Indo além das bordas: algumas experiências ciberfeministas no Brasil

steffania paola
6 min readSep 19, 2016

Construindo uma internet com mais diversidade dos anos 90 até hoje

“Queremos todo o paraíso” Mujeres creando, Bolívia.

Durante a minha adolescência no interior do Brasil, o contato com a internet era mínimo e a melhor forma de trocar informações sobre assuntos mais progressistas era através de correspondências e zines. Eles iam e vinham cheios de referências ao anarcofeminismo, punk, queer e outros temas considerados muitos avançados para uma pequena cidade do interior de Minas Gerais.

A internet chegava aos poucos aos lugares mais distantes das capitais do Brasil nos anos 90. Para uma adolescente era uma maneira de encontrar pessoas diferentes, conhecer outras realidades, exercitar a imaginação e publicar as suas impressões sobre o mundo para uma audiência que poderia alcançar o mundo inteiro. Assim como as ciberfeministas dos anos 90, eu também acreditava na internet como um espaço livre das opressões que as mulheres sofriam fora dela. A web possibilitaria imaginar mundos possíveis, exercitar a liberdade, ir além das bordas e “criar um futuro ainda sem nome”.

Saiba mais:
Uma história oral das primeiras ciberfeministas
Nós somos a buceta do futuro — ciberfeminismo nos anos 90

Com o passar dos anos, o que vimos foi uma espécie de “loteamento” da Internet com o surgimento de milhares de serviços e empresas, em sua maioria, lideradas por homens.

Estávamos em um espaço supostamente democrático, mas sem nenhuma diversidade. O conteúdo e a infraestrutura eram tarefas dos homens e refletiam os valores da nossa sociedade machistas e sexistas, com todos os problemas que enfrentávamos em todos os outros espaços. Mas nós não desistiríamos, queríamos contar a nossa própria história, construir os nossos sites, montar os nossos servidores e desfrutar da liberdade de estarmos em um espaço seguro, onde nos reconhecêssemos em toda a nossa diversidade.

"A internet era 84,5% masculina e 82.3% branca. Até agora." Guerrilla Girls, 1996.

Já no início dos anos 2000 duas experiências foram marcantes como precursoras do ciberfeminismo no Brasil. Surgia em 2006 em Goiânia, a Xanta, uma servidora feminista que além de hospedar projetos, tinha como objetivo promover a troca de conhecimentos sobre software livre.

No mesmo período, surge ainda a birosca, um coletivo de mulheres que era parte do Centro de Mídia Independente (Indymedia) e que via a necessadidade de ter um espaço de ensino e aprendizagem de tecnologias apenas para mulheres. Elas propunham uma abordagem interessante que consistia em descobrir o computador e as máquinas como o processo de descoberta dos nossos corpos e da nossa sexualidade: com curiosidade, liberdade e coragem.

Xanta 2.0, 2007. Vídeo experimental.

Um salto no tempo: agora

Mais ou menos a partir de 2013 a internet foi tomada de assalto por uma nova geração que está se empoderando cada vez mais no discurso, na prática e na construção de uma internet feminista, LGBTQI (lésbica, gay, bissexual, transexual, queer, intersex) e interseccional:

Participação pública — #hashtags contra o machismo e mais

#primeiroassédio
Em outrubro de 2015 a hashtag #primeiroassédio foi lançada pelo coletivo feminista Think Olga depois que uma criança de 12 anos, que participava do programa de culinária MasterChef Júnior, foi vítima de comentários de teor sexual na internet. A hashtag foi usada mais de 82 mil vezes com relatos de milhares de histórias de abusos sofridos por mulheres brasileiras.

De um grupo de 3.111 histórias compartilhadas no Twitter constatou-se que a idade média do primeiro assédio é de 9,7 anos. Fonte: Think Olga

#meuamigosecreto
A hashtag começou a ser utilizada para denunciar comportamentos preconceituosos de amigos ou conhecidos, sem que fosse preciso, necessariamente, citar o nome da pessoa. Mais uma vez a internet foi tomada por relatos de mulheres denunciando condutas machistas.

Editatona Xanadona — Edição da Wikipédia
Para problematizar e agir contra a falta de diversidade na Wikipédia, este evento público se propôs a criar e editar páginas de mulheres artistas da América Latina.

