Pedro e Antônia

Sonia Cristina
5 min readJan 25, 2018

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ilustrações: Laz Muniz

Pedro e Antônia navegavam. Em tempos passados, um viajante solitário resolveu criar raízes e vendeu-lhes, por três dinheiros, a arca que deslizou pelo mundo.

A história da arca e dos dois começou por iniciativa de Pedro. Navegavam entre ondas, tempestades, calmarias e, para que não lhes faltassem ingredientes românticos, resolveram se casar no cais, onde as histórias guardam as juras dos amores alucinados, a esperança do improvável e é território onde a paixão costuma pairar sobre o delírio dos solitários.

O mar, em poucos dias, transforma-se num mundo fora do mundo e basta fazer um pouco de solidão para entender que, mesmo indo juntos, vamos sós, como este casal.

Escolheram este cenário para sonhar. Eram eles quem definiam seus próprios sonhos e controlavam o momento propício de acordar. Sonhando, conversavam com pessoas, bichos, plantas e, como nos sonhos guiados todos falam português, os diálogos fluíam fáceis.

Pedro ensinou Antônia a pescar e, juntos, estocaram uma grande quantidade de alimento. Depois de saciados, só queriam o silêncio. No máximo, ouvir aquelas vozes que vêm das ondas, ou o barulho de uma concha do mar no ouvido de quem nasce nas montanhas.

Às vezes, Antônia dizia:

— Ninguém come tanto assim… Isso é mau agouro, Pedro. Muita comida pode transformar sonhos em pesadelos.

Quando sonhava, Antônia se mostrava soberana! Tinha força suficiente para fazer navegadores solitários irem ao porto para encontrar mulheres à espera de marinheiros que jamais voltariam. Visitava lugares de acordo com a sua vontade.

Numa noite sem estrelas, ela dormiu mais cedo. Sua meta era ir a Los Angeles, para conhecer Hollywood. Queria visitar Al Pacino e interrogá-lo por ter sido o advogado do diabo. “Afinal”, pensava, é sabido de todos que esta entidade nunca precisou de advogado. Ele é acusação e defesa. Advoga em causa própria”.

Aproveitaria também para invadir o camarim de Robert De Niro e, roubar dele, um beijo de verdade.

Ocorre que uma furiosa tempestade do seu mar mudou a rota do sonho. Um vendaval jogou Antônia na Itália, dentro do Palácio Apostólico, na cidade do Vaticano. Foi tão rápido, que ela perdeu o controle da direção e a decisão de escolher a hora de acordar.

No Palácio, uma cerimônia começaria em breve. O Papa sorriu como se esperasse por ela e, gentilmente, conduziu-a até a janela onde centenas de fiéis o aguardavam. Mostrou a moça para a multidão, pegou o microfone e revelou:

— Agora o Papa é ela!

E continuou seu discurso:

— Viva o Curupira, viva a Mula sem Cabeça, viva o Lobisomem, viva o Boitatá, viva o Boto, viva a Cuca, viva o Negrinho do Pastoreio! VIVA!

Os fiéis desgostosos da mudança radical gritaram em coro, e pela primeira vez, nos sonhos de Antônia, gritavam na língua deles:

Vattene! Torna ala tu terra! Maledetta!

A estampa do pânico carimbou o sonho dela:

— Pelo amor de Deus, Pedro, me acorda!

— Pedro, me acorda!

— Pedro, não me negue isso… Acorda-me!

O rosto dela parecia pintado de branco, tamanha a palidez que a possuiu. Num relance, Pedro olhou para ela e, assustado, sacudiu-a:

— Nossa Senhora! Responda se ainda houver alguém vivo neste corpo!

Ela conseguiu abrir os olhos e falou ofegante:

— Onde você estava? Pedi três vezes a mesma coisa e você me negou. Nem que seja só por coincidência, mas um homem com o mesmo nome seu negou Cristo três vezes também.

— Não seja boba! Você não é Cristo.

— No sonho você me negou ajuda três vezes, nossa arca foi vendida por três dinheiros. Acho que essa conta foi de Deus, provavelmente por ser trino.

— Calma, bobinha! O que você teve foi um pesadelo. Já passou!

Por alguns momentos ficaram calados.

É preciso silêncio e atenção para perceber o que está à nossa volta o tempo todo: o crepúsculo tinha uma suavidade tão delicada, que a garganta se aperta, de uma comoção que não se dirige a ninguém, apenas à luz, à vastidão do céu, ao mar que se descobre e, logo à frente, aparece como um espelho.

Ela,com a alma abafada, perguntou se ele a amava de verdade e ele, cumprindo um ritual, respondeu o que já tinha dito a outros corações:

— Como nunca amei ninguém!

Por minutos, ele descansou sem sonhos e, ao abrir os olhos, contemplou-a acordada na arca improvisada… Sua expressão indicava que aquela viagem tinha chegado ao fim.

— Cansei de navegar, Pedro. Estou querendo me fartar em outros banquetes.

— Tudo bem. Podemos inventar uma nova fantasia, um novo desejo… Dar tempero novo à nossa rotina.

Pedro retirou o tampo que mantinha a velha banheira cheia. E a água foi baixando como a maré. Levantaram-se com cuidado e deram um sorriso cúmplice. Afinal era apenas mais uma das suas diversões durante o banho, um pequeno fetiche que corria pelo ralo.

Antônia sorriu para o marido:

— Sim. Quero novos temperos para apimentar a rotina. Mas, Pedro! Com tempero ou sem tempero, a vida, às vezes, é uma loucura…

E foi a loucura que, desprovida de razão, movimentou seus longos dedos e puxou a ponta do próprio novelo.

A história de Pedro e Antônia foi tomada por tal desatino que também se esvaiu pelo ralo da banheira.

Eis o final. Qualquer palavra minha será inútil. Mas acrescento que permaneci no cenário montanhoso, com uma linda concha recostada ao ouvido, escutando o murmúrio das ondas do mar.

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