Raízes e ancestralidade na moda

SPFW
6 min readNov 3, 2019

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Na edição N48 do SPFW, que acabou de acontecer, entre 13 e 18 de outubro, no Pavilhão das Culturas Brasileiras, no Parque Ibirapuera, em São Paulo, pudemos ver um retrato claro do espírito do nosso tempo — o tão falado zeitgeist. A capacidade da moda de expressar o que acontece no mundo atual, pulsou forte nas passarelas. Em consequência da globalização que equaliza as informações e dilui as singularidades, várias marcas elegeram a valorização das raízes culturais, e do fazer manual, como tema central. A busca por identidade, raízes e ancestralidade, nunca foi tão grande. A cultura brasileira aproveitou a oportunidade para ganhar força nas passarelas.

Potência africana

Em sua estreia no evento, o estilista baiano Isaac Silva apresentou a coleção Acredite no seu Axé, uma celebração da cultura afro-brasileira que contou com um time de modelos, maquiadores e colaboradores, majoritariamente negro.

Vale lembrar que a palavra “axé”, em língua iorubá significa poder, energia ou força, presentes em cada ser ou objeto. Nas religiões de matriz africana, o termo representa a energia sagrada dos orixás.

“A ancestralidade é fundamental para mim. Antes de ser quem sou, vieram muitas outras pessoas, como as estilistas Goya Lopes, Júlia Vidal e Marisa Moura, que se dedicam à moda afro-brasileira. E também, artistas como Bispo do Rosário e Hélio Oiticica. Mães de santo, grandes pajés e mulheres indígenas, todos que trazem a cultura ancestral”, diz Isaac.

Na passarela enfeitada com ramos de arruda e potes com sal grosso, o empoderamento negro abriu caminho com alegria e fé. Os modelos exibiram uma seleção de looks totalmente brancos, apropriados para reverenciar Oxalá naquela sexta-feira, 18 de outubro. Havia batas e vestidos feitos de renda richelieu, como manda a tradição das baianas e das mães de santo. E também peças com aplicações de búzios e contas espelhadas, para agradar a todos os orixás. Generosa e inclusiva, a moda de Isaac Silva é feita para todas as silhuetas, gêneros, e tons de pele.

Angela Brito — estilista que também é afrodescendente, natural do Cabo Verde e radicada no Rio de Janeiro — , abordou a cultura black, em seu desfile, pelo viés da música. O lifestyle dos músicos de blues, que sugere uma vida de liberdade e escapismo, regeu a coleção batizada de Fuga.

O estilo da marca, que une a tradicional alfaiataria cabo verdiana, à assimetrias e sobreposições, ganhou cores intensas e bucólicas estampas florais, pintadas em tela, fotografadas e depois digitalizadas por Marcos Florentino — o MAR da dupla MAR+VIN, A beleza das modelos afro descendentes foi realçada por penteados com tranças e por pétalas de flores aplicadas como maquiagem, sobre o rosto, ao modo das tribos do Vale do Rio Omo, na Etiópia.

“Ser cabo verdiana é ser eternamente estrangeira. O meu trabalho fala sobre o meu não-lugar na moda, e o meu não-lugar no mundo.”, diz Angela.

Na sintonia do sertão

Já a Amapô Jeans, das estilistas Carolina Gold e Pitty Taliani, botou o forró na passarela para homenagear mestre Espedito Seleiro, membro da terceira geração de uma família de artesãos, conhecida pela expertise na confecção adereços de couro para vaqueiros e cangaceiros. Seu pai foi o autor das lendárias sandálias usadas por Lampião e seu bando. Elas tinham a sola em formato quadrado para que os rastros não mostrassem aos inimigos a direção que os cangaceiros tomavam.

Depois de assumir o lugar do pai na atividade que sustentava a família, Espedito percebeu que os cangaceiros tinham desaparecido e que profissão de vaqueiro começava a rarear. Inventou de fazer bolsas e sandálias, com recortes caprichados e tingimentos naturais, que se tornaram sua marca registrada.

