“Antes ele do que eu”

Luiz Fernando, a imagem do criminoso e o assassinato de jovens negros

Suzane Jardim
8 min readApr 4, 2017

Essa semana fiz um post no Facebook propondo uma conversa sobre os porquês da população brasileira não se revoltar com as mortes de jovens negros que nos são mostradas praticamente todos os dias.

Muita coisa legal surgiu dessa discussão, mas um fato em particular me chamou atenção.

Uma pessoa veio no meu inbox perguntar de coração se essa falta de empatia não tinha mesmo a ver com o fato de que a maioria das vítimas estavam envolvidas com o crime. A pessoa fez sua pergunta fora da discussão pública, por inbox, pois tinha receio de ser mal interpretada ou chamada de preconceituosa.

Eu entendi completamente o que ela quis dizer.

Somos criados aprendendo a temer por nossas vidas. Imagens da violência cotidiana são postas na nossa frente o tempo todo e muitas vezes vivemos nos coibindo para não sermos as próximas vítimas. Nesse contexto, o sentimento de “antes ele do que eu” é psicologicamente explicado e, na minha opinião, nem sempre quem prega esse tipo de coisa é exatamente um malvadão sem empatia e nem respeito ao próximo — muitas vezes é só um trabalhador que teme porque foi ensinado mesmo a temer e cada vez mais.

A questão é que pensar como a ligação de um jovem com o crime pode justificar a sua morte sem que seja apurada sua inocência.

Luiz Fernando exemplifica muito bem esse caso.

Montagem que Luiz Fernando fez para tentar provar que não é um bandido.

Encontrei a imagem acima em um post do Coletivo Papo Reto no Facebook.

Eis o texto que acompanha a imagem

U-R-G-E-N-T-E: Luiz Fernando, jovem humilde, negro, que por conta de racismo está passando por uma situação que infelizmente tem se tornado comum entre muitos jovens de origem humilde.

Ele está desesperado porque estão divulgando essas duas fotos dá esquerda, junto de um áudio, como se ele fosse ladrão de cordão na Tijuca. ABSURDO, RACISMO!

Ele trabalha e nas horas vagas se diverte com amigos no futebol, em casa com jogos e etc.

Ele já esteve na delegacia com a mãe, fazendo B.O por crime dá internet. E pasmem, haviam mais jovens fazendo o mesmo que ele.

Você que do alto do seu prédio fica filmando qualquer jovem negro que ande pelas ruas do seu bairro e divulga que são ladrões, você é racista, você que é um grande problema!

Um garoto negro.
Um garoto que usa boné, colares e bermuda.
Um garoto que mora na periferia.

De repente, a veiculação de sua imagem é ligada a imagem do que nos ajudaram a acreditar que seria um ladrão padrão — é assim que um ladrão se veste, é aí que um ladrão mora, é aí assim que o criminoso se apresente.

Não importa se Luiz foi vítima de uma vingança pessoal, de uma pegadinha entre amigos ou qualquer coisa parecida. Rapidamente olhamos a imagem e associamos Luiz Fernanda a um perigo. Ele põe em risco nossas poses, tudo pelo que lutamos e nossas vidas. E não é preciso que Luiz tenha feito nada para isso. Basta olhar pra ele que todo relato que o liga à criminalidade é automaticamente validado.

É pra esse tipo de coisa que quero chamar atenção.
Dentro dessas lógicas, QUALQUER UM DE NÓS que somos negros e moradores de áreas não nobres, estamos sujeitos a perder nossas vidas sem que isso cause comoção pois será fácil nos associar a um grupo com o qual a população aprendeu a não se importar. Basta pegar uma imagem aleatória na internet e está feita a desgraça.

E não pense que Luiz Fernando é um caso isolado.

Em 2015, moradores do Morro da Providência (RJ) gravaram policiais alterando cenas do crime após assassinar um garoto desarmado.

Eduardo Felipe dos Santos Victor tinha 17 anos quando foi assassinado pela PM durante uma ação no Morro da Providência no Rio de Janeiro. Moradores gravaram o momento em que policiais ajeitaram o cenário e colocaram uma arma nas mãos do garoto já sem vida. A notícia rodou o Brasil como um exemplo da má conduta de uma polícia genocida, porém rapidamente tentaram justificar o fato.

Em 2015 o site E-Farsas precisou desmentir a notícia que circulava ligando Eduardo a um rapaz que aparecia com um fuzil em cima de uma moto. A foto do rapaz do fuzil foi tirada em uma época em que Eduardo tinha apenas 12 anos de idade. Entretanto, temos aqui um ponto — a arma colocada na mão de Eduardo pela polícia e a imagem de um suposto Eduardo engatilhando um fuzil fazem com que os que acompanham o caso pensem a mesma coisa: “Era um risco pra minha vida, antes ele do que eu”.

Dizem que Eduardo tinha “ligação com o tráfico”, mas vamos lá, ligação com o tráfico é meio vago. Ele podia ser, sei lá, o muleque que solta os rojão pra avisar que o bagulho chegou, um olheiro ou qualquer outra coisa que em tese traria risco ZERO pra sua vida ou pra minha. Colocar uma arma em sua mão funciona muito melhor caso queiram que pensemos que Eduardo merecia morrer.
“Era ligado com o tráfico”, logo um criminoso dos piores.
“Tinha acesso à armas”, logo um criminoso dos piores e que tinha capacidade de tirar a vida de alguém.
“Ainda bem que morreu”, é o que querem que você pense assim que vê o caso e aí mais e mais jovens negros continuarão perdendo a vida sem que ninguém questione a conduta da policia ou a tal guerra às drogas porque sim, é assim que é e assim que sempre será.

