoas para emagrecer cada vez mais) e memes de Cassie dentro do universo da anorexia/bulimia foram cada vez mais comuns. Esses fóruns tinham por objetivo criar um ambiente de comunidade, uma vez que existiam tópicos interativos para os membros compartilharem os problemas, complicações e sentimentos da doença, dicas e ajudas. Para os usuários era um lugar para relatar experiências com pessoas que os entenderiam e tentariam ajudá-los.

Em 2012 muitos desses tumblrs foram banidos. E, além disso, se hoje você pesquisar “Ana”, “Mia”, “Anorexia”, “Bulimia”, e qualquer outra tag associada a distúrbios alimentares, será surpreendido com um aviso, em conjunto com um site de ajuda. Com isso, começou a surgir blogs que falam de anorexia (e a glorificam), mas que não se intitulam pro-ana para não serem banidos (this blog does not promote anorexia são as célebres descrições). Dessa forma, ainda é muito comum frases, fotos e vídeos de Cassie pela plataformas. Esses blogs ainda compartilham diários pessoais, fotos de modelos e celebridades, fotos das próprias pesssoas (body check), dietas, dicas para não comer e de métodos compensatórios (laxantes e vomitar) e frases que complementam a dor de um(a) adolescente que não sabe mais para onde fugir.

Algo muito comum também são posts meanspo, que seguem uma linha parecida com o thinspo. Meanspo vem de mean inspiration, uma forma muito cruel de incentivar transtornos alimentares (vide exemplo abaixo). É um grande ciclo sem fim: pessoas com distúrbio vão atrás de plataformas para pesquisar seu distúrbio. Elas acabam caindo nesses sites que encorajam tudo aquilo. Vira um gatilho. A pessoa continua.

E o que Cassie Ainsworth tem a ver com isso tudo? Muitas garotas cresceram com Cassie e queriam ser a garota, uma vez que, apesar de ter uma séria doença, ela era a protagonista de um seriado e fazia coisas muito legais. Muito mais legais que a maioria dos adolescentes da época, muito mais legais que qualquer outra pessoa saudável. Cassie podia estar doente, mas ela ia para festas, ela tinha amigos e era amada por todos. Era um elogio ser equiparada a Cassie, era um sinal de singularidade. Vendo hoje, parece extremamente problemático como a anorexia foi retratada: como um estilo de vida, como algo que define a vida de uma pessoa. Mas em 2007 era algo que ninguém estava fazendo. E que, ainda hoje, ninguém faz: falar ou tentar falar sobre distúrbios alimentares. As pessoas — eu inclusa — se identificavam com a personagem da Cassie não pelo seu estilo, ou sua magreza, mas simplesmente por compartilharem de uma doença comum.

Acho que o maior problema de Cassie na série — ou melhor, de seus criadores — é trabalhar a anorexia como um estilo de vida. E, ao colocarmos a anorexia dessa forma, em uma série global, é de fato dar uma única visão da doença. De tornar frases como I didn’t eat for three days so I could be lovely um mantra, quando na verdade anorexia é muito mais do que isso. Garotas e garotos assistiam e se sentiam mal, como se a doença deles fosse outra, ou como se eles estivessem fazendo as coisas erradas para atingir aquele objetivo. Eles não eram magros o suficiente como Cassie, eles não conseguiam não comer por 3 dias, eles não desmaiavam o suficiente, eles não eram levados ao hospital, eles não tinham de colocar pesos na suas roupas, eles não conseguiam ter amigos, eles não conseguiam ir a festas e encher a cara, eles não conseguiam se drogar.

Hoje em dia, os roteiristas e escritores deveriam seguir algumas regras quando criam personagens que podem funcionar como gatilhos. Não mencionar os pesos das personagens, serem cuidadosos com as manias e técnicas que as personagens usam, ou inserirem personagens que glamourizam a magreza. Há 11 anos atrás os escritores de Skins não pensaram nisso.

Me distanciando muito do meu distúrbio alimentar — e hoje, com muita luta e ajuda, consigo fazer isso — percebo que, de certa forma, eu tinha outra visão da minha doença. E não, eu não culpo totalmente Cassie por isso. Da mesma forma que não culpo as modelos e celebridades magérrimas nas capas de revista e nas televisões por isso. De certa maneira, eu me sentia completa, no controle e totalmente absorta no meu distúrbio. Acreditava fielmente que aquilo me definia, que aquilo era como eu deveria ser porque de alguma forma me escolheram. Eu era especial. Eu era única, e eu era boa naquilo, eu conseguia lidar com aquilo.

Não quero achar um culpado, eu só quero conseguir dizer que a vida como Cassie levava não era bonita, não era super cool e lovely. Era um inferno. E a maneira que os criadores da personagem levaram isso também não foi cool. A vida com um distúrbio alimentar não é bonito como assistimos em Cassie. É viver com a certeza que talvez amanhã você não esteja mais viva. E estar tudo bem com isso, contanto que você esteja magra.

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