Representação ≠ Representatividade

Opinião sobre a última edição do Paraty em Foco. Por Suelen Pessoa

Suelen Calonga
10 min readOct 22, 2015

Demorei pra publicar aqui minha resenha sobre o Paraty em Foco 2015, talvez possa soar um pouco fria essa nota. Mas acho que tenho pontos importantes a notar, talvez valha um tostão da atenção de vocês.

Still da vinheta vencedora da edição 2015 do festival, feita por Toni Ricart / Multistudio (Barcelona, Espanha). Veja aqui: http://paratyemfoco.com/resultado-da-vinheta-2015/ Ouvi boatos sobre a escolha da vinheta, mas não vou contar pois sou misteriosa. ;p

O tema era Representação e autorrepresentação na era dos dispositivos. Me soou especialmente atrativo porque meu trabalho de conclusão da graduação (lá em 2007) foi exatamente sobre esse tema; falávamos do impacto da tecnologia fotográfica digital na subjetividade e sociabilidade das pessoas. Depois, na pós, em 2010, falei da pós-fotografia. Achei um pouco antigo o festival abordar isso, já que tanta coisa se discutiu e se produziu desde então, mas também o mundo passou por grandes mudanças e tantas inovações aconteceram que ainda vale a pena conversar sobre isso. A temática também me é cara porque toda a minha produção artística é centrada em autorrepresentação, já que trabalho com performances em diferentes mídias, mas especialmente fotografia e vídeo. E também no meu atual emprego, que mistura curadoria e produção cultural, esse tema sempre aparece: minhas programações estão sempre repletas dessa pesquisa, em forma e em conteúdo. Ou seja, juntar em um só ambiente essas discussões todas me parecia imperdível.

A programação oficial do festival demorou muito a sair, aparecendo completa no site só poucos dias antes da abertura. Talvez por isso eu tenha fantasiado demais, imaginado demais o quão incrível seria ver dezenas de pessoas (que eu ainda não sabia quais seriam) falando um milhão de novidades sobre representações e dispositivos. Não consegui assistir todos os dias do festival, pois a empresa que eu trabalho me liberou apenas de sexta a domingo, mas assim que eu pisei na cidade já fui direto olhar as exposições e pegar o programa dos bate-papos/palestras. Choquei que o programa impresso custava R$ 2. Preferi gastar isso em cerveja e acompanhar a programação pelo celular mesmo.

Fotos minhas. Aqui é tenda onde acontecia o grosso da programação: palestras, bate papos, entrevistas, projeções.

Triste perceber que já é 2015 e os festivais de fotografia do Brasil ainda se repetem: ainda têm uma visão antropológica/jornalística que está assentada sobre a representação do outro. O gênero retrato por aqui ainda está muito atrelado ao documental, ao exótico, ao registro de cenas cotidianas ou ritualísticas de culturas que, geralmente, não são as do fotógrafo; e ainda é praticamente todo preto-e-branco. Fiquei querendo muito ouvir a fala do Ailton Krenak sobre “estratégias para subverter o paradigma antropológico do olhar objetificante sobre o outro”, mas eu ainda não tinha chegado na cidade esse dia. É surpreendente que a curadoria coloque essa fala no meio de um festival que mostra quase que exclusivamente trabalhos que trazem esse olhar objetificante que o indígena aponta. Deve ter sido bem interessante o contraponto.

Fotos do Christian Cravo, das séries “No Jardim do Éden” e “Águas da Esperança”. Peguei no site dele: www.christiancravo.com

O melhor exemplo que posso apontar sobre esse paradigma antropológico é o trabalho do grande homenageado da sexta feira, Christian Cravo. Ele é neto de Mario Cravo Jr, filho de Mario Cravo Neto e sobrinho de Miguel Rio Branco — percebam a armadilha que ele foi metido desde que nasceu. Suas referências artísticas/familiares vem todas na esteira de uma representação da Bahia negra que não lhes pertence, mezzo Pierre Verger mezzo Vinícius de Moraes, que parecia o incomodar intimamente, mas impossível de recusar pela própria história familiar. Ao longo da apresentação do portfólio do artista, entremeada com seus relatos íntimos, ficou bem claro que ele tentou por diversas vezes se livrar da estética e da temática muito referenciada a seus parentes até chegar em seu projeto mais recente e autobiográfico (muito interessante, por sinal), que mostra o cotidiano de seu núcleo familiar (mulher e filhas). Acho que até Christian Cravo estava enfadado dos retratos gráficos em preto e branco que se tornaram sinônimo da fotografia brasileira, ou pelo menos dos retratos da gente do Brasil (ou do Haiti, ou de algum país Africano à escolha).

