E a fome bate na Aorta

Sonia Cristina
3 min readNov 20, 2017

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Ilustração: Laz Muniz

A primeira vez que a vi, ela estava sentada na grama, com um talo de capim nos lábios, e um fiapo de saliva esverdeada começava a escorrer do canto da boca. Pensei que se tratava de um cataclismo, mas logo depois ela olhou para mim e sorriu. Seu nome é Isis.

Como se eu estivesse sempre ali, ela continuou pensando em voz alta:

— E eu contava as batidas do meu coração o dia inteiro. Na hora em que nasci, o cordão umbilical apertou meu pescoço, mas eu nem liguei. Só queria continuar escutando meu coração bater e pular. Era domingo. Agora perdi a conta e os números sumiram no ar.

De dentro da casa, um berro estridente interrompeu o monólogo.

— Mijou na cama de novo, Ísis…Que vergonha! Nove anos nas costas!

Ignorando minha presença, ela começou a fazer uma oração:

— Querido Deus, me dá uma canja! Preciso parar de fazer xixi na cama. Minha irmã vai contar isso na escola e vão me chamar de mijona. Que abacaxi! Não vai ser sopa resolver isso. Mijona é uma ova! Querido Deus, minha batata está assando. Por favor, me ajuda! Amém.

Lembro-me que naquele mesmo ano, Ísis conseguiu parar de fazer xixi durante o sono.

Depois da oração, ela emendou a conversa comigo, dizendo que começou a sentir uma fome que formigava dentro do seu coração. Nesse formigamento, confundiu-se nos números e perdeu a contagem das pulsações. Daí para frente começou a caminhar como o“coração na mão”.

Meu interesse por aquela menina cresceu. Sua passividade, quase catatônica, não era de uma heroína; era de um medo sem explicação. E suas palavras quase sempre evocavam comida: batata quente, abacaxi, sopa, ova, canja… Ela estava com a cabeça cheia de banquetes imaginários.

Isis era uma menina faminta de amor.

No colégio, as freiras arremessavam-lhe pedaços de giz e gritavam:

— Presta atenção na aula, menina! Por acaso está pensando na morte da bezerra?

A mente de Isis flutuava sobre qualquer coisa, menos sobre aquelas palavras das freiras, que, com suas pontarias perfeitas, sempre acertavam o giz na testa da garota. Ela ficava vermelha de vergonha e pensava:

— Amanhã vai ser sopa no mel, vai ser canja de galinha socar uma caixa de giz inteira na xoxota dessas freiras. Hoje não tenho coragem, mas um dia vai ser “pão, pão; queijo, queijo”.

No intervalo das aulas, Isis corria para o banheiro e ficava lá criando mundos imaginários… Estava encantada com o homem de um calendário que ficava pregado atrás da porta. Ela apaixonou-se por aquele homem lindo de olhos azuis pacificadores, barba, cabelos castanhos e anelados (na altura dos ombros). Por ali ela ia ficando… Sorrindo para o Cristo pregado atrás da porta e não na cruz.

Os anos passavam… Ela segurava seu coração com a mão esquerda; e com a direita procurava comida. Isis vagava pelos arredores e, sem encontrar a verdadeira inspiração que lhe fazia falta, pegava alguns frutos que os morcegos deixavam cair nos voos noturnos. Nesse estado de espírito,criou-se uma cooperativa, onde os tais morcegos eram seus pares circunstanciais.

Isis estava com o estômago dilatado, o corpo gordo e o coração magro.

Num domingo, eu estava na cozinha descascando cebolas, quando, lá do quintal, ela procurou alguém que pudesse ajudá-la a emagrecer e, naturalmente, se fixou em mim. Aquele foi o olhar do destino, não só dela, como também o meu, pois isso já tem mais de meio século. E para nós é como se fosse no domingo passado.

Trocamos um sorriso cúmplice. Ísis foi andando devagar, exalando um suspiro. Consegui vê-la até acabar de cortar as cebolas. Depois as lágrimas me embaçaram a visão e Isis transformou-se num ponto desfocado na linha do horizonte.

Esfreguei os olhos e lambi o sal das gotas aceboladas que escorriam no meu rosto.

Lá estava ela: caminhava segurando o coração com a mão esquerda; e a direita, vazia. De longe, acenou para mim, e ouvi sua voz sussurrar:

— Em jejum até que não está mal, mas serei andarilha. Minha caminhada terá um novo recomeço quando você ouvir: “Encontrei o alimento certo. Não sinto mais formigamento no coração e os morcegos foram embora. Estou satisfeita”.

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