Porque deixei de ser PJ

Marta Preuss
7 min readDec 19, 2014

Espero que a economia não entre em colapso ao me dar direitos trabalhistas. Em 2015.

Pequeno glossário:
PJ: Pessoa Jurídica. Empresa.
CLT: Consolidação das Leis Trabalhistas, ou como chamamos um emprego onde assinam sua carteira de trabalho.
TI: tecnologia da informação, informática, programadores.

Minha trilha profissional nunca foi muito padrão. A maioria das pessoas começa trabalhando em outra área, como uma loja ou telemarketing; entra na faculdade e faz um estágio; encontra um emprego CLT e fica pelo máximo de tempo possível, de 3 a 5 anos hoje em dia. Eu mudei 3 vezes de emprego no meu primeiro ano profissional, uma das vezes saindo de CLT e indo para estágio. Enfim, eu não tinha muito apego por CLT e mudava muito de emprego.

Foi então que começou minha vida PJ, em 2009. Quando você vê a vaga e está desesperado para mudar de emprego, pensa “por que não? Posso guardar o dinheiro que seria das minhas férias e décimo terceiro. Não vai ter desconto nenhum desse valor. Claro que posso ser responsável assim.”

Eu não fui, é claro. Não conheço nenhuma pessoa que seja.

Naquela época ainda não existia MEI, eu acho. Eu comprava nota fiscal de terceiros, pagando uma taxa para eles. Aí a empresa dava um cheque nominal e a gente precisava ir ao banco depositar pelo caixa pessoa humana. Todos os meses.

Fiquei três meses nesse emprego. Houve um corte de funcionários e saí sem receber nada. Depois outros nove em um sistema CLT Flex (uma pequena parte do salário na CLT e o resto por fora, o que é pior ainda), depois outro emprego PJ por uns 6 meses. Nesse segundo eu também comprava nota, mas depositavam o dinheiro na minha conta. Quando eu fui jornalista então, não tinha nem isso. Eu só recebia.

Todas essas empresas até então eram pequenas agências. Tinham clientes significativos, mas ah, empresa pequena. A gente entende.

Então entrei em uma consultoria. São empresas que encontram profissionais, geralmente para a área de TI, que é muito rotativa e urgente. Essas empresas selecionam o profissional e alocam nas empresas. Elas são responsáveis pelo pagamento do profissional, que é “emprestado” para a outra empresa, que paga uma taxa pelo profissional. Nem preciso dizer o quanto isso é contra a lei. É como alugar um escravo.

O lance é que eu tinha acabado de sair de um acidente e ninguém queria me dar emprego. Esse cara já me conhecia e eu precisava trabalhar porque estava morando sozinha. Não tinha o luxo de ficar procurando vaga depois de dois meses de entrevista (para TI isso é muito tempo).

Trabalhei um ano e meio nesse sistema e abri meu MEI, incentivada pelo dono da consultoria. Micro Empreendedor Individual é uma forma do governo arrecadar os impostos das pessoas mais simples, aquelas que têm uma barraca na feira ou um pequeno salão de beleza. Não foi feito para TI (a margem de imposto de nota fiscal para TI é 14% e o MEI tem uma taxa fixa de R$42/mês então calcule o prejuízo) muito menos para vínculo empregatício diário. Se você se desloca para uma empresa, fica 9h/dia lá 5 dias/semana, é vínculo empregatício e precisa ser CLT. Fora isso é contra a lei.

Fui contra a lei e sonegadora de impostos nesta empresa por um ano e meio. Me pagaram meu salário direitinho, até quando quebrei o pé e trabalhei três meses de casa. Mas sem direitos, sem férias, décimo terceiro, vale refeição ou transporte, nada. Quando saí, foi com uma mão na frente e outra atrás.

E já que estava pouco de consultoria, manda mais, fui para outra. Uma grande consultoria, toda chique. Para trabalhar em um grande jornal. Para refazer um dos maiores portais de notícia da América Latina.

Sem férias. Sem décimo terceiro. Sem vale alimentação. Sem festa de natal. (essa não era a minha empresa).

Chegou um momento que isso tudo foi se somando dentro de mim. Vi o quanto eu estava perdendo nesses anos todos. Que pessoas perderam o emprego, no mínimo, por lutar por esses direitos que eu simplesmente “optei” por não ter. O quanto isso é ridículo, fora da lei, o quanto estou dando de lucro para estas empresas sonegarem impostos e direitos. Que eu era vítima de um sistema que só me dava prejuízo, enquanto eu dava muito lucro para quem já tinha dinheiro. Isso me enfureceu.