A foto da esquerda é da Talita Virgínia e eu peguei no blog do festival. É o Christian sendo entrevistado pelo Milton Guran. A da esquerda é da Debora Monteiro, e eu peguei no blog Sweet Paraty (http://tinyurl.com/netnc9r). No telão, um dos dípticos do projeto recente do Christian, “Ao firmamento viaja a mente, na terra descansa o corpo”.

O que quero dizer é: nem só do olhar documental vive a representação, e nem só de P&B é feito um bom retrato. Existem trabalhos em retrato que são completamente o oposto disso e não estavam contemplados. Um excelente exemplo é o trabalho do Scott Macleay, artista canadense que mora no Brasil já há uns bons anos. É incrível a forma com que ele usa a cor, o trabalho com os modelos e, nas obras mais recentes, a desconstrução da imagem fotográfica através de recursos digitais. Scott tem um trabalho que poderia ter sido mostrado nesse festival, sob essa temática. Mas não vi nada parecido.

Um mosaico muito bagunçado de alguns trabalhos do Scott Macleay. Recado aos puristas de plantão que vão dizer que isso não é fotografia: a maior parte desses trabalhos acima é analógico. Vale uma visita ao site e portfolio: www.scottmacleay.com

Claro, alguns convidados brasileiros apresentaram trabalhos realmente instigantes e consistentes nesse campo. Gostei muito de ter conhecido o Edu Monteiro, um jovem artista e curador com trabalho em autorretrato muito interessante, recheado de questões existencialistas e psicanalíticas e com uma aproximação temática grande com meus trabalhos. Fiz um workshop com ele, no qual ele discorreu sobre a história do autorretrato fotográfico apresentando muitas artistas com trabalhos incríveis e no final fez uma leitura de portfólios dos participantes. Percebi que eu tenho um repertório muito bom nessa área, e que poderia me enveredar pela seara da educação informal, pois acompanhei toda a aula (já conhecia todos os artistas apresentados) e auxiliei na lembrança de alguns tantos outros que faltaram. Queria ter assistido a palestra do curador Rodrigo Alonso esse dia (O Corpo como Statement), mas foi bem na hora do curso do Edu e não pude sair…

Aqui estão algumas fotos das duas séries que eu mais gosto do Edu Monteiro. Na esquerda “Saturno”, e na direita, “Noite Chinesa”. Não coloquei aqui a série que foi exposta no Paraty em Foco, “Autorretrato Sensorial”, mas você pode ver no site dele: www.edumonteiro.com

Uma outra grata surpresa do festival foi o fotógrafo e pesquisador mexicano Francisco Mata Rosas, não pela apresentação de seu portfólio, mas pela fala brilhante que critica, inclusive, muito de seus trabalhos anteriores. Compartilho 100% do pensamento dele, que dividiu o mundo fotográfico entre analógico e digital, mas não na questão do dispositivo ou do suporte, mas do pensamento. Segundo ele, no regime de pensamento analógico, as questões arte versus não-arte, os gêneros fotográficos e até mesmo a hierarquia de autoridades (curador, artistas selecionados, formas de exposição, etc) ainda estão muito presentes. Em contraponto, o regime de pensamento digital está muito mais para a mudança nos contextos de publicação e nos sentidos de leitura, tornando a fotografia algo transversal, multidisciplinar e transmidiático. Bingo! Mata Rosas acertou em cheio e, pra mim, ele foi o único convidado que realmente discutiu a temática do festival, principalmente em termos de novos usos da fotografia no ambiente de internet. Sua pesquisa acadêmica sobre o “novo documental” na fotografia como sendo um “autodocumental” a partir das postagens das selfies das mulheres de narcotraficantes mexicanos é brilhante! Quero ver e ouvir mais sobre isso, e espero que ele volte logo ao Brasil com mais coisas dessa pesquisa.

