Sopa de Letrinhas

Sonia Cristina
4 min readNov 8, 2017

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Ilustração: Laz Muniz

Gregório não aguentava mais mudar de cidade. E não se tratava da sua profissão, pois não era viajante e, na verdade, nem emprego ele tinha; vivia às custas da mulher. O motivo é que seu filho não comia e não falava. Era um fiapo de gente: magro, com os olhos esbugalhados e que, de uma hora para outra, começou a vomitar letras de papel. A única coisa que ele conseguia engolir era uma sopa de macarrão, onde a massa tinha forma de letrinhas variadas. Aflito, ele separava as letras com a colher, como se quisesse dizer alguma coisa.

Não existiu medicina para resolver o problema do menino.

Um curandeiro disse que Macarrão tinha nascido com olhos de surdo. Por isso, ganhou o apelido de “Macarrão dos Olhos Surdos”.

Mal se acomodaram num povoado e, no dia seguinte, todos já sabiam da chegada do menino. Quando seus pais acordaram, Macarrão estava no jardim, e uma multidão jogava comida para ele. A cada tomate, pão velho e ovos arremessados, o menino vomitava “montanhas” de letras de papel.

Sua mãe, usando de esperteza, e para suportar a existência da aberração que saiu da sua barriga, resolveu cobrar ingressos, para que todos vissem aquela criatura vomitar letras. E, com o dinheiro arrecadado, não teve nada a reclamar. Construiu e decorou uma mansão de sete andares, onde a ostentação emergente mostrou a cara: boate com luz negra, elevador, coleção de bebidas em bares espelhados, suítes redondas, tapetes de pele de onça pelo chão, cabeças de bichos empalhados nas paredes e um gigantesco jardim no térreo, para que as letras de papel não invadissem a casa. Ela ocupava o sétimo andar.

Gregório continuou sem emprego e dormia num barracão no fundo do quintal. Todas as tardes, ia beber no único bar daquele lugar sem nome. O pobre suava, asfixiava-se, o calor ali era enorme, nunca chovia e nunca ventava: ele e o asfalto flutuavam. Entrou e foi direto para o balcão. Seu Domingos, dono do bar, trouxe logo uma garrafa de cachaça, um copo e um sorriso.

Gregório estava de mau humor:

— O senhor tem filhos, Seu Domingos?

— Tenho um casal.

— Pois, então, meus pêsames! Ah, se eu soubesse… Não deixaria meu filho nascer.

— Essa é boa! Você tem é muita sorte. Meus filhos só me dão despesa. Já o seu filho te dá lucros. E que lucros, não é mesmo, Gregório?

— Aquela aberração só dá lucros para a minha mulher. Eu não ganho nada.

Bebeu durante toda a tarde e foi embora sem pagar a conta.

Macarrão dos Olhos Surdos ocupava o primeiro andar da casa. Quando terminava seu trabalho no jardim, vomitando para a multidão, recolhia-se ao quarto e, sentado na cama, procurava identificar alguma coisa nas letrinhas da sua sopa.

Desde que nasceu, seus olhos esbugalhados testemunhavam as esquisitices humanas, e da sua boca não saíam nem palavras nem choro, até que ele vomitou as primeiras letras de papel. Daí para a frente, passou a vomitá-las todos os dias, tentando traduzir o que seus olhos ouviam, mas que sua boca não escrevia e suas mãos não falavam. Ele era analfabeto.

Numa noite, no ponto culminante do calor, enquanto quase todos dormiam, um vendaval descobriu o povoado. Macarrão dos Olhos Surdos foi o único que não dormiu. Parecia esperar por aquele vento. Largou sua sopa de letrinhas e correu para o jardim. Um tornado de letras de papel começou a ganhar forças, e o menino se jogou nele, como se algo infinito tivesse, por fim, terminado. Entre letras, Macarrão sumiu no ar e nunca mais foi visto.

Na manhã seguinte não havia vento, mas ficaram sinais da sua passagem. Estava tudo revirado. A mansão de sete andares foi reduzida a ruínas, e os pais de Macarrão tropeçavam, tontos, pelos escombros, com a certeza de que tinham perdido o “pão de cada dia”.

A notícia do sumiço de Macarrão dos Olhos Surdos se espalhou como rastilho de pólvora, e o povo pareceu entrar em ebulição. As pessoas correram e se embolaram nos restos escaldantes da mansão de sete andares. No meio do tumulto, uma menina gritou:

— Olha, gente! Ainda tem gosma de papel rabiscado aqui.

E lá estavam, entre as ruínas ainda quentes, pedaços de papéis no chão, formando uma frase:

“Nasci órfão de pai e mãe, que ainda não morreram, e tenho fome de aprender a ler e escrever”.

Todos tentaram, a qualquer custo, ver e decifrar aquela frase. Sacudidos pelo bafo da destruição, aos tropeções, homens corriam, mulheres gritavam e arrastavam seus filhos, crianças choravam sufocadas entre pernas adultas: parecia estouro de boiada. Foi assim que eles pisotearam os restos de papéis, despedaçando o único testemunho de Macarrão dos Olhos Surdos.

Na correria, acabaram levantando um pó que ofuscou todos e, segundos depois, como fantasmas, é que as pessoas tiveram sua aparição desordenada sob a névoa de poeira. Ninguém conseguiu ver nada.

E aquele povo, o mesmo povo que foi tomado por uma angústia tão intensa, ao mesmo tempo livrou-se dela com tanta rapidez como se dá pêsames a alguém.

Não demorou muito para que o cotidiano voltasse, trazendo com ele o esquecimento. E foi ele, o esquecimento, que enterrou todos na poeira de suas banalidades. Mas havia também uma sensação de vitória coletiva naquele povoado: afinal, as coisas não haviam mudado. Tudo continuou como era antes, antes da chegada daquela estranha família: as esquisitices humanas, o calor asfixiante, a falta de vento e a falta de chuva. Ninguém mais se lembrou sequer de contar a história de Macarrão dos Olhos Surdos e sua sopa de letrinhas.

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