A ansiedade não é um estado natural
Eu não imaginava que ia tomar uma lição de moral sobre ansiedade em uma aula de música. Mas foi isso que aconteceu em uma quinta-feira, por volta das 19h30, com meus miolos pegando fogo depois de um dia cheio de informação, uma cólica infernal e um cansaço no corpo inteiro que, ouso dizer, tomava conta até da ponta do meu nariz.
Antes do grande ensinamento que te fez clicar em algum lugar para ter acesso a esse texto, preciso fornecer o contexto: estou fazendo aula de música sem saber tocar absolutamente nada. Só toco o terror, mesmo.
Certo dia, estava essa que vos escreve assistindo o jornal matinal despreocupadamente enquanto tomava café da manhã, quando a atenção até então ausente foi arrebatada por uma voz conhecida informando que naquele mesmo dia as inscrições para os “cursos de verão” do Conservatório de Música iriam abrir. E mais: o preenchimento das vagas de cada curso eram feitos por aqueles que realizassem suas inscrições primeiro.
Isso era inédito pra mim. Acho que esses cursos já aconteceram em outros verões. Mas o que eu sabia sobre a instituição era que para ingressar no conservatório de música como aluno regular há um processo seletivo, então é necessário um conhecimento que eu, senhoras, senhoritas e senhores, não tenho. Assim, frequentar qualquer aula no conservatório era, para mim, sonhar mais um sonho impossível… Até aquele momento.
As inscrições começavam naquele mesmo dia, às dez em ponto. A voz conhecida fez questão de ressaltar que, como as vagas disponíveis eram de quem primeiro fizesse a inscrição, o preenchimento seria rápido. “Então fiquem espertos”, ele disse. Falar para uma pessoa “naturalmente” ansiosa pode parecer um comando um tanto redundante, mas como eu disse no título desse texto, a ansiedade não é um estado natural.
Escolhi me inscrever no curso de Apreciação musical e técnicas interpretativas para violão, proposto pelo professor Gilson Santana. Ofertaram 10 vagas para alunos ativos, que precisavam saber tocar violão, ler partitura e todas essas coisas que ainda acho impossíveis de aprender (porque é assim que a minha mente ansiosa lida com algumas dificuldades), e 10 para alunos ouvintes, que não tinham obrigação nenhuma além do interesse pelo assunto. E lá fui eu.
Eu sei, você que está aí do outro lado da tela, que já se foram seis parágrafos e eu ainda não dei uma pista de como uma aula de música virou sermão sobre ansiedade. Mas segura a minha mão e exercita a sua paciência, também. Eu vou chegar lá.
Essa foi a quarta aula e eu já vi na primeira delas que seriam muito mais que lições sobre música, porque o professor Gilson consegue dar orientações musicais que não são passíveis nem de mudança das palavras para virarem “conselhos para a vida”. Não vou me prolongar muito mais: falemos sobre a quarta aula. Depois escrevo sobre a primeira e aí você decide se lê.
Os alunos ativos têm, nas aulas das quintas-feiras, a oportunidade de apresentarem uma música para a turma. Depois disso, conversam com o professor sobre as dificuldades e ouvem conselhos que ele tenha a transmitir sobre o que acabou de ver. Nessa quarta aula, uma aluna, Rose, tocou uma música que, ME PERDOEM, vou ficar devendo pra vocês agora, pois esqueci de anotar o nome, de tão desnorteada que fiquei com o episódio.
De cara, Gilson comentou que ela apresentava uma postura bem tensa, e propôs um exercício. Como o violão estava seguramente apoiado nas pernas de Rose, o professor pediu que ela soltasse o violão, deixando os braços relaxados. Aconselhou, ainda, que ela tentasse ao máximo ignorar que estava na frente de todo mundo, olhasse para um ponto fixo na parede do fundo da sala e só… existisse. Entrasse no estado mais relaxado que pudesse acessar naquele momento. Enquanto isso, ele pedia para a turma pensar em qualquer intérprete foda se apresentando: todos fazem isso calmos, e a postura deles não mente — eles fazem o que sabem tranquilamente. Pediu para a aluna ir aproximando os braços do violão. Era notável: quanto mais próximos os braços dela ficavam do instrumento, mais tensa a postura dela voltava a ficar.
Foi aí que Gilson mencionou a ansiedade pela primeira vez durante essa conversa: “Eu entendo sua ansiedade de pegar o violão e sair tocando, de fazer tudo certo, de lembrar quais notas tocar. Mas adiantar todos esses passos na sua cabeça antes de realizá-los vai tornar o trabalho muito mais árduo. Dá pra fazer tudo isso com calma. A ansiedade só serve pra deixar seus músculos mais tensos e doloridos, dificultando a atividade”.
O professor perguntou se os dedos dela doíam, pergunta respondida afirmativamente pela aluna. Prontamente, ele perguntou se, ao tocar um violão, os demais alunos ali presentes apertavam a corda para que ela encostasse no traste ou no braço. Essa é a hora em que eu vou jogar a foto de um violão pra explicar o que são esses elementos.
Ninguém quis arriscar uma resposta, parte para não quebrar aquele silêncio de devoção às palavras do professor, parte com aquele “medo de dar a resposta errada”. Assim, ele jogou uma verdade que fez até os estudantes de longa data dessa arte abrirem a boca em um perfeito “o”: a vibração da corda, motivo da emissão do som, acontece da extremidade da corda presa ao rastilho até… o traste mais próximo à casa pressionada. Isso significa que não importa em qual ponto de uma casa você aperta a corda, o som vai ser o mesmo porque a corda vibra até o traste. E o traste é um relevo no braço do violão.
Por sua vez, isso significa que a força necessária para a corda ser pressionada contra o traste é menor que a força necessária para a corda ser pressionada contra o braço do violão. Foi um consenso entre os alunos ali presentes que todo mundo pressionava as cordas contra o braço, com o objetivo de encostar esses dois elementos. Ou seja, aplicando uma força maior que a necessária. Deixando os dedos doloridos para emitir o mesmo som que um dedo menos dolorido pode fazer soar perfeitamente. Assim, Gilson solta a frase que eu anotei, grifei e não descansei até transformar o ocorrido em texto:
A ansiedade não é um estado natural.
As nossas vidas já são corridas, o que nos deixa condicionados a partir para as coisas munidos de muita tensão. A gente esquece que o nosso estado natural é de relaxamento. A ansiedade de fazer uma coisa só traz mais obstáculos para sua realização. É preciso, portanto, não sair do estado natural antes de uma tarefa. Assim, não será um fardo executá-la.
É com esse papo de coach que eu me despeço. Pela atenção de todos que continuaram lendo até aqui, obrigada. Ao professor Gilson: mais um muito obrigada.