A foto da esquerda é da Bea Rodrigues, peguei no blog do festival. Aqui ele mostra a equação da Web 3.0, que ele acredita (e eu tb) que é o novo momento que vivemos na internet. A foto da direita é minha. Aqui ele mostra um ensaio de uma artista mexicana que retratou os quartos de algumas filhas de políticos do alto escalão do México e comparou a opulência meio brega (característica nossa, latinoamericana) com as ficções fotográficas do Marcus Lopes e as selfies das mulheres do narcotráfico que ele pegou do instagram. Show.

Esse pensamento analógico da fotografia, como Francisco Mata Rosas indicou, permeou todo o festival de Paraty. Além da visão antropológica/jornalística, ainda vi a curadoria presa na armadilha fotógrafos versus artistas, razão pela qual eu imagino que a maior parte dos festivais ainda se repete (tanto em fórmulas quanto em conteúdos). Por não investigarem mais a fundo trabalhos de artistas que utilizam a fotografia como uma de suas várias formas de expressão, os curadores acabam ficando com mais do mesmo: mesmos nomes, mesmos temas, mesmas soluções, mesmos fotógrafos. O único festival que escapa dessa pegadinha é o FIF — Festival Internacional de Fotografia de Belo Horizonte, que tem uma qualidade de conteúdo e forma impressionante, uma curadoria excepcional e propostas conceituais realmente contemporâneas, apesar de estar em sua segunda edição (é um festival bienal). Mas voltemos ao de Paraty.

Sobre as exposições: exceto a mostra curada por Adriano Casanova, ID — Retrato Contemporâneo por Artistas Brasileiras, com a seleção de obras de nove mulheres que se utilizam do autorretrato, pouco vi de representação, autorrepresentação ou uso de dispositivos, na verdade. Aliás, não é possível falar de autorrepresentação sem tocar em questões identitárias (de gênero, sexualidade, étnicas, territoriais, etc), e talvez por isso a mostra ID tenha sido bem sucedida em relação às outras. Senti falta de um texto de mediação para essa exposição; talvez estivesse no espaço, mas eu não vi, talvez tenha entrado só no catálogo, que eu não comprei (deixei pra comprar no domingo e esqueci). As outras exposições desse mesmo prédio também estavam muito boas, mas escapavam à temática. A do Edu Monteiro, Autorretrato Sensorial, é ótima, mas as fotos são tão parecidas com as do Rodrigo Braga que eu tive dificuldade em fazer a leitura das imagens isenta dessa referência tão forte. A do Richard Simpkin, com a coleção enorme de fotos com famosos também não discute representação, mas consumo, fama, poder, várias outras coisas. A parte interessante pra mim ficou sendo a mostra ID das mulheres, mesmo. Senti falta de umas tantas outras artistas que poderiam estar contempladas ali, com trabalhos magníficos, a Berna Reale, a Fernanda Magalhães, mas talvez não fosse mesmo o caso.

Algumas fotos da série “Fired”, da Cris Bierrenbach. São ampliações maravilhosas em escala (tamanho real da artista) dela vestida com uniformes de mulheres em diversas profissões. Todas com um tiro na cabeça. Fired, em inglês, significa ao mesmo tempo “demitida” e “baleada”. Brilhante jeito de discutir o feminicídio. A Cris é foda. Olha lá o site dela: crisbierrenbach.com

É curioso observar como que determinadas coisas parecem não existir até que a gente toma ciência delas e, a partir daí, vemos essa coisa o tempo todo em todos os lugares, com uma clareza e frequência impressionantes. O sexismo e racismo nos festivais de fotografia são apenas dois deles. É a primeira vez que vou a um festival de fotografia em que a maior parte do público é feminino, mas o mesmo não se reflete nos trabalhos mostrados, nem nos convidados às falas. E olha que as mulheres, desde a década de 1970, são a maioria expressiva de artistas que trabalham representação e autorrepresentação, já que o corpo da mulher sempre foi campo de batalha para discussões de emancipação, empoderamento e sexualidade.