Nesta época, a consultoria já não aceitava mais o MEI, me obrigando a abrir outra empresa, e queria que eu abrisse conta PJ no banco. Quando reclamei, dizendo que não ia abrir conta nenhuma, a minha consultora veio pessoalmente falar comigo. Há essa altura eu já tinha passado por uma série de humilhações, inclusive sendo chamada de burra por um gestor, e não tinha mais paciência. Foi pouco antes das eleições. E eu ouvi o seguinte:

“Vamos ver, né. Se o PT ganhar, eles ficam em cima dessas questões. Não sei qual é o problema: você recebe seu salário, nós pagamos nossos impostos, compramos nosso leite. Mas eles querem arrecadar mais, né? Se o PSDB ganhar, não. Eles se focam em outras coisas. Como educação, por exemplo.”

Eu nem sei por onde começar a contar o absurdo dessa frase, mas certamente “o PSDB investe em educação” me fez querer rir da cara dela.

E o PT, como Partido dos Trabalhadores, pode ter mil defeitos mas pelo menos apertou mesmo o cerco contra contratação PJ. Porque precisa. Porque a formação de vagas de emprego formal caiu 88% em novembro, e a abertura de empresas era de cinco mil por dia em agosto. Certamente muitos empreendedores donos do próprio negócio.

Neste momento, com uma vaga em andamento, recém casada, atolada em dívidas, com um futuro incerto, eu cansei e desisti. Eu simplesmente saí do emprego porque não aguentava mais ser tão humilhada. Era ridículo. Na saída, assinei um termo jurando que não houve qualquer vínculo empregatício nesses meses.

Beleza, fera.

Fiquei dois meses em casa e não me arrependi nenhum dia. Ganhei muitíssimo menos dinheiro, precisei fazer empréstimo, trabalhei duas vezes mais e não foi suficiente e agora, que preciso alugar uma casa, não tenho renda dos últimos três meses. Mas encontrei um emprego CLT, em outro estado, que pagava a mesma coisa que eu ganhava aqui. Quantas vezes não ouvi o famoso “Ah, mas PJ compensa, PJ paga mais!” — maior mentira. Só dor de cabeça. Zero retorno. Nenhuma estabilidade. E quantas vezes ouvi

“Posso te pagar CLT mas vou ter de descontar os 60% que pagarei para o governo”

Isso nem é problema meu, cara.

Nesses cinco anos como PJ, tudo que consegui foi: dor de cabeça, trabalho e sonegar impostos. Não arrecadei fundo de garantia (só depois de abrir o MEI e pagando o mínimo), não tive férias, não tive 13º, vale refeição, seguro saúde, seguro desemprego, comprovante de renda para aluguel (no futuro aceitaram minhas notas fiscais), nada. Foi uma perda de tempo e dinheiro terríveis, além de ser simplesmente errado. A única pessoa que ganhou com isso foi meu empregador. Ele não precisou pagar os 60 a 80% de impostos de um funcionário para o governo, mas eu precisei tirar do meu salário meus impostos — coisa que eu não deveria ser obrigada a fazer e não é problema meu.

Já cansei de ver gente protegendo empregador, dizendo que tem muito imposto no Brasil e que é muito difícil para os pobres empreendedores conseguirem prosperar, etc etc. Na verdade, se o governo tirar a obrigatoriedade do pagamento de um real para o bem do trabalhador, esse um real vai direto para o bolso do patrão. Não vai evoluir empresa, nem conseguir mais empregos. Vai para lucro. E você sabe disso.

“Ah Marta então por que você não processa?” Porque processando uma empresa (além dos gastos de dinheiro e tempo) você entra em uma suposta “lista negra” e ninguém te contrata mais (ouvi essa ameaça na primeira agência que trabalhei). Perdi a conta de quantas vezes me peguntaram “Já trabalhou com fulano?” antes de contratarem alguém, porque esse mundo é muito pequeno. Hoje em dia com as redes sociais, então… Na última entrevista que fiz, a mulher do RH tinha visto o vídeo do meu casamento. (e não anexei isso no currículo, pelo que me lembre).

“Ah mas a culpa é SUA por ter aceitado trabalhar nesse sistema”. Isso é culpar a vítima. Quem trabalha precisa de trabalho. Se não precisasse, não estava procurando emprego. Funcionário não sabe como as coisas funcionam. É a empresa que explica, e ela explica como quer, e você é levado a acreditar que aquilo é melhor.

Porém, sim, você também precisa se impor. Quando resolvi que só ia aceitar emprego CLT, 80% das vagas sumiram da minha frente. Fiz quatro entrevistas em um mês (quando aceito PJ, encontro emprego em uma semana). Uma delas mudou o esquema de contratação quando eu disse que não aceitaria PJ. Sério. Me ligaram 10 minutos depois falando “mas se for CLT de consultoria, tudo bem pra você?”. Palhaçada.

Hoje deu tudo certo. Encontrei um emprego bom, começo em janeiro. Vai ser bem sério e puxado, mas vou trabalhar com o que gosto. Eu espero que todo mundo encontre seu emprego dos sonhos. Até lá, sugiro negar vagas PJ, se possível. É contra a lei. Você está sendo lesado e outra pessoa está lucrando muito mais com seu trabalho.

Chega.

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Marta Preuss

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