Foto em preto e branco da minha mãe e o fisioterapeuta de costas, caminhando no corredor do hospital.
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Meio mês depois

A primeira vez que me lembro de experimentar esse desespero foi aos nove anos de idade, no enterro da minha tataravó. Poucos meses antes, celebramos seus cem anos e, como costuma ser o caso em funerais de tataravós centenários, foi um velório tranquilo. Como não tinha uma ligação emocional especial com ela, não me lembro de sentir nenhuma tristeza particular durante o tempo em que velamos seu corpo em sua casa, mas no momento do enterro fui atravessada por uma agonia que nunca mais me deixou. Ao ver o caixão, já fechado, ser lentamente posicionado dentro de um buraco cavado no chão para ser coberto por terra, senti todo o peso do irremediável atravessar meu corpo. Não importa o que aconteceria depois daquilo, uma coisa era certa: aquela pessoa não poderia mais voltar. Dali para frente, chorei em praticamente todas as vezes em que ajudei a enterrar alguém.

Esse desespero só se tornou inteligível alguns anos depois, quando meu tio nos deixou uma semana após completar quarenta anos. Já falei, em outro texto, daquele que foi o momento exato em que compreendi o significado mais amargo da morte, quando meu pai, chorando a falta do irmão, me disse “acabou o tio William”. Ali, meu sentimento ganhou nome, explicação em palavras. E ainda que me atinja com maior intensidade nessas despedidas irreparáveis, o terror da morte vem me acompanhando em todas as horas de todos os meus dias. Nos períodos de maior impotência contra o adoecimento mental, observava, incrédula, a capacidade que outras pessoas têm de se manter funcionais sob a ameaça constante deste destino imprevisível e sem recurso, como que tentando aprender um jeito de existir com essa angústia que, com certa frequência, faz meu coração parar de bater por alguns segundos.

Já tentei começar este texto muitas vezes e me parece inevitável fazê-lo agora, quando tento sobreviver ao luto pela morte de minha mãe. Em alguns dias mais do que em outros, a perspectiva de viver sem ela não me deixa respirar. Testemunhar o fim tão precoce ― e tão difícil ― de uma trajetória que foi, também precocemente, desviada de seu curso pelo evento de minha existência para um caminho de sacrifícios seguidos, me tirou a prática do sono entregue. Ainda sinto o impulso de falar com ela, ainda ouço sua voz ecoar dentro de mim. Enquanto busco costurar um sentido para dar conta dessa dor, me encontro mais uma vez com a pergunta que costuma acompanhar o desespero diante da morte: para quê? Por qual razão vencemos dia após dia tormentos monstruosos, e com qual razão usufruímos de alegrias ligeiras entre uma tormenta e a próxima, se somos todos tão esgotáveis? Inexplicavelmente, no entanto, não chorei no enterro do corpo que fez meu corpo, embora o tenha feito no velório e tenha evitado o quanto pude ver aquele corpo no caixão. Mas ali no enterro, naquele ponto de ruptura em que o que parece se romper é o próprio tecido do tempo, não chorei. Alguma calma estrangeira tomou meu organismo, um cansaço tão imenso que secou toda água que eu ainda tivesse para derramar. E, depois, o vazio: a futilidade do encadeamento das horas, o despropósito de tudo, uma expectativa de nada. Seguir, mas para onde?

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Stephanie Boaventura

uma mamífera que precisa do futuro ➳ mãe, pesquisadora, artista ➳ escrevo textão na internet e não obedeço algoritmo