A Cris Bierrenbach estava lá em Paraty, as fotos dela estavam na mostra ID, mas não foi chamada para as conversas — e o tema de todo o trabalho dela é performance e autorrepresentação, além da questão dos modos de produção, que daria um ótimo workshop. A Nair Benedicto também estava; poderia ter falado de todo o trabalho de representação das minorias (apesar do olhar antropológico/analógico). E por que não entrevistaram a Claudia Jaguaribe, ao invés de colocá-la como entrevistadora, já que o trabalho dela tem mais a ver com a temática do festival do que o do entrevistado? Me dei ao trabalho de contar: foram 56 convidados. Apenas 8 deles mulheres. A única artista presente estava no papel de entrevistadora, apresentando o trabalho de um homem. Pode parecer bobagem, mas se você é mulher, você sabe que não é bobagem, porque você poderia estar lá e não está.

E por que não tinha nenhum negro, já que diversos artistas negros trabalham com questões identitárias na fotografia, inclusive, com autorrepresentações e performances? Temos o Eustáquio Neves, temos a Rosana Paulino, temos o badaladíssimo Ayrson Heráclito — isso pra ficar só nos brasileiros, porque tem muitos artistas da fotografia trabalhando essa temática em toda a diáspora africana, já que se trata de um evento internacional (por exemplo, a Stacey Tyrell). Mas o festival deu preferência aos brancos e europeus, como o Arno Minkkinen, apesar de ter esbarrado na temática com o workshop de fotografia africana do Juvenal Pereira — que, pela descrição da ementa, nem pareceu tão africana assim.

Totalmente à esquerda, obra do Eustáquio Neves. No centro acima, Rosana Paulino. O mosaico no centro abaixo, Ayrson Heráclito. À direita, trabalhos da afrocanadense Stacey Tyrell. Tirei as fotos do google, mas vale muito a pena pesquisar a fundo o trabalho de cada um deles.

(Em tempo: o Arno é sensacional, tem um trabalho incrível de persistência no autorretrato e nos presenteou com uma grande lição sobre as diferenças entre projeto fotográfico e “estilo”, caminho de carreira, ou o que ele chama de “path”. Só acho que poderíamos ter uma diversidade maior de artistas, de pontos de vista, de conceitos. Porque zero artistas negros é um número muito ruim. Isso sem falar dos queer/lgbt, que não foram nem citados.)

Bom, a coisa principal que eu gostaria de deixar registrada com esse textão de crítica é que não dá pra falar de representação sem falar de representatividade, protagonismo, principalmente se a proposta é uma atualização dos novos usos da fotografia a partir dos dispositivos mais recentes (smartphones, aplicativos, redes sociais). A internet é o espaço das representatividades que não tem vez no mundo concreto e a fotografia tem um papel tão importante nisso, de ser voz e imagem de minorias invisíveis no mundo real, que acho que seria fantástico se o festival tivesse se empenhado mais nessa pesquisa. E pra falar dos dispositivos, então, o campo é ainda mais amplo, pois muitos artistas no mundo inteiro estão se valendo da junção arte e tecnologia para proposições realmente inovadoras.

Eu tinha considerações a fazer também sobre os resultados das premiações (Convocatória, Prêmio Paraty e Multimídia), mas deixo para uma outra oportunidade. Mas preciso apontar que até o entendimento do termo multimídia está ultrapassado, uma vez que todos os projetos apresentados foram de vídeo; essa categoria poderia se chamar audiovisual. Mesmo os GIFs animados, que estão sendo amplamente utilizados por diversos artistas no mundo inteiro foram ignorados no festival. E se trata de uma coisa simples, que não requer grandes instalações para ser discutida.

As fotos são minhas, das instalações expositivas do resultado da Convocatória. Eu poderia escrever um outro texto, só sobre esse resultado. Talvez eu escreva, talvez não. rs

Talvez tenha chegado o momento de se repensar esse formato de festival anual. O mundo mudou muito nos últimos 15 anos; iniciamos um novo século, novas subjetividades e novas formas de pensamento. Seria bom que os locais de reflexão e produção da fotografia se atualizassem também.

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