Primeira dose

Susan Chou
7 min readAug 23, 2021

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Sempre amei a sensação de sair de casa sem levar nada. Sair sem responsabilidades, de mãos livres, só com a roupa do corpo. Fazia isso sempre quando saía com meus pais, até bem depois da infância passar, talvez como um método de me agarrar a ela. Sentia a leveza de ter alguém que se responsabilizasse por mim, que pagasse pelo que eu quisesse comer na rua, que olhasse pra rua e me falasse quando eu poderia atravessar — eu atravessaria de olho fechado se eles dissessem que podia ir. Quando criança, fazia isso porque não tinha condição de fazer diferente, mas quando cresci, fazia de propósito, olhando pras minhas mãos e bolsos vazios, sorrindo.

Agora tô com meus 22 anos, e uma oportunidade surreal surgiu na minha vida: ir morar na França para estudar arquitetura. Na minha cabeça sonhadora, me imaginava conhecendo pessoas do mundo todo, estudando coisas incríveis, andando em ruas maravilhosamente desenhadas, além claro de viver todos os estereótipos da França que se pode imaginar. Acredito que ainda tem muito disso por vir, mas antes disso, me deparei com um problema: a burocracia toda era minha. Nada de mãos abanando, nada de outros se responsabilizando por mim, olhando antes de atravessar a rua pra mim.

A burocracia francesa já é famosa por ser complicada e interminável, mas somamos aqui a pandemia igualmente interminável, e temos uma quantidade colossal de documentos, testes PCR, vacinas, cartórios, assinaturas, comprovantes e pagamentos pra arranjar. Além de tudo, enquanto estava na hora de resolver tudo isso, as fronteiras da França estavam fechadas para estudantes brasileiros, então a tarefa era correr atrás de todas essas coisas acreditando que uma hora poderíamos entrar.

Em uma dessas correrias, meu pai me inscreveu para tomar a xepa da vacina. Ele fez a fila, conversou com a enfermeira, deu meu número de telefone para ela, e me disse “presta atenção no seu celular, se tocar pode ser da xepa”. Uma simples tarefa. Prestar atenção no celular. Atender. Tomar vacina.

E aqui, vem um comentário sobre como lido com responsabilidades. Acho que parte dessa história de gostar de não me responsabilizar pelas coisas vem de uma frustração gigantesca de sentir que não consigo prestar atenção no que precisa. E que eu sempre perco alguma coisa, esqueço alguma coisa, e decepciono alguém com isso. Eu era aquela criança que na escola recebia 37 ocorrências por mês: esqueceu giz de cera para a aula de artes, esqueceu que pedimos réguas para as atividades de hoje, esqueceu de fazer a tarefa de casa, esqueceu o plástico azul de forrar a mesa, esqueceu de pedir permissão para os pais para ir à excursão, e assim vai. Então sentir que estou em uma situação em que eu não preciso lembrar de nada me deixa muito feliz. Assim ninguém bota a mão na cara de novo e fala “aaah, esqueceu de novo!’ ou “ah, mas vive no mundo da lua mesmo!”. Assim o mundo da lua me é permitido. Eu comecei a me refugiar no mundo da lua. O problema é que as chances de sair de casa nessas condições foram ficando cada vez mais raras. E as consequências de não prestar atenção, cada vez mais graves.

Era uma sexta feira, dia de prestar atenção no celular. Acordei, pensei: prestar atenção no celular. Depois pensei em mais um monte de coisa que eu achava legal. Pensei no que achava importante, estressante, pensei em aproveitar o último dia de estágio, pensei em apresentar direito o trabalho final do semestre, pensei, pensei, pensei. Mas não pensei que quando acabou a bateria do meu celular eu não poderia deixar ele carregando no outro quarto, senão eu não iria ouvir quando ele tocasse. Na verdade, eu pensei nisso, e foi mais ou menos na hora em que eu peguei ele e vi aquele símbolo de telefoninho vermelho: “2 chamadas perdidas de um número desconhecido”. Aquele número 2 estava gritando na minha cara, jogando olhares ácidos de decepção. Ele meio que falava “poxa, nem isso você lembrou? Sabia que você poderia estar vacinada agora? Bom, mas não está, culpa sua, eu tentei. 2 vezes ainda. Tchau.”

Com a perspectiva de passar os próximos meses sozinha, essa chamada perdida caiu em cima de mim como um elefantão. Bom, se não consigo me atentar a um telefonema, que raios de milagre eu vou ter que fazer pra cuidar de mim mesma em tantas outras áreas da vida? Como que eu vou fazer uma mala pra vários meses se eu não consigo organizar minha mochila para um dia de escola? Como vou passar na alfândega, e conversar com o moço que vai me perguntar em francês se eu tenho condição de morar no país dele? Bom, claramente vou ter que falar que eu mesma duvido.