Outro Eduardo, desse vez um de apenas 10 anos de idade (SIM, 10 ANOS!) foi executado durante uma ação no Morro do Alemão, também no Rio de Janeiro.
O moleque tinha 10 anos, logo, nem tem o que falar, né? Policia tá errada, vamos nos erguer contra isso, mas pera pera opa…

SIM! Foi necessário uma campanha pra limpar o nome de uma criança morta! Velho, na moral, a sociedade tá doente…

Eduardo morreu. Sua mãe chorou publicamente pela morte do filho. E enquanto tudo isso acontecia, começaram a espalhar a foto de outra criança aleatória segurando armas enquanto dava joínhas. “Um marginal”, “um perigo”, “e a mãe passando a mão na cabeça de um criminoso desses”, “antes ele do que eu…”.

Temos novamente a mesma narrativa, o mesmo caso.
A presunção de inocência aqui é jogada no lixo em prol de uma lógica rápida que nos faz pensar que é melhor mesmo exterminar crianças nas favelas pois existe a chance de que ela seja ligada ao crime de algum modo, que ela seja um risco a nossas vidas.

Maria Eduarda, 13 anos, morta dentro da escola por 4 ~~balas perdidas~~(SIM! QUATRO). Ela usava uniforme na hora da morte, participava de programas de estímulo aos jovens, era ótima esportista e boa aluna. Tinha sonhos e afins. Mas foi simplesmente morta durante uma “ação da polícia”.
Não foi preciso nem uma semana para que supostas imagens de Maria Eduarda começassem a rodar as redes e whatsapps do país.

Mas uma vez é necessário que se faça uma campanha para “limpar a imagem” de uma vítima…

Eu não vou nem entrar no mérito de me estender na questão de que no Brasil não temos pena de morte e que, mesmo se tivéssemos, ela teria que:
- ser aprovada por um juri
- após um processo penal
- seguido de um julgamento
- e aí então ela poderia ser aplicada
LOGO mesmo que esses adolescentes mostrados aqui fossem de fato bandidos ou algo do tipo, não tinham que ser mortos no meio da rua por PM nenhum.
Mas me estender nisso seria mexer com feridas muito maiores e muito mais sangrentas da nossa sociedade e que envolvem populismo penal, punitivismo, o mito da periculosidade, o sensacionalismo midiático e uma narrativa conservadora que existe há décadas não só em nosso país.

Vamos voltar ao Luiz Fernando.
Ele ainda está vivo e tentando lutar com as armas que pode para que sua vida não entre em risco. Tentando provar que é um “cidadão de bem” para que não seja mais uma vítima das forças policiais ou até mesmo de outros “cidadãos de bem” que movidos novamente pela lógica do “antes ele do que eu”, não perdem a chance de agredir ou até mesmo matar qualquer um que simplesmente pareça suspeito.
Crime só é crime do lado de lá.

Não sei se consegui nesse texto responder a dúvida principal da pessoa que me enviou um inbox trazendo essa questão.
Provavelmente ela ainda terá medo e não conseguirá sentir empatia ao ver que um criminoso foi morto pela polícia mais uma vez. Não quero pedir tanto, obviamente, esse tipo de construção é muito mais enraizada e portanto muito mais difícil de ser quebrada.

O que quero com esse texto é que cada vez mais aprendamos a questionar o que vemos como um “criminoso”, que cara tem um “bandido”, quem são os que de fato colocam nossas vidas em risco? E porque aprendemos desde cedo que todas essas pessoas tem a mesma cor e moram no mesmo lugar de um modo tão enraizado que sequer duvidamos quando um trabalhador aparece como um criminoso em nossos whatsapps?

Por quê é tão mais fácil acreditarmos que Maria Eduarda, João Victor, Cláudia e Amarildo foram pessoas que colocavam nossas vidas em risco e por isso mereciam morrer, do que acreditarmos que existe um projeto cada vez mais forte para fazer com que as vidas de pessoas como Maria Eduarda, João Victor, Cláudia e Amarildo pareçam descartáveis aos nossos olhos, justificando assim mais uma série de mortes de pessoas (com cor e classe muito bem marcada) que terão a presunção de inocência negada?

A resposta é “racismo estrutural”.
Caso ainda tenha ficado alguma dúvida.

Ou você vai me dizer que acreditaria sem pestanejar se eu te passasse essa imagem que achei no google quando procurei por “patriot kids with guns” dizendo que são crianças criminosas perigosíssimas e que devem ser contidas?

E por agora, enquanto não conseguimos desmontar todo aparato midiático, policial e judiciário que fortalece essa realidade, apenas peço que ajudem Luiz Fernando compartilhando o post do Coletivo Papo Reto.
E que torçam por sua vida.
Infelizmente, é preciso.

POST PARA COMPARTILHAREM NO FACEBOOK
https://www.facebook.com/ColetivoPapoReto/photos/a.490209187772332.1073741829.487948524665065/1179649585494952/?type=3&theater

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