Do hippie ao reaça

Marta Preuss
7 min readOct 9, 2014

Houve um retrocesso à aceitação de minorias na sociedade?

Esses dias eu estava no curso de Direção de Arte e, no intervalo, estava batendo papo com meus colegas. Um deles deixou de visitar lugares como a avenida Paulista ou rua Augusta com medo da violência, de ser confundido com um homossexual e apanhar (ou porque ele é realmente homossexual; não achei relevante perguntar). Uma das colegas disse que sentia que antigamente as pessoas eram mais tolerantes. Que o paz e amor faz falta e que hoje em dia somos todos egoístas e inseguros.

Eu automaticamente discordo sempre que dizem que algo no passado era melhor. Acredito na evolução ou, no mínimo, estagnação da nossa maturidade social, além de crer que o sentimento correto é nostalgia e não felicidade. Éramos crianças, tudo era melhor: desde os doces até a economia, mesmo porque mal lembramos e quem cuidou dessa parte das nossas vidas infantis foram nossos pais.

Além disso, a colega tem a minha idade (nasceu no final dos anos 80) e que, portanto, só tem registros históricos dos hippies e dos anos 70. Da mesma forma que ela se baseava em impressões, eu também não tinha argumentos para rebater ou concordar com a opinião dela. Na verdade, tudo que eu sabia sobre hippies eram esteriótipos e senso-comum, e não confio nesses dados para uma opinião concreta.

De qualquer forma, continuei perguntando: “Por que você acha que piorou? A internet por exemplo, ajudou a ficarmos mais ou menos solidários com minorias?”. Eu já tenho minha opinião sobre isso: a internet me ajudou muito a amadurecer e respeitar outros indivíduos; mas meu uso da internet é bem particular. Faço parte de uma minoria que não é apenas observadora, mas geradora de conteúdo e interação. Uso o Twitter como poucos que conheço na vida real, fiz amigos e as pessoas ainda arregalam os olhos quando digo que encontrei meu marido na rede social. Já colega acredita que sim, a internet piorou as coisas, porque as pessoas ficaram mais individualistas e pararam de olhar em volta, para os outros.

Então fui estudar. Assumi que as coisas eram realmente melhores no passado — o que é o oposto da minha opinião — para ver se eu mudava de ideia, se fazia sentido.

Existencialismo

Muito do que somos hoje, da nossa cultura, deriva do fim da Segunda Guerra Mundial. A produção em massa está a todo vapor e a revolução cultural dos anos 50 e 60 ainda são relativa e culturalmente recentes para sete bilhões de pessoas ficarem sincronizadas. Foi nos anos 50 que se consolidou o otimismo pós guerra (que acabou em 1945) e o Existencialismo já era mais que filosofia de livros.

[no Existencialismo] o indivíduo é o único responsável em dar significado à sua vida e em vivê-la de maneira sincera e apaixonada, apesar da existência de muitos obstáculos e distrações como o desespero, ansiedade, o absurdo, a alienação e o tédio.

Desta forma o Existencialismo foi a primeira contracultura da sociedade padrão pós revolução industrial, onde a opinião e a vivência pessoal foram postas aos holofotes.

Usado pela primeira vez logo antes dos 1950, o Existencialismo foi base para a geração Beat: os indignados com as cobranças sociais da época, que viviam isolados da sociedade em grupos nômades vivendo pelas próprias regras. Os beats foram base para os Beatles, sim, e também para o estilo de vida hippie.

Contracultura

Nos anos 60, 70 e 80 um movimento forte de contracultura ocupou a Europa, os Estados Unidos e graças aos meios de comunicação de massa — principalmente a TV — se espalhou para o mundo.

A contracultura é o conjunto onde se encontram grupos de jovens que são externos aos padrões culturais de determinada época. Cabe aqui o próprio Existencialismo, os Beats, os Hippies e mesmo os Punks. Existem diferenças entre esses subgrupos, é claro, mas todos eles almejam e vivem uma mudança profunda nas relações sociais e na cultura.

Graças a TV a cultura deixou de ser de pequenos vilarejos e começou a se uniformizar. Os jovens começaram a perceber que as relações que eles tinham com outras pessoas não precisavam ser como sempre tinha sido, e que as pessoas se comportavam diferente em outros lugares. O mundo se abriu.

Além disso os Estados Unidos começaram um processo de importação e capacitação profissional de outras partes do mundo. Eis que o termo “politicamente correto” foi cunhado. Originalmente servia como arma contra xenofobia e racismo, e depois foi abrangindo outras minorias.

A cultura Paz e Amor dos hippies trouxe uma revolução social tão grande que já foi incorporada na nossa sociedade. Eles pregavam a igualdade entre cor e gênero; a liberdade do corpo da mulher e igualdade de sexos; a vida natural; o consumo de drogas como a maconha, mas contra o cigarro.

