Projeto Estufa: desfiles e acessibilidade

SPFW
7 min readNov 25, 2019

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Quando se fala em futuro, muita gente imagina que ele é um lugar distante no tempo, fora do nosso alcance. Mas, na verdade, o futuro é uma construção que já está em andamento. Neste exato momento, novos pensamentos e novos processos, que irão transformar radicalmente a realidade como conhecemos, já estão sendo prototipados.

O papel do Projeto Estufa é, justamente, identificar e apoiar as conectar mentes criativas que estão em busca de soluções para as necessidades futuras. Pessoas que estão olhando para o mundo, entendendo as mudanças necessárias e oferecendo soluções, seja no âmbito da tecnologia, da sustentabilidade ou da política — como as demandas de causas raciais, de gênero, acessibilidade, etc.

“Para pensar diferente, é preciso independência”, diz Olivia Merquior, diretora da Dacri Deviati, empresa de consultoria e análise de tendências, e curadora das marcas que desfilam no Projeto Estufa. “As pessoas que sobrevivem às grandes mudanças e instabilidades, são aquelas que conseguem se estruturar a partir da curiosidade, da capacidade de organização”, conclui.

Projeto Estufa N48 — Fechando um ciclo

Na N48, as 6 marcas de moda participantes do Projeto Estufa completaram um ciclo de três participações em temporadas de moda.

Vamos conferir o que as marcas Aluf, Ão, Korshi 01, Lucas Leão, Mipinta e Victor Hugo Mattos, apresentaram em seus desfiles disruptores, criativos e surpreendentes.

ALUF

Ao acessar seu inconsciente num ritual xamânico, a estilista Ana Luisa Fernandes vislumbrou Pegasus, o cavalo alado mitológico. À partir daí, criou esta coleção poética e lúdica, em que formas infladas, babados estruturados e sapatos com saltos esféricos, remetem a balões. Em termos de materiais, há tecidos feitos de linho e poliamida biodegradável, xadrezes compostos de fibras recicladas e lãs nacionais. O toque inusitado fica por conta das peças de plástico reciclado, feitas com 600 sacolas, sobras do próprio ateliê e de parceiros.

ÃO

Performática e experimental, a marca de Marina Dalgalarrondo faz, na coleção Excesso/Excessive Body, uma reflexão sobre as possibilidades de modificação corporal no mundo contemporâneo. Corpos de halterofilistas, adeptos de cirurgia plástica e pessoas trans, inspiram as experimentações de volume, características da marca. O látex aparece como uma segunda pele, um material capaz de distorcer os contornos originais, dando origem a um novo ser. A cartela de cores varia entre tons naturais, como bege e marrom; e artificiais, como amarelo fluo.

KORSHI 01

Se a marca de Pedro Korshi e Albner Lus fosse um brinquedo, seria um Transformer. Afinal, a dupla tem como objetivo principal a produção de peças versáteis que podem ser reconfiguradas de várias maneiras, graças a modelagens inteligentes e dispositivos como zíperes e botões de pressão. Na base desse conceito está a preocupação com a sustentabilidade, que nesta coleção é levada mais além: no desfile, a marca reaproveita peças de coleções anteriores. Destaque para os trench coats desconstruídos, que podem ser usados de 9 maneiras diferentes.

LUCAS LEÃO

Na coleção Sirius, Lucas Leão idealiza o renascimento da liberdade usando tecidos tecnológicos, estampas criadas com software 3D, e interatividade digital. Ele parte de formas utilitárias em tom de bege, que simbolizam o apagamento da cultura pelo autoritarismo, e vai liberando modelagens e cores. A alfaiataria clássica ganha volume oversize, camadas de tecido recortado à laser, e cores como amarelo fluo, laranjas e azuis. Alguns looks poderão ser experimentados virtualmente, sem custo algum, por conta da parceria com a Beyond Compare, especializada em roupas digitais. Para isso, é só mandar um email para: contato@lucasleao.com

MIPINTA

Para libertar o guarda-roupa masculino de suas convenções, o diretor criativo Fernando Miró imaginou, nesta coleção, o choque entre o glamour da balada noturna e a realidade do amanhecer urbano. Disso, resultaram peças híbridas que brincam com os elementos visuais desses dois momentos. Os irreverentes grafismos das ruas se contrapõem à alfaiataria clássica, o brilho dos cristais convive com as listras das sacolas de feira, dos agasalhos esportivos, e das faixas de pedestres. Em resumo, um exercício de estilo cheio de humor, para homens que ousam sair do lugar comum.

VICTOR HUGO MATTOS

Victor Hugo Mattos é um criador múltiplo que não se encaixa num perfil pré-definido. Seu maior talento é imprimir personalidade a looks feitos através do upcycling de peças de brechó, com bordados feitos à mão. Em seu terceiro desfile no Projeto Estufa, Victor mistura peças de crochê e alfaiataria, brincando com os diferentes pesos dos materiais. Os adornos, aplicados manualmente, incluem contas de metal, conchas, búzios e cristais. O resultado deve continuar despertando desejo em artistas da nova geração, como as cantoras Alice Caymmi, Majur e Iza, e o rapper Rincon Sapiência.

Moda acessível para todos, de verdade

Na N48, uma parceria do São Paulo Fashion Week com a Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência (SMPED), resultou num projeto pioneiro que levou recursos de audiodescrição para todos os desfiles do Projeto Estufa. Por meio de um aplicativo para smartphone e tablet, deficientes visuais puderam ouvir comentários de dois profissionais de moda, Lilian Pacce e Dario Caldas, durante a apresentação das grifes. Já nas nas palestras realizadas entre os desfiles, os deficientes auditivos contaram com intérpretes de Libras.

“É a primeira vez que um evento como esse recebeu tradução em Libras e audiodescrição. Temos certeza de que a repercussão da ação no Projeto Estufa fará com que, no futuro, todos os desfiles tenham os recursos de acessibilidade necessários”, declara Cid Torquato, Secretário Municipal da Pessoa com Deficiência.

A jornalista Lilian Pacce considerou a experiência transformadora: “uma iniciativa linda, inédita, que me deixou emocionada e muito honrada com tamanha responsabilidade”. Dario Caldas, que narrou desfiles durante dois dias, conta como se preparou: “fui ao backstage, antes das apresentações, para saber dos detalhes, e poder transmitir tudo para as pessoas que ouviram. Foi emocionante ver a moda inclusiva ganhar mais espaço.”

As pessoas com deficiência visual que estiveram no evento também tiveram a experiência de ir até o camarim, para tocar nas roupas dos desfiles, e conversar com os estilistas. Para Ana Claudia Rodrigues, que é cega, foi uma experiência enriquecedora. “As informações que eu tive de detalhes, de tecidos, texturas, golas e caimento, vão me ajudar muito na hora de escolher minhas próprias roupas”, disse.

Paulo Borges, diretor criativo do SPFW, estava exultante. “O que a gente está vivendo, nesta edição, é algo inédito, não só para o Brasil, mas para o mundo. Poder fazer isso, mostra como a moda não tem fronteira, e como a linguagem da moda é aberta, para que todo mundo possa experimentar, ver, sentir, contribuir e se transformar”. Graça Cabral, cofundadora do SPFW e idealizadora do Projeto Estufa, arrematou: “a inclusão é essencial para termos uma sociedade mais rica, plural e diversa!”

O Projeto Estufa #03 foi apresentado pelo Ministério da Cidadania e Santander, através da lei federal de incentivo à cultura.

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