Julius, Uma odisseia nos morros
O poder de se assumir um personagem assumidamente realista no rap nacional.
Um cenário instável é a principal imagem criada nos versos do BK’, para quinta faixa do seu novo álbum ‘’Gigantes’’. Conversando com alguns amigos, concluímos que essa faixa, obtinha um significado tamanho para que seja ouvida de uma maneira tão superficial e tratada apenas como uma obra ficcional. O público do Rap nacional hoje é vasto e variado em questões raciais, socioeconômicas e regionais, fazendo com que muitas das referências em determinadas músicas sejam perdidas em seu profundo valor. O caráter marginalizado do rap ao mesmo tempo que aproxima, distancia sua valorização como poesia ou até mesmo um roteiro rimado, quando não existe uma visualização imaginária dessas linhas por seus ouvintes.
Julius, é uma música de ampla subjetividade, que mistura referências do funk “proibidão” das favelas cariocas do Rio de Janeiro, com o seriado “Todo Mundo odeia o Chris” ambientado no Brooklyn/ NY. O principal elo que une essas distintas referências é a figura do homem negro, e o sistema em que ele se cria. A associação do homem com o ambiente em que ele nasce, é respaldado pelo filósofo “Thomas Hobbes” e sua tese de que o homem já nasce mau, ele não sabe viver em sociedade e precisa de um estado autoritário, que dite as regras, as normas de convivência. Julius já começa em um cenário caótico de “guerra”, onde a vida que é “referência se torna interferência”, ressaltando uma dicotomia, prosperar é participar dessa guerra e desfrutar de seus ônus e bônus. Essa é realidade da comunidade e de seus moradores, muitos ali apenas vítimas de um sistema racista que desde a abolição da escravatura não contribui para inserção do negro em sua sociedade. Essa “exclusão” age diretamente na reprodução da criação de futuros marginais, crianças “selvagens à margem”, projetos dessa situação vulnerável.
A partir desse momento, a música faz uma referência direta a um personagem conhecido popularmente. Fabiano Atanásio da Silva, ou “FB” integrante da facção “Comando Vermelho”, liderou o tráfico no Complexo da Penha, Chapadão, Juramento, e outras comunidades. Ele ficou conhecido por ter o costume de guerrear com seus rivais, com seu bonde conhecido como “Trem Bala”. FB se destacava pelas contantes invasões aos territórios inimigos, entre elas, as que mais se destacaram foram no morro da Mineira, Macacos e Serrinha.
Sua vida no Complexo da Penha era como de um Rei, levando uma vida extremamente luxuosa e de ostentação, com roupas de grifes, carros importados e muitas mulheres. No auge de seu poder e domínio nos morros, ele virou tema do funk “Vida Bandida 1” do MC Smith, os versos do BK’ — “tá fortão na hierarquia” e “O nome no proibidão pra que o mundo ouvisse” são uma alusão direta a essa música.
Já no seriado “Todo mundo odeia o Chris’’ (2005–2009), Julius é o pai da família negra em um bairro pobre de Nova York, ele mantém dois empregos para sustentar sua família, e se mostra sempre extremamente preocupado com suas finanças. O vínculo entre esses dois mundos é o verso — “12, 157, Julius, dois empregos’’, remetente a dois artigos do Código penal brasileiro. (Artigo 12 :Tráfico de drogas); (Artigo 157: roubo mediante ameaça e violência), como se esses fossem os dois empregos do Julius. Esse paralelo feito entre esses universos é o exemplo de como a imagem do homem negro em determinadas áreas de instabilidade distorce a sua imagem perante a sociedade. O medo que se cria pelo símbolo da bandidagem e do crime está associado a uma estrutura racista e punitivista que sofre consequências indiretas de seu preconceito. A presença dessa faixa em um álbum de rap nacional hoje, não é apenas para contar a rotina do tráfico (muitas vezes glamourizada pelo Trap), mas como em sua profundidade, ela entegra de maneira madura a vivência para quem nao tem contato com a mesma.
O instrumental ficou por conta do El Lif Beatz, colaborador de BK’ desde o aclamado “Castelos & Ruínas’’. O produtor soube muito bem como juntar o boombap com o baixo e a surdina — por Magno Brito e Diogo Gomes respectivamente — gravadas especificamente para a música, destoando da costumeira utilização de samples prontos. Esse não é um instrumental que varia ou surpreende a quem escuta, mas a simplicidade é o que encaixa perfeitamente para acompanhar a narração do BK’. Versos potencializados por “ad-libs” (improvisações) que auxiliam na figuração da história contada, pedem beats mais “limpos” onde a riqueza e a versatilidade vem nas notas do baixo e da surdina. A mudança no beat em 3:10’, traz uma atmosfera sombria acompanhada de quase um apelo, o choque da vivência e suas consequências diárias nas comunidades do Rio de Janeiro é o mais puro relato de uma voz que fala por inúmeros sobreviventes dessa realidade.
Com certeza, Julius é um clássico instantâneo pela proeza da sua composição brilhante, a exaltação de um mundo caricaturado pelas suas mazelas, fazendo com que Bk’ se estabeleça como um dos melhores contadores de história do rap nacional, mesmo sendo ela real ou ficção.
Por: Isabela Carolina Rosa/Twitter: @babooshhhka