Os Despossuídos: a utopia anarquista de Ursula K. Le Guin

Yoná Souza
4 min readJun 7, 2020

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Antes de tudo e de mais nada, gostaria de dizer que desde que li pela primeira vez Ursula K. Le Guin (no começo deste ano infernal), senti uma necessidade de escrever sobre ela e sobre seu trabalho. Posterguei por vários meses — vocês não sabem o quanto eu caminhei pra chegar até aqui —, mas cá estou! Quem é mais próximo a mim já deve ter me ouvido recomendar esse livro ou dizer: “eu não paro de pensar nesse livro”, porque sim, essa obra mexeu comigo em tantos níveis que nem sei. O que eu sei é que a Le Guin e ‘Os Despossuídos’ me trouxeram esperança, e é isso o que me faz gostar tanto da criatura e da criadora.

Considerado um clássico dentro dos gêneros de ficção científica e fantasia, ‘Os Despossuídos’ foi publicado pela primeira vez em 1974, nos Estados Unidos. O trabalho rendeu à autora importantes galardões como o Prêmio Nebula e o Prêmio Hugo nas categorias de melhor romance de ficção científica ou fantasia. Dito isso, meu intuito aqui não é exatamente escrever uma resenha sobre o livro, contar diversos detalhes sobre a narrativa, tampouco me aprofundar nas bases teóricas do anarquismo. Meu principal objetivo é destacar alguns aspectos que, a meu ver, tornam o livro tão caro a mim e que justificam a minha ideia de que esse é um livro que merece ser lido.

De forma brilhante, Le Guin nos transporta para seu mundo e nos apresenta aos planetas gêmeos de Urras e Anarres. Podemos dizer que, de maneira geral, a organização política e econômica de Urras muito se assemelha ao sistema capitalista — sendo possível traçarmos esse paralelo em diversas passagens do livro; enquanto que no planeta de Anarres a organização social é norteada pelos princípios do anarquismo tratando-se, portanto, de uma sociedade autogestionada. Tal sociedade foi criada por dissidentes de Urras que colonizaram esse novo planeta árido, após uma revolta liderada por Odo (uma mulher porreta!).

Penso que cabe dizer aqui que a escrita inventiva da autora, bem como as questões filosóficas e as temáticas tratadas por ela em seu trabalho, também merecem destaque. Em ‘Os Despossuídos’ estão presentes tópicos sobre política, gênero, sexualidade, existencialismo etc., que são abordados de maneira ímpar dentro do contexto da ficção científica/fantasia, mas que de certa forma, o extrapolam.

No entanto, entre tantas coisas que eu gostaria de destacar, talvez a principal delas seja o fato de que a autora não só descreve, mas desenha com palavras, de forma muito interessante, como seria a organização prática de uma sociedade anarquista. E a cada capítulo eu me vi mais e mais animada em vislumbrar e imaginar essa organização: a educação, o trabalho, a moradia, as relações, as identidades. Vale ressaltar que Ursula K. Le Guin, não por acaso, foi uma grande entusiasta e estudiosa da ideologia anarquista.

Outro ponto interessante a salientar é quanto ao papel da mulher dentro da narrativa. Se em Urras as mulheres não são tidas como iguais em intelecto e são vistas apenas como objetos cujo papel se resume a satisfazer os desejos e vontades dos homens; por outro lado, nessa nova sociedade criada pelos anarrestis, a sua não-objetificação e seu ‘processo de humanização’ dentro desse planeta livre e igualitário fica evidente. Além disso, como já mencionado acima, temos Odo, uma figura feminina como líder de uma revolta popular e também grande responsável pela filosofia que, posteriormente, veio nortear os princípios de Anarres.

Dessa forma, durante todo o livro os contrastes entre essas sociedades se evidenciam: de um lado o individualismo, a propriedade privada, a divisão de classes, a exploração do trabalho, o sexismo; e do outro, uma sociedade igualitária pautada na coletividade e livre do poder do Estado. Mas, é claro que Anarres, como qualquer sociedade — inclusive as utópicas — tinha seus problemas, e é aí que entra Shevek, o personagem principal da história, que no decorrer da trama se vê passando por diversos conflitos internos.

Shevek, um dos dissidentes de Urras, é um físico que busca desenvolver uma Teoria Geral da Simultaneidade e, para isso, tenta estabelecer uma comunicação/colaboração com Urras visando uma possível união entre esses planetas gêmeos. Ao deixar Anarres, o protagonista revolta a população anarrestis, e ao chegar no planeta dos urrastis se depara com uma realidade desconhecida e chocante. E essa é a viagem interplanetária para a qual somos levados na bagagem (paro por aqui para não dar maiores spoilers).

Nesse momento, talvez você esteja se perguntando: tá, mas se é uma utopia, um livro de ficção científica/baixa fantasia, como é que isso pode te dar esperança de algo? E em que, exatamente? Respondo: não só nesse livro da Le Guin, como em outros trabalhos seus, o que está posto e o que ela defende (e eu estou totalmente de acordo) é que qualquer sistema criado por seres humanos, pode ser mudado por eles. E para mim, essa é a mensagem mais forte. Além disso, esse livro me fez lembrar da importância da utopia, que como bem disse o Galeano, existe e serve para que a gente não deixe de caminhar. O que faz ainda mais sentido para mim, especialmente nesses dias tão difíceis em que vivemos.

Enfim, espero nessas poucas palavras ter, ao menos, despertado algum interesse sobre ‘Os Despossuídos’. Penso que esse é um livro que vale a pena ser lido, não só porque toca em questões importantes e atuais, mas porque eu gostaria que mais pessoas continuassem tendo essa mesma esperança (de mudança). Por último, deixo aqui uma fala da Le Guin em seu discurso no National Book Award em 2014:

“Vivemos no capitalismo, e seu poder parece inevitável. Mas o poder divino dos reis também parecia. A resistência e a mudança muitas vezes começam na arte e ainda mais vezes começam em nossa arte— a arte das palavras.”

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