Atualidade

Vendo que esses movimentos (junto ao feminismo) nasceram nos anos 60, e ainda acreditando que antigamente as pessoas eram mais tolerantes, imaginei que:

  • Os pais das pessoas que nasceram nos anos 60 pra frente (nossos avós) seriam mais preconceituosos, já que nasceram e cresceram em um ambiente onde havia um “certo” e “errado” social, onde o “errado” é o diferente.
  • Quem nasceu nos anos 60 viveu a revolução cultural e seus valores começaram a ser alterados.
  • Quem nasceu nos 80 ou 90 já é filho dessa revolução cultural. Seus (nossos) pais são mais tolerantes e ensinaram desde cedo a ser mais respeitoso, mais gentil com as minorias.

Esse raciocínio faz, por si só, com que hoje sejamos mais tolerantes que antigamente. A principal diferença é sobre o que é ser tolerante. Antigamente desprezar negros, mulheres e homossexuais era o padrão, o “certo”, o esperado. Hoje esse comportamento é rechaçado pois já entendemos que todos os seres humanos, independente de credo, cor, gênero ou classe social, merecem o mesmo tratamento respeitoso.

Me baseando nessa conclusão fiz uma enquete que foi respondida por uma pequena amostragem de 48 pessoas em dois dias. Perguntei o ano de nascimento para validar minha suposição anterior; Se ela tinha a sensação que hoje o mundo é menos tolerante que no passado; O que colaborou para o mundo ficar mais intolerante (uma vez que a TV foi a responsável pela propagação contracultural, seria responsável por uma regressão neste sentido também?) e se os pais teriam alguma intolerância, para validar meu argumento.

Pensei em fazer essa pergunta para quem nasceu antes dos 60 mas a maioria dos meus amigos nasceu na década de 80, como se vê:

A maior parte dos meus entrevistados nasceram na década de 80

Entre as respostas, temos os seguintes resultados:

56% acredita que as pessoas são mais tolerantes hoje. A maioria acredita que a Religião e a TV tornam as pessoas mais intolerantes. A maioria dos seus pais são preconceituosos com homossexualidade e são machistas.

O curioso é que apenas uma pessoa que nasceu antes dos 70 concorda que antigamente as pessoas eram tolerantes. Os outros 8 apenas têm essa impressão, mas não viveram a época.

Quando perguntei qual fator piorava a aceitação de minorias atualmente, algumas respostas foram escritas, ao que segue:

Internet, no sentido de: mais fácil de articular nichos de intolerância que se auto-incentivam.

A convicção das minorias sociais, de mostrarem-se como indivíduos com valores próprios. Isso assustou muitos que acreditam que há uma maneira correta de uma pessoa se apresentar à sociedade.

Tolerância ou intolerância são características sociais, então toda faceta da cultura influencia.

Elas sempre foram intolerantes, mas agora temos a Internet como amplificadora de opiniões.

Educação e exposição a diferentes culturas e opiniões em um nível mais pessoal do que as mídias descritas acima.

Concordo com todas essas opiniões: eu também acho que o que gera a intolerância é que os grupos menosprezados cansaram de ser mal-tratados; que toda a cultura influencia na intolerância; que a internet ecoa e amplifica opiniões preconceituosas.

Conclusão / TL;DR

Conforme imaginava, as pessoas hoje são mais tolerantes do que no passado, mas este progresso é mascarado por estarmos dentro do período atual e observarmos o passado à distância e pela amplificação midiática da violência.

Para chegar a essa conclusão, observei que os movimentos sociais são relativamente novos na cultura ocidental, que estamos apenas na terceira ou quarta geração desde mudanças significativas da nossa sociedade. Ainda estamos engatinhando e temos muito a melhorar.

Porém, estamos melhorando.

Sempre houve gays; casamento entre negros e brancos; mulheres que trabalhavam. Só não eram conhecidos ou reconhecidos na sociedade. Um gráfico do XKCD exemplifica o que quero dizer.

Gráfico mostra o casamento entre pessoas de raças diferentes e o casamento de mesmo sexo com sua aprovação pela lei e pela sociedade.

Como o processo de mudança de cultura é algo lento (e estamos fazendo isso mais rápido que nunca), é natural que algumas pessoas tiveram avós retrógrados; pais que foram educados desta forma e portanto contra a contracultura dos 60–80 e que obviamente também educaram seus filhos com conceitos reacionários.

Mas a essa altura essas pessoas não deveriam ser mais a maioria. Elas têm uma voz forte porque sempre estiveram no poder, mas isso não deve nos coibir, nos diminuir. A igualdade de direitos é o caminho natural para a evolução social da humanidade. E é o caminho natural que todos nós seguimos.

Quadrinho que ilustra nossa evolução pessoal comparada aos nossos pais. Fonte.

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Marta Preuss

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