Esse dia eu literalmente fui ao espelho, apontei o dedo no reflexo do meu nariz e falei “de novo!? tem um monte de pessoas queridas que estão orando e torcendo pelo seu intercâmbio! e sabe de uma coisa? eu deixei de ser uma delas. porque eu não confio em você, eu acho que você não é capaz”

Os dias seguintes foram complicados. Eu sou o tipo de gente que meio que habita nos próprios erros, e por muito tempo fica se remoendo nos deslizes do passado. Então nos dias seguintes não foram poucas as vezes que eu lembrava do que tinha acontecido, e meio que dava uma tremidinha, parecida com aquela que a gente dá depois de fazer xixi. Ou então soltava um suspiro lamentando minha situação. Aí nesse lugar eu pensava assim: ”nossa, eu queria que semana que vem ligassem de novo da xepa, e que fosse a janssen, aí eu tomo uma dose só, e aí eu vou poder entrar na frança mais cedo (na época as fronteiras estavam abertas só pros vacinados), aí ia ficar explicado que eu perdi a xepa por um motivo, aí vai ser um milagre de Deus” Mas aí eu pensava “ai, mas eu pedi pra Deus pra conseguir vacinar, e Ele deu a oportunidade, eu que estraguei tudo e vou lidar sozinha com as consequências disso”. No fundo, todas essas ideias assumiam que Deus é esse cara distante, que não quer que eu perca o tempo dEle, e que faz algumas caridades de vez em quando me dando alguma coisa, mas sempre com um interesse próprio. Não teria por que ele querer fazer uma coisa assim por mim agora, que eu já estraguei tudo.

Acontece que Ele não é esse cara, e nos dias que foram seguindo, as músicas que ouvi, os textos que fui lendo, as coisas que fui recebendo reforçavam uma ideia mirabolante. Ele me ama. E mesmo que Deus não explique o porquê das coisas acontecerem, elas acontecem dentro desse lugar seguro e inabalável que é o amor. É um amor generoso que não explica porque dá tanto, e não um mesquinho que cobra retribuição proporcional a cada caridade. Ele torce por mim, mesmo depois das 37 ocorrências por mês. Ele acredita em mim, mesmo que eu mesma esteja longe de acreditar. Ele se importa não só com o fato de eu ter perdido a xepa, mas também com a maneira como eu me senti depois disso. Ele senta junto, chora junto, e entende meu caos, mesmo sendo Ele mesmo a solução pra isso. Eu descobri que não precisava de um final mirabolante para a história para dizer que ela é reflexo do amor de Deus. E que tudo é reflexo disso. Percebi também que a minha confiança é muito grande nos meus próprios erros, e muito pequena no amor de quem cuida de mim — chega a um ponto em que eu às vezes acho que meus erros conseguem estragar os planos que Deus tem.

Sabe aquela polidez que a gente tem quando vamos na casa de alguém pela primeira vez? “tiro o sapato? oh, posso ir ao banheiro? hmm onde será que é melhor me sentar, como será que me comporto?”. Percebi que eu sou aquele tipo de convidado que mantém essa hesitação mesmo depois de oitocentos e setenta e cinco mil visitas à mesma casa. Daquele tipo que não percebeu que se a pessoa te convidou oitocentos e setenta e cinco mil vezes pra casa dela, é porque você é especial para ela, e pode começar a se sentir em casa. E mais, sou daquelas que não percebe que dentre essas oitocentos e setenta e cinco mil visitas, com certeza já esqueci de tirar o sapato, já manchei a cadeira, esqueci de dar a descarga, quebrei um copo, um vaso, mas continuo sendo convidada, toda vez, porque sou mais especial que a cadeira, o banheiro limpo, o copo e o vaso.

E no fim, percebi que não me imunizei contra o covid naquela semana, mas sim contra um monte de outras coisas, sendo uma delas eu mesma. A minha própria desconfiança, meu próprio receio. Senti Deus colocando essas coisinhas na minha bagagem antes da viagem e me dando uns tapinhas nas costas “você vai precisar disso” Ele fala. “Você vai precisar saber que não vai precisar cuidar sozinha de si”

Na sexta feira seguinte, meu pai falou de novo com a enfermeira, ela foi muito gentil, e assim que deu o horário da xepa, ficou feliz por mim que tinha sobrado 1 dose da Pfizer. Depois disso, e da montanha de burocracia que teve de ser enfrentada, cheguei na França. Vim imunizada pela metade, pra tomar a segunda dose aqui.

“Pois o Senhor, seu Deus, está em seu meio; ele é um Salvador poderoso. Ele se agradará de vocês com exultação e acalmará todos os seus medos com amor; ele se alegrará em vocês com gritos de alegria!” Sofonias 3:17

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