A coleção da Amapô, chamada Ser Tão Cariri -feita em parceria com o Senac do Ceará-, além de incluir peças inspiradas pelo trabalho de Seleiro, mostrou também elementos iconográficos da região, como casinhas coloridas, a figura de Padre Cícero, e a rica arte popular sertaneja.

Aos 80 anos, sentado na primeira fila do desfile, Seu Espedito estava orgulhoso por “ver o Cariri ganhar espaço na cidade grande. Temos que mostrar a riqueza da cultura brasileira, e nordestina, para o mundo todo”.

Do livro de poesias “Menino do Mato”, de Manoel de Barros, veio o ponto de partida da coleção de Rafaella Caniello para a Neriage. O desejo de apreender o mundo através de palavras que perturbam “o sentido normal das ideias”, a beleza das paisagens de Alto Paraíso, na Chapada dos Veadeiros, em Goiás, conduziram a designer a revisitar a trajetória da marca.

Numa cartela de cores que ia do areia ao azul noite, passando por amarelo, ocre, laranja e verde, os looks monocromáticos, criaram uma imagem urbana, chique e longilínea, com muitos plissados. O contraste ficou a cargo das bolsas exclusivas, feitas de palha tucum, numa parceria com a Associação das Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro. Sinal de que o artesanal é, de fato, o novo luxo.

Fazer manual

Nesta estação, Luiz Claudio Silva, diretor criativo da Apartamento 03, se apaixonou pelo butoh, dança japonesa criada nos anos 1950, inspirada em movimentos de vanguarda ocidentais, como expressionismo, surrealismo e construtivismo; e na cultura milenar japonesa. O estopim do entusiasmo foi um livro sobre Kazuo Ohno, um dos criadores dessa arte.

Mistura de dança e arte dramática, o butoh se baseia na expressão livre da individualidade, sem máscaras ou estereótipos, abraçando todas as facetas da alma humana, mesmo aquelas que são consideradas vergonhosas. O respeito pelos ancestrais, a ideia de que nossa existência se deve aos nossos mortos, e que a vida e morte são indissociáveis, definem o movimento.

Na passarela, isso se traduziu de muitas maneiras, como sobreposições de peças de tule que faziam referência a crisálidas, símbolos da transformação a que todos os seres vivos estão sujeitos. Tecidos risca de giz com aspecto masculino foram suavizados por minúsculas miçangas brancas. E peças com modelagens esportivas, feitas de tela, exibiam dezenas de vidrilhos costurados a mão. O trabalho manual agrega afeto e valor às roupas, disse o estilista. Sobras de materiais de outras estações foram ressignificadas, em intrincados patchworks de tiras ou quadrados. “Não dá para fazer moda, hoje, sem repensar os métodos de trabalho”, completa.

“Eu queria falar sobre a realidade que vivemos hoje, sem ser panfletário. Prefiro deixar que cada cliente crie sua própria ficção, ao vestir as roupas que faço. Em tempos de polarização, a poesia é o que nos une”, afirma.

Por fim, tivemos o desfile comemorativo dos 10 anos da marca de Fernanda Yamamoto. Com a ajuda de uma equipe especializada em upcycling, a estilista desmanchou cerca de 300 peças de seu acervo, transformando-as em vestidos de baile. Olhando com atenção, pode-se identificar fragmentos das roupas originais, deslocadas de suas funções originais. A expressão de criatividade emocionou a plateia.

“Foi preciso certo desapego para dar adeus a todas essas peças, mas, ao mesmo tempo, foi lindo rever toda essa história e perceber que ela ainda pode criar novas narrativas”, disse Fernanda em entrevista ao site FFW.

No momento atual, nada é mais importante do que reaproveitar, reciclar e se adaptar. Sejam roupas, tecidos ou ideias, tanto faz.

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