A mancha
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Por descuido, um pingo de sorvete havia caído sobre a blusa nova de Lilian. O episódio trivial, para ela, teve um peso diferente: como se algo a tivesse acertado, fazendo com que ela se desfizesse em muitos pedaços. Mas, naquele exato momento, isso era algo que ela não entendia muito bem.
Era uma tarde de domingo ensolarada, como muitas naquela primavera. Ela havia comprado seu sorvete preferido — pistache com cobertura de chocolate— e desfrutava daquele dia que era tão familiar quanto qualquer outro. Os domingos tinham um gosto especial e eram os dias mais esperados por ela. Neles, Lilian vestia sua melhor roupa, fazia seu melhor penteado, ensaiava uma maquiagem e saía errante pela cidade.
Embora levasse uma vida relativamente analógica, ela costumava carregar em sua bolsa um iPod — cujas músicas eram atualizadas pela afilhada sempre que Lilian pedia — e fones de ouvido. Assim, todo domingo parecia com um ritual que consistia em se perder pela cidade, ao som de uma trilha sonora escolhida a dedo.
Em seus itinerários, ela costumava parar sempre em um café diferente. Em dias muito quentes, recorria às deliciosas casquinhas de sorvete. Mas, no dia em que aquele pingo de sorvete caiu sobre sua blusa nova, ela sentiu como se aquela prática quase religiosa, criada por ela, tivesse sido arruinada. Era como se o quadro de Santa Bárbara, que se acomodava na parede branca acima da cabeceira da cama, tivesse caído. Era como se um filme, do qual ela não gostava, tivesse sido gravado em cima da fita cassete na qual ela costumava gravar os filmes pornôs que passavam na TV.
Quando o fatídico episódio aconteceu, quando o maldito pingo fez-se mancha na blusa branca e nova, Leonard Cohen cantava Hallellujah. E foi nesse momento que ela lembrou de como os rituais de domingo começaram. Sim, não havia sido sempre assim. Foi logo após a morte do marido, com quem ela foi casada por 35 anos e a quem amou profundamente um dia, mas não até o último.
Apesar disso, depois da data em que o enterrou, ela foi tomada por um vazio, uma angústia que jamais experimentara, nem mesmo com a morte da mãe. Lilian passou por um embotamento no primeiro ano de seu luto, nada parecia estar no lugar, havia uma desordem que jamais poderia voltar a ser seu antônimo.
Assim, começou a criar pequenos rituais para preencher aquele vazio que o marido deixara — o vazio era um espaço não mais ocupado, mas ao mesmo tempo, era aquilo que tomava grande parte de sua própria vida agora. O vazio era como a escuridão ou um grito que, no fim, se tornava eco.
O primeiro ritual foi o diário. Ela começou a escrever todos os dias. No começo, não sabia bem o que queria registrar ali, afinal, sua vida era um amontoado de rotina, mas com o passar do tempo, passou a anotar, além das coisas que aconteciam no dia, qualquer pensamento que lhe viesse à cabeça. Às vezes se chateava, porque poucas coisas lhe vinham à mente.
O segundo ritual envolvia gravar os filmes pornôs que passavam pela madrugada na TV. Ela costumava assisti-los quando as tardes pareciam entediantes e infinitas. Para ela, esse ato tinha um tom subversivo que parecia destoar da imagem que procurou passar para os outros a vida toda. Era seu pequeno e secreto pecado.
Mas seu ritual mais importante eram os passeios sem roteiro prévio, ao som de uma música da qual gostava. Normalmente, ela escolhia uma canção que ouvia repetidamente durante todo o domingo, assim, cada um deles era marcado por uma música específica, o que ela considerava um tópico interessante para anotar em seu diário.
Agora, olhando para a blusa suja, seus olhos marejavam e ela teve a sensação de que aquilo era viver por nada. Era o que ela tinha feito esse tempo todo, estava aprisionada a uma torre, assim como Santa Bárbara foi um dia, mas a sua torre não era um espaço físico, era uma prisão emocional.
Quando se deu conta, percebeu que estava parada no meio da calçada, o sorvete já derretia, escorrendo pela sua mão direita. Uma jovem, ao notar que havia algo de errado, parou para perguntar se estava tudo bem. Abrindo um sorriso gentil, Lilian disse que sim, enquanto limpava a mão suja na blusa nova e branca. Por um instante, teve a certeza de que aquela moça achava que ela fosse louca. Talvez realmente estivesse enlouquecendo.
Ao voltar para casa, tirou a blusa que agora parecia imunda e, na pia do banheiro, esfregou a peça com sabão no intuito de que pudesse tirar a mancha. Foi em vão. A mácula ainda permanecia, mas ela já não se sentia aborrecida. Com calma, torceu a roupa e a jogou no lixo.
Naquele dia, em seu diário, ela escreveu:
Algumas manchas permanecem para sempre.
Isso é viver por nada. Eu me pergunto o que é viver por algo.
As tempestades sempre voltam.
Que Santa Bárbara esteja comigo hoje e sempre!