Ensino/aprendizagem de tecnologias — Mulheres ensinando outras mulheres a programar

RodAda hacker, #minasprograma, Django Girls, Pyladies, Rails Girls, PrograMaria e Luluzinha camp são alguns dos projetos em atividade no Brasil em que mulheres ensinam outras mulheres a programar.
Os encontros ocorrem com frequência e têm sido importantes para a formação de novas programadoras, e para incentivar que cada vez mais mulheres tenham autonomia para construir os seus projetos on-line.

RodAda Hacker, 2015.

Espaços feministas de compartilhamento de conhecimento — também conhecidos como Hacklabs/Hackerspaces/Makerspaces

Há um forte movimento de criação de hacklabs feministas, como o MariaLab e a Preta Lab.

“MariaLab é um coletivo que surgiu de uma idéia: a grande maioria dos hackerspaces e makerspaces no Brasil e no mundo, embora sejam receptivos com as mulheres, não só têm uma maioria de frequentadores masculina como, por conta disso, acabam por deixar de lado algumas características e necessidades compartilhadas pela maioria das mulheres na área de STEM. Sentimos a necessidade de ter um espaço criado por mulheres, onde não somos minoria. A idéia é abranger todo o tipo de projeto ligado a tecnologia… feito por mulheres!”

De acordo com Silvana Bahia, uma das fundadoras da Preta Lab, o hacklab tem como proposta ser um espaço livre para trocas e aprendizados de mulheres negras para mulheres negras.

“A pretalab é uma plataforma de formação, discussão e fomento à mulheres negras no campo da tecnologia dentro do Olabi Makerspace. No primeiro momento, a pretalab realizará oficinas sobre o que é a internet, segurança digital e ferramentas tecnológicas que são cada vez mais populares e que na realidade pouco sabemos sobre seu desenvolvimento/funcionamento. A partir do visão de tecnologia de forma ampla e não apenas no campo digital, mas também a tecnologia ligada as formas de fazer.”

Segurança e privacidade para navegar e lutar

Como a internet também se tornou um campo de batalha para as mulheres e comunidades LGBTQI quando o assunto é segurança e privacidade, vemos surgir projetos que estão preocupados em empoderar pessoas no uso das tecnologias da informação e no uso de ferramentas seguras e livres.

Vedetas
Vedetas é uma servidora feminista. A servidora oferece oficinas de segurança da informação, oficinas de sysadmina (a versão femininista de sysadmin) e oferece, também, acesso a alguns serviços, como o Pad Antonieta (em homenagem a Antonieta de Barros), o Ethercalc Evelyn (em homenagem a Evelyn Boyd Granville), entre outros. Além disso, o coletivo atua investigando de forma independente casos de assédio e perseguição on-line.

Safer nudes
O zine “Safer nudes” criado pela Coding Rights é um guia que faz uso da prática cada vez mais comum de enviar nudes para falar sobre o direito a privacidade e também sobre o direito de decidir sobre o próprio corpo e a própria imagem. Nele são compartilhadas estratégias e ferramentas que podem ajudar as pessoas a espalharem seus nudes de uma forma um pouco mais segura.
Faça o download aqui.

F3mhack
Em 2015 aconteceu em vários países ao mesmo tempo o F3mhack. No Brasil o evento aconteceu em São Paulo e reuniu mulheres transexuais e cis, travestis, pessoas não-binárias e a diversidade em geral para aprender mais sobre privacidade online e segurança digital.

F3mhack, 2015. Leia mais: "Vamos falar sobre a revolução digital feminista"
"Desobediência. Por sua culpa serei feliz." Mujeres creando, Bolívia.

Há ainda mais projetos e há muitas mulheres lutando no Brasil e no mundo para a construção de uma internet cada vez mais aberta. O caminho é longo, mas se vamos juntas ele pode ser irresistível.

Colaboraram com este texto: servidora Vedetas, Silvana Bahia e Narrira Lemos.

Steffania Paola é feminista, desenvolvedora auto-didata, designer multidisciplinar e artista visual. Atualmente é bolsista do programa Ford-Mozilla Open Web Fellowship 2016–2017, da Fundação Mozilla, na Derechos Digitales, Chile.

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